segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A falecida (RJ)

Bianca Rinaldi em ótimo trabalho
Foto: divulgação

A preferida de Nelson Rodrigues

A falecida”, de Nelson Rodrigues, era a peça favorita de seu próprio autor. E, de fato, é um de seus melhores trabalhos, pois nela está a ironia carioca (e brasileira), a complexidade do homem contemporâneo e a crítica ao fanatismo religioso e esportivo, além de ao falso moralismo e ao capitalismo exacerbado. Na produção dirigida por Moacyr Góes, Zulmira, a personagem título, é brilhantemente interpretada por Bianca Rinaldi que tem, ao seu lado, parceiros também em bons trabalhos como Leon Góes (Tuninho), além de Sérgio Kauffmann e de Augusto Garcia. Em cartaz no Teatro Maison de France, a produção é uma das melhores estreias do segundo semestre teatral do Rio de Janeiro em 2013. 

Na cena inicial, Zulmira vai a uma cartomante e descobre que uma loira irá lhe tirar a atenção. É quando Nelson Rodrigues apresenta, no Theatro Municipal, duas personagens célebres da vida diária carioca: a cambalacheira do alto subúrbio carioca e a ingênua dona de casa da zona norte. Quem será a loira de que fala o tarot? Glorinha, a prima de Zulmira, é eleita para o posto porque a parente não lhe cumprimenta. Tuninho, o marido desempregado da protagonista, que acredita estar no jogo do bicho a solução para os problemas do Brasil, gasta o que não tem na sinuca e nas entradas para os jogos do Vasco. Ao mesmo tempo, nas redondezas, os funcionários de uma agência funerária celebram a morte de uma grã-fina e planejam como tirar mais dinheiro do inconsolável (e rico) pai. É quando o dramaturgo importantiza o talento natural do brasileiro para fazer graça com o que não é engraçado e para multiplicar alguns réis em muitas doses de cerveja, gritos de gol e situações inusitadas. Então, Zulmira descobre o motivo da invejável seriedade da prima: vítima de um câncer, Glorinha perdeu um seio, o que justifica o fato dela nem mesmo tomar banho nua. Convertida por uma igreja evangélica, a protagonista já não aceita mais nem mesmo beijar o marido, embora flerte com um dos funcionários da funerária. É quando Nelson insere o paradoxo da malandragem fluminense na mulher, além de, na história, fazer ver a hipocrisia do fanatismo religioso e das relações familiares. Em evolução contínua, a narrativa cresce na mesma medida em que aumenta em Zulmira a vontade de esfregar na cara da sociedade o seu próprio enterro no mais alto luxo: pelo menos uma vez na vida, é preciso ser grande. Tida como uma tragédia carioca, eis aqui uma comédia fúnebre com humor de altíssimo nível. 

Sem nenhuma invenção estranha, Moacyr Góes aparece porque faz aparecer a grandiosidade de Nelson Rodrigues. O texto é dito com precisão em cenas rápidas que se constroem e se descontroem com naturalidade e vigor. Bianca Rinaldi, em trabalho exuberante, deixa a ironia para o todo e cumpre bem a sua parte: mesmo que com determinações limitadas, sua Zulmira é determinada. As palavras são bem ditas, as expressões são contidas, as intenções são muito claras. Por sua vez, Leon Góes apresenta a malemolência do homem simples – a fala embolada, os hábitos comuns, os trejeitos econômicos. Estão também igualmente em bons trabalhos Daniel Carneiro, Ricardo Damasceno, Simone Centurione, Sérgio Kauffmann e Augusto Garcia com destaque para os dois últimos. Bem dirigido, o elenco de “A falecida” coloca nos diálogos a força da interpretação, permitindo, através de quadros encenados com firmes articulações, uma sólida prosódia. 

É positivo o fundo de cena composto por várias portas no cenário de Teca Fichinski. O palco em declínio em direção ao proscênio e as aberturas da rotunda já citada permitem o movimento já elogiado. Em sentido oposto, no entanto, estão as cadeiras jogadas aleatoriamente nas laterais em que, por motivos obscuros, alguns atores assistem às cenas antes de entrarem nelas. A concepção parece remeter à farsa, o que é justamente o que “A falecida” não é. Também de Fichinski, os figurinos são excelentes: as boas escolhas conduzem ao realismo que garantem a fluência. A trilha sonora embala as cenas com humor discreto, deixando para o público a função de dar significado para o todo.

Sessenta anos depois de sua estreia, o texto de Nelson Rodrigues tem aqui a sua atualidade sutil e positivamente sugerida por Moacyr Góes. Cabe ao público concordar sem ressalvas. Excelente! 

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: Moacyr Góes
Assistente de Direção: Juliana Lago

Elenco / Personagens:
Bianca Rinaldi / Zulmira
Leon Góes / Tuninho
Augusto Garcia / Timbira
Ricardo Damasceno / Oromar, Pimentel
Sérgio Kauffmann / Parceiro 2, Funcionário 1
Daniel Carneiro / Parceiro 1, Funcionário 2, Pai
Simone Centurione / Madame Crisálida, Mãe

Trilha Sonora Original: Ary Sperling
Cenário, Figurino e Adereços: Teca Fichinski
Desenho de Luz: Paulo Cesar Medeiros
Design Gráfico: Mauricio Chahad
Cenotécnico: Adilio Athos
Costureira: Adélia Andrade
Operador de Luz e Som: Rodrigo Bezerra de Melo
Produção Executiva: Juliana Lago e Tatiana Duarte
Apoio de Produção: Marketing Cultural
Criação e Produção: Bianca Rinaldi Produções
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação - João Pontes e Stella Stephany

Um comentário:

  1. Assisti à peça e concordo plenamente com a crítica - EXCELENTE. Bianca Rinaldi mostrou todo o seu talento artístico , junto com o elenco. Recomendo a todos. A maneira como a peça é conduzida prende a atenção do público com momentos engraçados, passados de maneira sutil mas com muita criatividade.Dr. Jorge Mamede de Almeida

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