sábado, 8 de novembro de 2014

O que o mordomo viu (RJ)

Foto: divulgação

Arlete Salles, Ubiracy Brasil e Miguel Falabella em cena

Somente uma comédia de costumes

“O que o mordomo viu” é o primeiro espetáculo em que Miguel Falabella se esforça para não repetir o personagem Caco Antibes. Se não consegue, é porque o público não deixa infelizmente. Em cartaz no Teatro Clara Nunes, no shopping da Gávea, a comédia tem texto do britânico Joe Orton e direção de Cininha de Paula além do próprio Falabella. No elenco, Arlete Salles, Alessandra Verney e outros dão vida aos personagens de um vaudeville transgressor para a época que ainda consegue provocar algumas risadas. Os problemas maiores estão na adaptação.

O original “What the butler saw”, levado ao palco pela primeira vez em 1969, ficou ainda mais famoso porque foi o último texto de Joe Orton, jovem britânico morto a marteladas pelo namorado em 1967. Aos 34 anos, o dramaturgo havia ficado conhecido por ter adulterado mais de 80 livros de bibliotecas públicas, mudando as capas com colagens e escrevendo observações obscenas em seus interiores, crime pelo qual foi condenado e preso. Como autor, um dos seus melhores trabalhos foi “Entertaining Mr Sloane”, que estreou em 1964, ganhando elogios da crítica. “O que o mordomo viu”, assim, despertou mais a atenção do público pela comoção da morte recente de Orton do que propriamente por seus méritos próprios, embora o autor apareça discretamente junto a Harold Pinter entre aqueles que renovaram a comédia britânica.

Desde Noel Coward, o tema central da comédia britânica é menos o que as pessoas fazem e muito mais o medo delas de que outras pessoas saibam o que elas fazem. “O que mordomo viu” (What the butler saw”) parte do encontro de dois acontecimentos. De um lado, o psiquiatra Dr. Arnaldo (no original, Dr. Prentice) seduz a candidata à vaga de secretária Denise Barcca (Geraldine Barclay), pedindo que ela tire a roupa em seu consultório. De outro, sua esposa Mirta (Mrs. Prentice) tem sido chantageada pelo mensageiro Nico (Nicholas Beckett) do Station Hotel, com quem passou a noite depois de ter participado de um encontro de lésbicas. Ela promete conseguir para ele o emprego de secretário do seu marido em troca das fotos que ele tem dela nua. Ou seja, não importam as traições dele ou dela, mas, sim, a manutenção da imagem de um e de outro para os outros. O entra e sai da candidata e do mensageiro e as reviravoltas com a chegada de Dr. Ranço (Dr. Rance), Presidente do Comitê de Psiquiatria, e do detetive Matos (Sargent Match), inspetor policial, vão construindo a luta do casal Prentice em esconder suas escapadas versus a sanha dos outros personagens em conseguir empregos e atingir seus objetivos. O resultado é que, lá pelas tantas, todos se descobrem em maus lençóis, livres de quaisquer máscaras sociais, mas presos no consultório, pontuando a hipocrisia como grande crítica que Joe Orton faz à sociedade.

O pior da versão de Miguel Falabella é o apagamento das marcas de ironia. Se, em Joe Orton, há sempre dois níveis, o que é dito e o que é subentendido, aqui há apenas um: o escrachado. Toda a classe que o texto original expressa para sustentar a hipocrisia virou, nessa montagem de “O mordomo viu”, a sensualidade barata bem típica do baixo entretenimento infelizmente. Além disso, a adaptação apresenta uma série de incoerências que empobrecem ainda mais a comédia. As citações ao Lula (no texto, original há uma menção ao Winston Churchil que havia falecido recentemente), ao Levy Fidelix, ao Mais Médicos colocam a peça em um tempo (o atual) que não é o mesmo que aquele em que não havia celular e internet, em que se bebia whisky em consultórios médicos e em que tantas reviravoltas faziam sentido. Ao atualizar apenas parte da peça, as incoerências ratificam o tom comercial da produção negativamente, sem reforçar a construção do que ela quer dizer. Por fim, a palavra “mordomo” do título não é boa, pois o significado dela para nós não é o mesmo que butler quer dizer para os britânicos. 

Marcelo Picchi (Dr. Ranço) tem interpretação negativamente comprometedora. A figura do Presidente do Conselho de Psiquiatria expressa, ao longo da peça, um certo tipo crescente de loucura que deveria auxiliar na crítica ao sistema. Ao invés disso, é mais caricata do que interessante. Em personagens menores, Alessandra Verney (Denise Barcca), Ubiracy Brasil (Detetive Matos) e Magno Bandarz (Nico) têm boas participações, mas todas sem destaque. Arlete Salles (Mirta), quatorze anos mais velha que Falabella, demora a convencer como esposa, mas vence o desafio, fazendo a plateia esquecer da segunda pele por baixo da vestido. É dela o melhor trabalho dessa montagem. Durante boa parte da peça, Miguel Falabella (Dr. Arnaldo) foge do fantasma de Caco Antibes, do programa “Sai de Baixo”, optando pelo tom de voz mais grave e menos arrogante, pelo peito menos estufado e pelas pausas mais longas. O resultado é bastante positivo, apesar do público, que se diverte com o intérprete em todas as situações em que o homem alto, loiro e engravatado do Largo do Arouche parece voltar. Reconhece-se que é difícil não se render e elogia-se o esforço.

O cenário de José Dias é outro grande problema de “O que o mordomo viu”. Toda a peça se passa em um consultório médico cujas quatro portas não são justificadas. O ambiente interno onde fica a maca é desprotegido pelas janelas que vão até embaixo, de forma que são estranhas as cenas em que algum personagem permanece nu ali. A opção estética pelo branco nas paredes, nos móveis e nos objetos também é duvidosa. Apesar da utilidade da cena final, o átrio, além das portas, faz o consultório parecer a sala de uma mansão, distanciando os personagens da vida que eles próprios denunciam nos diálogos. Por outro lado, essa produção tem figurinos (Sônia Soares) bastante bons, apresentando os personagens e contribuindo bem com a narrativa. Pelos mesmos motivos, são boas também a trilha sonora de Leandro Lapagesse e a iluminação de Aurélio de Simoni.

“O que mordomo viu” deveria apresentar uma crítica à sociedade, promovendo um riso amargo a quem ri e depois nota que riu de si mesmo e de suas mazelas. A partir da direção de Cininha de Paula e de Miguel Falabella, essa montagem é apenas uma comédia de costumes e nem assim uma das melhores.

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FICHA TÉCNICA:
Texto - Joe Orton
Versão Brasileira e Direção - Miguel Falabella
Co-Direção - Cininha de Paula
Cenário - José dias
Figurino - Sônia Soares
Designer de luz - Aurélio de Simoni
Trilha Sonora - Leandro Lapagesse
Patrocínio – VIVO E PORTO SEGURO
Elenco: Miguel Falabella, Arlete Salles, Marcelo Picchi, Alessandra Verney, Ubiracy Brasil e Magno Bandarz

3 comentários:

  1. Infelizmente o teatro brasileiro está (com raras exceções) apenas repetindo os programas cômicos (pretensamente cômicos) de baixo nível da TV aberta no Brasil.

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  2. Uma das piores peças que vi em toda minha vida.

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  3. Uma das peças mais sem graça e mal conduzidas que eu ja assisti na minha vida,mas o que mais decepcionou mesmo foi o total desaso com que Miguel Falabella aborodou e montou o texto original do ingle s Joe Orton,cuja ironia,sarcasmo e graça estao completamente ausentes nesta montagem tupiniquim

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