sábado, 17 de março de 2018

"Master class" (SP)

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Christiane Torloni

O brilho humano de Maria Callas


“Master class”, escrita pelo norte-americano Terrence McNally, continua recebendo aplausos país a fora desde 2015. Protagonizada por Christiane Torloni, é a segunda montagem brasileira do texto desde a versão de 1996 de Marília Pêra (1943-2015). Com direção de José Possi Neto, a dramaturgia é baseada no livro “Callas at Juilliard: The Master Classes”, de John Ardoin (1987), e na coleção de discos lançados pela EMI que traz a cantora lírica Maria Callas (1923-1977) dando aulas de canto para alguns jovens cantores em Nova Iorque no início dos anos 70. Na narrativa, a organização pedagógica do momento é oportunidade para a diva fazer um mergulho em sua alma, o que permite ao público conhecer melhor seu universo. Além de Torloni, brilham Julianne Daud, Fred Silveira e Paula Capovilla como os alunos. A produção fez uma rápida passada por Porto Alegre, onde se apresentou no Theatro São Pedro, entre 9 e 11 de março. Depois, seguiu para Curitiba e estará em Goiânia, entre 23 e 25 de março; em Uberlândia, entre 30 e 31 de março; e em Belo Horizonte, de 6 a 8 de abril. Vale a pena ver! 

O mergulho de uma das personagens mais interessantes do século XX 
Entre 1971 e 1972, Maria Callas ministrou 23 aulas de 2 horas cada uma para 25 alunos por ela selecionados dentro de um universo de 300 inscritos. As “master classes” aconteceram no auditório da Juilliard School, uma escola de música em Nova Iorque nos Estados Unidos. Esses momentos foram gravados em áudio (hoje estão no Youtube!) e transcritos. Os registros inspiraram várias obras, entre elas, o texto de Terrence McNally. Os problemas na dramaturgia não impediram que o espetáculo chamasse a atenção do público e da crítica, que valorizaram as interpretações de Zoe Cadwell (Callas) e de Audra McDonald (Sharon). As duas receberam os troféus Tony de Melhor Atriz e Atriz Coadjuvante e a peça o de Melhor Espetáculo em 1996 na Broadway dentre outras menções honrosas. No mesmo ano, dirigido por Jorge Takla, o espetáculo teve uma versão brasileira protagonizada por Marília Pêra que fez muito sucesso no Brasil na ocasião. 

No texto, McNally mistura Maria Callas com outras duas cantoras líricas, a italiana Renata Scotto (1934) e a americana Leontyne Price (1927), reforçando a imagem de diva temperamental e escandalosa de La Divina. O objetivo é escrachadamente comercial. Para a história ser vendável, o dramaturgo superficializou a personagem, esforçando-se infelizmente em apagar muitas marcas de humanidade. Com as gravações disponíveis ao grande público, o fato original nem apresenta uma Callas grosseira, egoísta ou presunçosa, nem permite supor que sua sanidade estava comprometida. Na peça, um trecho imenso de Callas (Christiane Torloni) falando sobre a importância de se ter um “look” é apenas um comentário rápido em uma das gravações. O escândalo da personagem por uma almofada e um banquinho para ficar mais confortável também não aparece. 

Apesar dessas questões, o texto não é de todo ruim. McNally transformou os 25 alunos em apenas 3: Sophie De Palma (Paula Capovilla), Anthony Candolino (Fred Silveira) e Sharon Graham (Julianne Daud). A primeira canta uma ária de “La Sonnambula”, de Bellini. O segundo canta uma de “Tosca”, de Puccini. A terceira de “Macbeth”, de Verdi. O melhor momento é o número final de “Medea”, de Cherubini. Nele a orquestração dramatúrgica de McNally passa a ficar mais legível. Ao longo de “Master Class”, os trechos das óperas sutilmente deixam ver nuances do quanto a história da grande Callas ainda pulsa na então professora em suas aulas. Em “La Sonnambula”, por exemplo, está a culpa de Callas por ter abandonado seu primeiro marido e amigo G. B. Meneghini. “Recondita armonia”, a primeira música de “Tosca”, é um hino de amor à arte, atividade que transformou uma pobre adolescente americana refugiada na Grécia - gorda, feia e com pais separados - em uma das maiores estrelas do século XX. Em “Macabeth”, mas principalmente em “Medea”, está a abnegação de Callas a Aristóteles Onassis, seu maior amor, que a havia trocado por Jacqueline Kennedy em 1968. 

Ao longo desses três anos desde a estreia, a direção de José Possi Neto aprendeu a ressaltar as sutis propostas do texto, deixando de valorizar o exagero, a piada, a caricatura e passando a investir em uma Callas mais humana, mais real e mais bela. De 2016 para cá, o ritmo melhorou muito a partir de um esforço maior da produção de evitar as piadas fáceis de outrora em favor de um material mais tocante e complexo. Antes, o espectador saía com a impressão de que a ordem de aparição dos alunos na dramaturgia poderia até ser invertida, pois nenhum deles fazia a história andar. Hoje já está bem claro que a dramaturgia promove um mergulho de Callas em seu próprio espírito e que há vários níveis mais profundos entre “La Sonnambula” e “Medea”. É uma direção de Possi a ser aplaudida! 

A excelente Torloni
É interessante reparar na participação dos personagens coadjuvantes na peça a partir de suas defesas pelos intérpretes que lhes dão vida. Todos eles vêm de fora, com seus objetivos e realidades, que ficam justapostas à Maria Callas. Essa, porém, se divide entre a parte de si que eles veem nos seus contextos narrativos e a parte que nós, público, vemos dela, em seus apartes. Dito de outra forma, a audiência têm acesso a uma Callas muito mais completa do que os personagens-alunos, mas eles não sabem disso. O choque, que constitui o quadro geral sobre o qual o espetáculo se dá a existir, ficou muito mais claro e valoroso com as substituições feitas no elenco e com o amadurecimento da direção. 

Sophie (Paula Capovilla) é uma jovem sensível e amedrontada por estar diante de La Divina. Tony (Fred Silveira, que ganhou o Prêmio Reverência 2017 por sua atuação em “My fair lady”) é um sedutor deslumbrado com vontade de ser famoso. Sharon (Julianne Daud), o melhor papel entre os alunos, tem personalidade e coragem para desabafar o que pensa no melhor momento do texto de McNally. Há ainda o pianista Emanuel Weinstock (Thiago Rodrigues) sem destaque. E o histriônico Assistente de Palco (Jessé Scarpellini), que faz uma participação pequena ainda que carismática. Em todos esses, de modo maior ou menor, vê-se o empenho em aproveitar todas as melhores oportunidades de construir relações sejam de concordância, sejam de oposição com a protagonista. Esse esforço é o que dá a peça vivacidade e força para vencer os problemas do texto e alcançar a máxima glória dos objetivos do projeto. 

Christiane Torloni (Maria Callas) está excelente no papel, conferindo à sua construção humanidade, complexidade e carisma. Principalmente nos dois solilóquios que a dramaturgia lhe oferece, o público têm acesso à sua entrega por meio de um exuberante domínio de cena. Voz, corpo e gestos muito bem empregados em cada entrecho justificam o fato de a atriz ter ganho, por esse trabalho, o prêmio Aplauso Brasil, o prêmio da Revista Quem e o Prêmio Arte Qualidade Brasil. Eis um ótimo momento em sua longa, mas ainda jovem carreira. 

Brava!!
O cenário de Renato Theobaldo é inadequado. Apesar do texto ser claro em lembrar de que a história não se passa em uma sessão de espetáculo, mas em uma sala de ensaios, o que se vê em cena é uma estética que foge completamente dessa situação. A rede branca que cai em diagonal, funcionando como falsa rotunda, fica ainda mais prejudicial com a luz de Wagner Freire colorindo a opção com tons fortes e afastando o todo da proposta dita pelos próprios personagens. O figurino de Fabio Namatame & Claudeteedeca brinca com a emoção dos alunos por estarem diante da diva e apresenta fielmente a protagonista em relação ao contexto fonte, cumprindo muito bem seu trabalho na composição do espetáculo. 

“Master Class” traz Maria Callas de um modo muito digno que é lindo de se ver e aplaudir. Bravo! Brava! 


Ficha técnica:
Texto: Terrence McNally
Direção de Cena: José Possi Neto
Direção musical: Maestro Fabio G. Oliveira
Direção artística: Maestro Entretenimento

Elenco:
Christiane Torloni (Maria Callas)
Julianne Daud (Sharon Graham)
Paula Capovilla (Sophie De Palma)
Anthony Candolino (Fred Silveira)
Thiago Rodrigues (Emmanuel Weinstock)
Jessé Scarpellini (Contrarregra)

Cenário: Renato Theobaldo
Iluminação: Wagner Freire
Design de som: André Luis Omote
Figurinos: Fabio Namatame & Claudeteeca
Visagismo: Fabio Namatame e Sergio Gordin
Vídeo cenário: Bijari
Diretora de Produção: Julianne Daud
Produção Executiva: Lis Maia
Produção: Elza Costa e Fabio Hecker
Assistente de Produção: Alessandra Kosta
Assistente de Direção de Cena: Vanessa Guyillén
Assistente de Iluminação: Alessandra Marques
Designer Gráfico: Ebert Wheeler
Assessoria de imprensa: Liège Monteiro e Luis Fernando Coutinho
Produção Geral: Julianne Daud e Fabio G. Oliveira
Realização: Maestro Entretenimento

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