quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O incansável Dom Quixote (RJ)

Foto: divulgação
Em cena, o ator Maksin Oliveira


A má contribuição do stand up comedy para Miguel de Cervantes

O espetáculo “O incansável Dom Quixote” tem como mérito o de confirmar a presença de talento e do bom uso da técnica interpretativa do ator Maksin Oliveira, mas os bons valores da produção infelizmente acabam aí. A transformação do clássico “Dom Quixote de La Mancha”, do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), em stand up comedy esvazia a obra de suas principais características, reproduzindo a história, mas retirando dela todo o conteúdo. A produção cumpriu temporada no Teatro Municipal Maria Clara Machado, no Planetário da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro.

Lançado integralmente em 1615, o romance é a obra máxima de Miguel Cervantes de Saavedra, um homem embebido pela cultura do Século de Ouro espanhol. Exilado do seu país na juventude, feito prisioneiro nele em várias ocasiões, autor de peças curtas (entremezes) de grande sucesso, foi com o romance “Dom Quixote de La Mancha”, parcialmente escrito na prisão, que o escritor se consagrou. Nessa obra, o personagem do Cavaleiro da Triste Figura concentra os elementos identitários da arte aurissecular - a religiosidade, o valor moral da honra, a defesa das instituições, a coragem e a paixão - como contorno para uma realidade ilusória, sensorial e alternativa que constituem, de forma geral, os quadros barrocos em todas as esferas artísticas desse período da arte europeia. De um lado, a Espanha colhia os frutos do recém explorado Novo Mundo. De outro, a península ibérica assumia o compromisso de universalizar as teses da Contrarreforma, herdando e promovendo a liderança artística e religiosa que, até então, pertencia apenas a Roma. Rodeado por controvérsias, o homem barroco é chamado a valorizar a alma, purgando, na vida terrena, a culpa pelas chagas de Cristo. A beleza se torna feiura e a dor passa a ser motivo de orgulho. Claro e escuro, morte e vida, divino e humano são pêndulos que balançam e podem, ainda hoje, encontrar eco se se observar o mundo a partir de sua complexidade. Nada disso está em “O incansável Dom Quixote” em cuja dramaturgia há apenas a justaposição de alguns fatos da vida narrada do personagem título.

A visão de Sancho Pança como nordestino, a do frade dominicano como um homossexual e a narração do episódio das ovelhas como um locutor esportivo, entre outras associações, informam que Maksin Oliveira sabe construir tipos cômicos. A aproximação de Dom Quixote como um policial envolvido das manifestações, no Brasil de 2013, e várias outras falas do personagem narrador que constroem relações similares com o público, que visam contemporizar o personagem, aproximam a plateia do seu enredo, mas não oferecem nada além do riso gratuito. Infelizmente, nessa adaptação, toda a poética de Cervantes permanece ausente. É uma pena.

Quanto ao uso da técnica, o espetáculo deixa ver pontos bastante positivos, nos quais menciona o sucesso "O descobrimento das Américas", de Dario Fo e com Julio Adrião. Maksin Oliveira diz bem o texto, preenche o palco vazio com habilidade e protagoniza alguns quadros bonitos dentro do conceito de direção de Reynaldo Dutra. A cena final, em que o personagem some na escuridão de um tablado sem cenário, nem coxias, é uma boa metáfora para o teatro que, enquanto arte, se estabelece do nada e nada deixa a não ser a lembrança. O figurino de Leonam Thurler, remetendo a uma época que não é o agora, mas também possibilitando interessantes alternativas cênico-narrativas, é um dos pontos altos da produção, que tem ainda simples e delicado desenho de luz de Pedro Struchiner.

As referências políticas e aos personagens do cotidiano de “O incansável Dom Quixote" sinalizam a intenção popularesca da produção, mas não a marcam em definitivo. Com toda a sua poética e sua complexidade, “Dom Quixote de La Mancha” foi um livro popular de um dramaturgo e romancista que conhecia bastante bem o povo e seus interesses. Facilitar a obra original, resumindo parte de seu enredo e desconsiderando todo o resto, é desvalorizar a capacidade do grande público de alcançar níveis mais elevados de abstração. Nada contra o stand up comedy enquanto gênero, mas aqui ele é uma má inspiração.

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FICHA TÉCNICA
Autor: Maksin Oliveira
Direção de Produção: Maksin Oliveira
Produção executiva: Juliana Marsico
Direção: Reynaldo Dutra
Elenco: Maksin Oliveira
Figurino: Leonam Thurler
Caracterização: Reynaldo Dutra
Cenário: Magnífica Trupe de Variedades
Iluminação: Pedro Struchiner
Operador de luz: Thiago Monte
Filmagem e edição: Roman Produções
Fotografias: João Julio Mello e Nicolle Longobardi
Projeto Gráfico: Miguel Carvalho
Realização: Roda Produtiva

Um comentário:

  1. Não assisti esse espetáculo, mas me foi muito bem indicado... quando voltar em cartaz, farei o possível para assistí-lo.

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