segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Garagem (RJ)

Gustavo Falcão e Luiz Carlos Miele em cena
Foto: divulgação

Redemoinho de acontecimentos: a boa dramaturgia de Gustavo Paso

“Garagem” tem vários méritos, mas talvez o texto seja o maior deles. Juan, um advogado falido, tem como única alternativa a de morar em uma vaga de garagem no prédio onde morava com a esposa e com os filhos. O fato é perturbador: os moradores do prédio, cujo síndico é seu ex-sogro, não se conformam a situação; a ex-esposa ainda não acredita que esse é o fim do seu casamento de vinte anos; a mídia quer disso tirar vantagem. Protagonizado pelo ótimo Gustavo Falcão, a peça, que tem texto e direção de Gustavo Paso, acontece em uma garagem de verdade (a do Shopping Rio Sul), com cenas intercaladas com a passagem de carros e a chegada de elevadores. O elenco, que é numeroso, entre bons e maus trabalhos, se alterna na construção de figuras que expressam um interessantíssimo ecossistema, ponto de partida para muitas reflexões. Vale a pena ver e refletir sobre a proposta. 

Juan faz uma ótima dupla com o príncipe Michkin, de “O idiota”, de Dostoiévski. Depois de anos passados em uma clínica para a cura de sua idiotia (epilepsia), o russo volta a sua terra natal a fim de receber a herança deixada por seu pai e recomeçar a vida. Ingênuo, não percebe as muitas tramas que são feitas em seu entorno após a sua chegada. Nesse sentido, a presença de Michkin, e não propriamente um ato seu, em Petesburgo é o que causa a ação. Em “Garagem”, algo similar acontece: Juan apenas está na garagem, mas sua presença ali faz emergir uma série de acontecimentos a que assistimos através dele: casais se dissolvem, casais se formam, crimes são cometidos, pessoas se aposentam e outras começam em suas carreiras. Juan é a raiz desse redemoinho, aquele que dá sentido para esse desfilar de tantas histórias no ótimo texto de Paso. Nenhum fato é concretamente o motivo do subsequente, mas todos se unem, como em “efeito borboleta”, por estarem, de alguma forma, ligados a Juan: do cachorrinho que teve seu pelo queimado na última ida à Petshop ao encontro do antigo porteiro com sua velha namorada. Em cena emblemática, há uma boa referência ao filme “Casablanca”. Na obra de Michael Curtiz, Rick (Humphrey Bogard) reencontra Ilsa (Ingrid Bergman) no Marrocos. Ela e seu atual marido estão lá para conseguirem vistos ilegais e com eles fugirem para América, longe de onde está acontecendo a guerra. O encontro faz reacender o amor vivido tempos antes em Paris e a conclusão célebre é a de que “We`re always have Paris” (Nós sempre teremos Paris). A capital francesa, nesse contexto simbólico do filme, deixou de ser apenas uma cidade, mas um lugar na memória e no coração onde os dois sempre estarão juntos. Em “Garagem”, a garagem é esse lugar onde tudo parece acontecer: pessoas ficam nuas, cantam, choram, dormem, fazem jantares românticos, entrevistam e são entrevistadas, reveem o passado, os parentes e decidem o futuro. O golpe final, que talvez fosse melhor acontecer antecipadamente no início, vem após um belíssimo ápice, em que Juan, 18 anos depois de ter parado de beber, resolve tomar um porre. Nessa cena, o personagem parece, enfim, ter se tornado metáfora do que vê: a vida é fluída, líquida, sem causa e nem efeito, mas apenas uma justaposição de acontecimentos nem sempre uns subordinados a outros. 

Entre os dezessete atores que compõem o elenco (em tempos de “vacas magras”, a união de um elenco tão numeroso é outro ponto positivo da produção), destacam-se positivamente alguns trabalhos. É o caso de Eduardo Tornaghi (o síndico Sr. Ávila), de Elea Mercurio (Alicia Ruiz), de Felipe Miguel (Nícolas e Ladrão), de Luiz Carlos Miele (o porteiro Santiago), mas principalmente de Luciana Fávero (a ex-esposa Rosa) e de Gustavo Falcão (Juan). Neles é possível ver verdade nas cenas que, propositalmente, acontecem em uma garagem que existe além dessa narrativa. Ao público, estão dadas marcas que fazem ver decisões sendo tomadas ao longo das conversas e não apenas a fria execução de marcas. Destaca-se positivamente também a rápida, mas definitiva participação de Cecília Lage (Tia Yolanda), cujo carisma torna em horas os poucos minutos que ela fica em cena. Dody interpreta o crossdresser Teodoro Tavarez, mas infelizmente, sua presença é fria apesar das roupas, das cenas musicais e da relação com a filha. Ao lado de André Poyart (Diego), ele é quem menos se relaciona com o protagonista cenicamente, ou seja, seu personagem parece ser pouco ou nada afetado pela presença de Juan e, portanto, desnecessário na narrativa ou apenas ilustrativo. 

São excelentes as concepções de cenário (Teca Fichinski e Paso), de figurino (Fichinski) , de iluminação (Paulo César Medeiros) e de trilha sonora (André Poyart e Felipe Miguel), dando a ver um todo bem articulado, construído de forma potente e bem estruturada: com realismo, com possíveis metáforas, com fácil identificação. O mérito como um todo porém é da direção de Gustavo Paso que, apesar de alguns momentos de queda de ritmo, mantém regularmente o ritmo. Vale dizer, para exemplificar, que as cenas em que Gloria (Dai Bomfim) e Diego (André Poyart), e Jaime Berenguer (Lacerda) e Thalita Lippi (Mila) discutem a relação estão longas demais, porque há pouco envolvimento com Juan. Por outro lado, estão longas igualmente as entre Juan e Rosa e entre Juan e Santiago, essas, talvez, devido ao certo desconforto sofrido pelo público não instalado tão confortavelmente como estaria em um tradicional teatro. 

Projeto interessante, cujos alguns méritos foram citados, “Garagem” faz boa participação na programação de teatro carioca. Evoé. 

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Ficha técnica:
Texto e direção artística: Gustavo Paso
Figurinista: Teca Fichinski
Cenário: Teca Fichinski e Gustavo Paso
Iluminador: Paulo Cesar Medeiros
Trilha: André Poyart e Felipe Miguel
Desenho de som: Rossini Maltoni
Atores: Gustavo Falcão, Luciana Fávero, Eduardo Tornaghi, Luiz Carlos Miele, Nina Morena, Thalita Vaz, Thalita Lippi, Antonio Ysmael, Cecília Lage, Daí Bonfim, Dody, Eléa
Mercúrio, Ericka Bayerl, Felipe Miguel, Jaime Berenguer e Letícia Lobo
Operação de som: Jaqueline Winter
Operação de luz: Boy Jorge
Operação de vídeo: Tomas Gravina
Contrarregra: Eugenio Brodbeck
Direção de produção: Luciana Fávero
Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa
Participação Especial em vídeo: Lucinha Lins
Realização: Paso d`arte & CiaTeatro Epigenia

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