Marianna Pastori e Bruno Quaresma em cena |
Excelente dramaturgia!
É uma alegria muito grande para quem torce pelo teatro encontrar tão excelente dramaturgia recentemente escrita, como é o caso de “Memória inventada no sonho de alguém”. A peça escrita por Iuri Kruschewski começa como o título: dura, inóspita, pretensiosa, com tudo para ser chatíssima. A situação proposta, afinal, é mesmo difícil: Um dia, uma mulher passou por um homem enquanto corria. A imagem dela ficou gravada na memória dele de forma que ele começou a sonhar com essa desconhecida todos os dias. Inventou para ela uma vida, hábitos, caminhos, motivos, contextos e tentou entrar no ambiente consciente dela através do seu próprio sonho. Então, descobriu-se (ou achou-se) participante, também, do sonho dela. Enquanto essa história é narrada para o público, o personagem narra de si próprio, desvenda-se para si mesmo e se mostra em um lugar em que, de fato, não sabe bem o que é ele realmente e o que ele é em seus próprios sonhos. Kruschewski, com coragem e habilidade, enfrenta o desafio que ele mesmo se fez e nos presenteia com uma linda história de amor, cheia de graça e de complexidade, repleta de lugares não comuns no gesto de sonhar que, por sua vez, é tão humano. Dirigido pelo próprio autor, com assistência de Ana Beatriz Macedo, o espetáculo é interpretado por Bruno Quaresma, Mariana Pastori, Pedro Emanuel e por Rosa Iranzo, e está em cartaz no Teatro Glaucio Gil.
Kruschewisky joga bem com a contemporaneidade na medida em que cria um universo fluído para a narrativa. As cenas não são estanques, mas se misturam umas com as outras, mini-cenas dentro de outras cenas. Neta dos três planos de “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, “Memória inventada...” convive com um público que é capaz de notar as mudanças sem entraves. Os sonhos do protagonista, assim, podem invadir sua vida ou a narrativa de sua vida diante do interlocutor (nós, o público) e é assim que outros personagens, cachorros, ações e lugares tomam parte da cena sem pré-anúncio. O mérito como diretor pode ser exemplificado pela descrição de um fato: a presença do pianista João Medeiros. Na primeira parte do espetáculo, quando a situação quase limite entre sonho e realidade está sendo construída, o pianista chama muito a atenção pelos seus comentários faciais às cenas que estão sendo apresentadas. Mais para o final, quando um outro momento da trajetória do protagonista está em questão, o pianista segue em cena, no mesmo lugar que outrora, mas já não é visto. A direção de Kruschewsky hábil em hierarquizar a entrada dos símbolos, oferece um contorno narrativo cujo ápice está no lugar e do jeito certo: em potência criativa na direção do olhar do público.
O elenco está bem, sem grandes destaques. Os tempos são muito bem usados, de forma que o tom realista oxigena o surrealismo pulsante e imanente da história. Os gestos, principalmente os de Pedro Emanuel, fazem bom desenho tanto em relação ao corpo dos intérpretes e de seus personagens como nas relações proxêmicas. A voz é bem usada (menos em Rosa Iranzo) e os diálogos que acontecem tanto na cena quanto na quebra da quarta parede também acontecem positivamente.
O cenário de Carlos Augusto Campos é feito em formas verticais brancas em fundo preto. O concretismo, tão sóbrio, é afinal uma boa metáfora para a peça em questão: de um lado, temos duas realidades – a do sonho e a do não-sonho – e, de outro, temos a vontade do personagem de ir além do que suas possibilidades podem. As formas geométricas no claro e escuro, sendo um lugar trágico para a cor e para a forma, é também, sem moldura, uma arte paralela, um objeto paralelo que existe além do museu. A iluminação de João Gioia e a trilha sonora de João Medeiros marcam bem essas situações que convivem com a cena na dramaturgia de Kruschewsky. Faz boa articulação o figurino de Tiago Ribeiro, que conserva as cores do cenário, deixando para mostrar-se em um segundo momento em palheta mais rica (o que é uma excelente curva dramática no uso desse elemento), com o resto da estrutura da peça, essa bem amarrada positivamente.
No final de “Memória inventada no sonho de alguém”, temos uma visão muito clara do personagem e de sua história, como também do seu futuro. Entreteve-se, assim, com uma narrativa bem contada e no melhor uso de suas potencialidades: uma linda história de amor, inteligente, graciosa, rica. Parabéns a todos!
Ficha técnica
Texto e Direção: Iuri Kruschewsky
Elenco: Bruno Quaresma, Marianna Pastori, Pedro Emanuel e Rosa Iranzo
Assistência de direção: Ana Beatriz Macedo
Iluminação: João Gioia
Cenário: Carlos Augusto Campos
Músico em cena: João Medeiros
Direção de movimento: Eléonore Guisnet
Figurino: Tiago Ribeiro
Assistência de iluminação: Ana Luzia de Simoni
Assistência de cenografia: Samanta Toledo
Trilha original: João Medeiros
Programação visual: Agência EGX
Contrarregra: João Batista da Silva
Fotógrafo: Bruno Brasil
Produção: Cia. Sala Escura de Teatro
Direção de produção e idealização: Iuri Kruschewsky
Assessoria de imprensa: Smart Mídia (André Gomes)
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