sexta-feira, 2 de março de 2018

A noiva de cristal (RS)

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Foto: Jorge Aguiar

Ana Guasque e Joana Izabel

Ana Guasque brilha em dramalhão de qualidade

“A noiva de cristal” é um bom dramalhão daqueles que fazem a gente sentir saudades dos filmes de Douglas Sirk. Bem defendida dentro dessa proposta, a peça pode fazer os corações mais incautos se emocionar. Escrita e dirigida pelo carioca Márcio Azevedo, ela tem ótima interpretação de Ana Guasque e uma essencial participação de Joana Izabel. Na história, quinze anos depois de ter sido internada em um sanatório ao ser abandonada pelo noivo na véspera do casamento, a jovem Dulce receberá uma visita misteriosa. Na preparação para esse momento, as várias dimensões do amor se embaralham no interior da donzela ainda apaixonada pela lembrança do passado. O espetáculo retornou ontem a cartaz em temporada que vai até 11 de março no Teatro do Centro Histórico-Cultural da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. 

O bom dramalhão 
Para fins de análise da dramaturgia, o texto de “A noiva de cristal” pode ser dividido em duas partes. Na primeira, absolutamente nada acontece. Há o informe da situação inicial logo no texto da abertura e, a seguir, uma sucessão monótona de reflexões que se esforçam em descrever ao limite o sentimento da personagem protagonista. Em março de 1935, Dulce (Ana Guasque) iria se casar com seu noivo Fernando, mas ele desapareceu dias antes da cerimônia. Por isso, ela foi internada em uma casa de recuperação. Quinze anos depois, no natal de 1950, ela ganha, pela primeira vez, uma liberação para visitar a casa paterna. Ao rever seu antigo vestido de noiva, porém, o trauma vem à tona terrivelmente. A peça começa após esse momento de crise, quando Dulce já está de novo no seu quarto de hospital. Junto dela, há uma Senhora misteriosa (Joana Izabel) que não é vista por ninguém além de Dulce. É com essa companheira que a protagonista conversa. 

O autor Marcio Azevedo estrutura esse primeiro longo trecho da dramaturgia em cima de conhecidos textos literários sobre o amor. Entram aí, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade e Florbela Espanca só para citar dois exemplos entre vários. Na encenação também dirigida por Azevedo, esses excertos vêm deslocados com inclusive uma mudança de voz na interpretação e por um registro facial mais neutro, funcionando como anexos. O todo resulta em uma colagem de grandes momentos da literatura que tornam toda essa parte da peça ainda mais monótona apesar de poeticamente bonita. 

O ritmo só melhora quando chega a notícia de que Dulce irá receber uma visita. Na certeza de que é Fernando, seu antigo noivo, quem virá, muitas questões surgem. Dulce ainda o ama o ex-namorado e não suporta a imagem de vê-lo casado com outra. O que terá acontecido com o personagem nesses anos todos? E o que acontecerá a partir desse encontro? Essas dúvidas espantam o marasmo da parte anterior e inauguram o drama propriamente dito em “A noiva de cristal”. Dois signos bastante relevantes permanecem sem resposta: o valor do outono para a narrativa, pois as duas datas citadas se passam no verão; e o porquê do apelido “a noiva de cristal”. 

Como em um bom dramalhão, o público não é de todo surpreendido por aquilo que se fica sabendo nos trechos finais. Vale dizer, no entanto, que as reviravoltas trazem efeito positivo para a dramaturgia. Quando a história, enfim, se movimenta, ela assume algum potencial de emocionar, cumprindo o seu papel de meramente entreter. Em resumo, tem-se um bom texto que, apesar de talvez andar meio fora de moda, ainda preserva seus méritos estéticos em uma análise livre de preconceitos. 

Aplausos à Ana Guasque 
A encenação dirigida por Marcio Azevedo parece estar plenamente consciente dos valores da obra dramatúrgica. Não há mudança de cenário e as alterações estéticas são bem pouco recorrentes, o que concorda com o ritmo lentíssimo do trecho inicial do espetáculo. Assim como no texto, os signos ganham maior mobilidade nas cenas finais. Isso revela um feliz acordo entre o texto e a direção assinadas pela mesma pessoa. 

O fato da personagem título da peça estar (?) diagnosticada como “louca” também libera a encenação para opções aparentemente estranhas. Em vários trechos, sobretudo naqueles em que os textos são de outros autores da literatura brasileira, Dulce assume uma aparência menos carregada e mais comedida. Na loucura, tudo se perdoa. 

No quadro final, por motivos óbvios para quem for ver a peça, o espetáculo ganha um ar surpreendentemente expressionista que é bastante interessante. A enorme quantidade de folhas secas no chão durante toda a narrativa já positivamente antecipava esse panorama. 

Os melhores elogios se devem fazer ao trabalho de Ana Guasque nesse espetáculo pelo modo como a atriz venceu o desafio de construir personagem tão difícil. O excesso de romantismo de Dulce poderia ter levado a peça ao melodrama e daí para a comédia. O trágico também parece ter sido um perigo presente do qual Guasque conseguiu se livrar bravamente. Com notoriedade, “A noiva de cristal” tem como inspiração inicial o realismo sobre o qual se subverte através da poesia chegando ao dramalhão. Esse trajeto específico foi delicadamente construído pela atriz, garantindo a ela os maiores aplausos. Além disso, há um claro e positivo uso da voz e excelente uso do corpo tanto na movimentação como no gestual. 

Apesar de uma entrada com problemas de dicção e com um volume de voz muito baixo, Joana Izabel defende, através de figura imponente, uma ótima participação em “A noiva de cristal”. Seus movimentos são vibrantemente equilibrados e, por isso, dispostos a atrair a atenção sem puxar o foco. Sua Senhora silenciosa faz elogiável contraponto com a verborragia de Dulce, trazendo méritos para o espetáculo. Caroline Vetori e Fabrício Zavareze trazem esforçadas construções menores, mas infelizmente sem igual mérito. Falta-lhes fluência e sobra-lhes preocupação com o texto e com as marcas. 

Bom cenário de Zoé Degani
O cenário de Zoé Degani faz colaborações bastante positivas ao quadro geral de “A noiva de cristal”, dando a ver bem o ambiente tanto físico quanto mental em que a peça acontece. O mesmo, porém, não se pode dizer do figurino de Degani e do diretor e da trilha assinada por esse segundo. O guarda-roupa usado Vetori e por Zavareze desmerece a produção negativamente por escolhas bastante ruins além de impróprias. O excesso de açúcar na escolha das músicas de fundo impedem maior aprofundamento em trechos centrais, isso fora os problemas de operação na sessão aqui analisada. O desenho de luz de Bathista Freire e de André Winoviski cumpre bem seu papel, tendo picos bastante positivos de redefinição do clima do espetáculo nos quadros de encerramento. 

Baseada em uma história real, “A noiva de cristal” estreou em novembro de 2017 no Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana. Nessa segunda temporada, a produção deverá aumentar sua coleção de elogios devidos. Um viva para a vitalidade do teatro gaúcho. 

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FICHA TÉCNICA
Texto e Direção: Márcio Azevedo
Elenco: Ana Guasque, Joana Izabel, Thaís Petzhold, Caroline Vetori e Fabrício Zavareze
Design de Luz: Bathista Freire e André Winosviski
Cenografia: Zoé Degani
Figurinos: Zoé Degani e Márcio e Azevedo
Fotógrafo: Jorge Aguiar
Assistente de Direção: Fabrício Zavareze e Caroline Vetori
Trilha Sonora: Márcio Azevedo
Arte Gráfica: Gabriela Cima
Hair Stylist: Adriana Baptaglin Flores
Costuras: Atelier de Costuras Lori Peruzzo
Produção e Realização: Ana Guasque Artes & Entretenimentos e Sete Marias Produções
Assessoria de Imprensa: Produção A Noiva de Cristal
Apoiadores: Centro Histórico e Cultural Santa Casa, Virgínia Manssan Noivas, Hospital Santa Casa, Móveis do Bem, Zalux Espelhos e Molduras, Corte Zero, Atelier de Massas, Hotel Palácio, Brick Chic, Claríssima Moda em Branco, Ingresso Rápido, Loja Sirius

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