Elenco em cena |
A responsabilidade de Chico
“Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos” conserva a elegância e o rigor das produções assinadas por Charles Möeller e por Cláudio Botelho, mas nem de longe é um dos melhores trabalhos da dupla de encenadores corretamente tidos como os “Reis dos Musicais” no Brasil. O problema maior é a dramaturgia de Botelho que não situa a peça entre as revistas e nem faz dela um simples sarau (como “Nada será como antes”, por exemplo), ficando no meio do caminho entre um e outro gênero infelizmente, ambos distantes do tradicional musical americano. Em cena, Davi Guilherme, Estrela Blanco e principalmente Soraya Ravenle têm excelentes participações na produção cujos elogios também devem se estender aos figurinos de Marcelo Pies e ao visagismo de Beto Carramanhos. Em cartaz no Teatro Clara Nunes, no Shopping da Gávea, apesar dos problemas, a peça agrada porque é principalmente voltada para quem comemora o aniversário de 70 anos de Chico, a serem celebrados nesse ano de 2014. Como esse número de pessoas felizmente é vasto, não há dúvidas de que um sucesso inaugura a nova etapa na carreira de Möeller e de Botelho, agora, enfim, como seus próprios produtores pela primeira vez.
No roteiro de Cláudio Botelho, temos um Diretor (o próprio Botelho) que, com a memória afetada, registra anotações nas quais conta sobre as viagens que sua trupe de atores fez pelo interior do Brasil, muitos anos antes. Os problemas na dramaturgia começam logo na apresentação dos personagens. Há a Primeira Dama (Soraya Ravenle), esposa do Diretor; e o Filho do casal (Davi Guilherme). Há também a Mocinha (Estrela Blanco) e o Galã (Felipe Tavolaro). Além desses quatro personagens, há duas figuras indefinidas, apresentadas (no programa vendido pela produção do espetáculo) como a Cigana (Renata Celidonio) e a Cartomante (Lílian Valeska), mas sem funções dramatúrgicas claras. Com o início de uma longa viagem, faz-se um teste para a entrada de mais um componente para o elenco. É quando Margarida (Malu Rodrigues), por quem o Diretor está apaixonado, é aprovada na seleção e, por isso, começa a viajar com o grupo que apresenta seu repertório teatral em cidades distantes do país. Ou seja, apesar de não se desenvolver, o contexto para uma história está estabelecido.
Enquanto o repertório de Chico Buarque é interpretado, oportunidades interessantes de dramaturgia surgem, mas não são aproveitadas. Vemos a inveja da Primeira Dama em relação à jovem Margarida, a atriz mais velha que começa a ceder o seu lugar para a atriz mais jovem. Vemos a insegurança do Filho, que não é o Galã e, talvez por isso, dele se aproxime como também de Margarida, talvez para obter uma melhor colocação dentro da Companhia. Vemos a relação entre o Galã e a Mocinha, ambos proibidos pelo Diretor de ficarem juntos sob pena de serem expulsos. Vemos a relação homossexual entre a Cigana e a Cartomante, ambas, como já se disse, perdidas na narrativa. E, por fim, vemos a Primeira Dama e o Diretor, já em idade mais avançada, descobrirem o amor um pelo outro. Assim, em toda a parte, há “nichos” de boas tramas que pairam sem forma e sem articulação, como apenas pobres motivos para a entrada das canções (como se eles fossem necessários). É quando vem um golpe fatal para a essa dramaturgia de Botelho.
Perto do fim da peça, o personagem do Diretor quebra o distanciamento com o ator que o interpreta e avisa ao público que chegou-se aos 90 minutos de espetáculo no Teatro Clara Nunes e que, por isso, todos devem ir embora. Ou seja, se, durante uma hora e meia, as músicas de Chico Buarque entraram na produção como respostas a quadros narrativos da memória cambaleante de um velho diretor de uma trupe teatral, agora fica-se escancarado que “Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos” é apenas um show musical e que todo o investimento em narrativa foi inútil. Enfim, o espetáculo continua por mais meia hora, já então com boa parte da graça ter sido abandonada, restando toda a responsabilidade do aplauso final para as interpretações e para Chico Buarque, sem qualquer pudor.
Em se tratando das interpretações, o espetáculo desperdiça a fulgurante voz de Lílian Valeska, como já se disse, perdida nessa história mal contada. Felipe Tavolaro e Renata Celidônio aparecem sem vida em quadros pouco interessantes e Malu Rodrigues, repetindo negativamente a Dorothy, de “O Mágico de Oz” (o melhor espetáculo musical de 2012), não fornece nem um ponto mais profundo de abordagem do seu personagem nessa produção. Estrela Blanco e Davi Guilherme, por outro lado, brilham no pouco que lhes é dado, descobrindo aqui e ali meios de fazer uma crítica e, assim, interpretar tão bem como, de fato, todos cantam. Soraya Ravenle, por sua vez, brilha no muito que lhe é dado, atendendo às expectativas sobre a segunda dama do teatral musical brasileiro (a primeira é Bibi!), título que lhe cabe com toda a justeza. Dando sentido para a narrativa que, depois, será abandonada, Cláudio Botelho brilha ao lado de Ravenle e abre belas oportunidades para seus colegas brilharem também, mostrando ser um intérprete tão bom quanto o é como profissional.
É preciso que se diga que o teatro brasileiro diminuiu bastante a função do cenógrafo desde que inventaram os andaimes. Aqui, mais uma vez, os temos no cenário de Rogério Falcão, querendo significar várias coisas, mas sem dizer nada. É positiva a sugestão de luzes fluorescentes no desenho de Paulo César de Medeiros, porque elas remetem a um tempo que já não é o atual, tempo esse adequado para a narrativa que é apresentada no início da peça. Os figurinos de Marcelo Pies são o ponto alto da produção. Sua limpeza, seu bem acabamento, a qualidade de sua modelagem fazem ver o gênero musical na galhardia (e na imponência) que lhe cabe, sobretudo no último vestido usado por Lílian Valeska. O visagismo de Beto Carramanhos, o melhor profissional brasileiro de sua área, tem seu maior momento na composição carregada de Davi Guilherme, sugerindo, com o lápis no olho, alguém que possa querer “roubar energias” de outrem tal qual vampiro.
A direção cênica de Charles Möeller enfrenta problemas de ritmo nas finalizações das músicas e no reinício dos quadros, carecendo de mais vigor. Tem, no entanto, momentos excelentes que ajudam Chico Buarque a receber os aplausos finais. “Tango do Covil”, “Ciranda da Bailarina”, “Geni e o Zepelin” e “Pedaço de Mim” são os melhores exemplos disso. No mesmo sentido, os arranjos de Jules Vandystadt ganham especial destaque em “Roda Viva” e em "Terezinha de Jesus” positivamente.
“Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos” reúne algumas canções compostas pelo célebre homenageado para espetáculos de teatro musical, filmes e para uma novela. Com isso, reforça-se o coro iniciado por Artur Xexéu em uma coluna recente quando dizia o cronista que era preciso se lembrar que, antes de ser conhecido como músico, Chico foi-nos apresentado como um dramaturgo. Pena que a dramaturgia desse espetáculo não o tenha homenageado também nessa parte. Parabéns, Chico!
Ficha técnica:
Elenco:
SORAYA RAVENLE
CLAUDIO BOTELHO
MALU RODRIGUES
DAVI GUILHERMME
ESTRELA BLANCO
FELIPE TAVOLARO
LILIAN VALESKA
RENATA CELIDONIO
Músicos:
THIAGO TRAJANO (violão / regência)
LUCIANO CORREA (cello)
PRISCILLA AZEVEDO (piano e acordeon)
MARCIO ROMANO (percussão)
Concepção e direção:CHARLES MÖELLER
Orquestração e Arranjos:THIAGO TRAJANO
Arranjos vocais: JULES VANDYSTADT
Cenografia: ROGÉRIO FALCÃO
Figurinos: MARCELO PIES
Iluminação: PAULO CESAR MEDEIROS
Design de som: MARCELO CLARET
Coordenação artística: TINA SALLES
Roteiro / Direção musical:CLAUDIO BOTELHO
Direção: CHARLES MÖELLER
Produção: Möeller & Botelho
Realização: Ministério da Cultura e Governo Federal
Produtores associados: Pathavidhatu Empreendimentos Culturais e Clássica Produções
Assisti hoje ao musical e concordo absolutamente com as sua colocações. Não existe dramaturgia nenhuma, é um show com músicas do Chico! Estrela e Soraya realmente se destacam muito!
ResponderExcluir