quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Ricardo III (RJ)

Em cena, Gustavo Gasparani
Foto: divulgação

Wikipédico

Duas coisas são inegáveis na montagem atual de "Ricardo III": que Gustavo Gasparani é um grande ator e que William Shakespeare é um grande autor. O problema é que essas duas certezas já existiam antes da produção desse espetáculo, agora em cartaz no Mezanino do Sesc Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro. Escrita em 1592, "Ricardo III" tem 54 personagens e narra, a partir do olhar ficcional de Shakespeare, o fim da Guerra das Rosas, em que o último rei da Casa de York foi morto e o primeiro Tudor coroado (Henrique VII era avô da Rainha Elizabeth, essa que reinava quando Shakespeare escreveu a peça). É uma tragédia e, como tal, reflete um mundo em que seus personagens não são senhores dos seus destinos, mas vítimas de um arranjamento que é anterior e superior a todos eles. "Ricardo III" se perpetuou não por narrar a corrupção no governo da Inglaterra nos últimos dias da Idade Média, mas, baseado nas palavras da Rainha Margareth à Rainha Elizabeth, por dizer que todo o mal que fazemos para os outros recairá sobre nós mesmos. A versão dirigida por Sérgio Módena, preocupada em valorizar as potencialidades interpretativas de Gasparani e em contar a história escrita por Shakespeare com apenas um ator, precisou superficializar os personagens e o enredo, transformando o que é tragédia em uma farsa, outro gênero com igual mérito, mas que reflete outro mundo. De fato, a trama é contada, mas seu conteúdo desapareceu.
A farsa vem do teatro alegórico medieval e atinge o seu apogeu na Commedia Dell`Arte, que dará lugar ao romantismo e, depois, ao melodrama. Cheia de relações de causa e efeito, ela reflete uma visão tecnicista de mundo, situando o homem como centro de tudo o que lhe acontece. "Ricardo III" foi escrito como uma tragédia elizabetana que, assim como os gregos e como o Teatro do Absurdo, fala sobre a falta de lógica nos acontecimentos. Coxo e feio, Ricardo era o irmão mais novo de Eduardo IV, que já tinha filhos. Ou seja, nunca seria Rei. Como Édipo, que fugiu de Corinto para não se casar com a mãe e matar o pai, ou como Winnie, que tenta ser feliz apesar de estar enterrada em um buraco, Ricardo foge do seu destino e decide ser rei. Como resposta, seu reinado dura apenas dois anos e é o fim de toda a sua dinastia. Ou seja, ver Ricardo como apenas um homem malvado e sem complexidade é um ponto de vista nada mais que superficial. E, na montagem de Módena e de Gasparani, essa superficialidade encontra eco nos recursos farsescos de que ator e diretor parecem ter precisado se utilizar para dar conta de toda essa complicadíssima história que eles almejaram encenar. A Rainha Elizabeth vira as mãos nos ombros, Dorset vira um jeito de falar lento, os príncipes da Torre viram duas canetas Pilot e, assim, todos os personagens que não desapareceram tiveram que ser atribuídos a marcas fixas que, podendo ser repetidas, garantiriam a rápida identificação e o avanço da narrativa. Como já se disse, não há dúvidas de que há aí uma boa encenação e a prova disso é que todo o enredo fica claro para o público apesar de escassos serem os recursos narrativos, esses explorados na riqueza de suas potencialidades. No entanto, a história é muito mais que apenas o enredo e, assim, esse "Ricardo III" deixa o texto negativamente ainda mais previsível do que já é. (A previsibilidade não só não é um problema para a tragédia - e aqui temos uma farsa - como é o material do que ela é feita.)
É magistral o uso da iluminação no desenho de Tomás Ribas, esse responsável pelos melhores momentos estéticos da peça.  A Torre de Londres, feita com um spot virado para cima, mas vazando luz em circular para baixo, é um exemplo do quão inteligente é o uso do instrumento aqui, garantindo a impressão de altivez necessária para o local representado, mas usando apenas um objeto simples. A trilha sonora de Marcelo Alonso Neves reforça os momentos da narrativa, concordando na concepção do espetáculo em criar a atmosfera do ou para o melodrama. Na mesma direção, vai a cenografia de Aurora dos Campos, oferecendo um quadro branco, canetas Pilot, uma escrivaninha e uma lixeira, produzindo uma sala de aula em que um "resumo" de "Ricardo III" será contado.
Já se viu "Medeia" (direção de Luciano Alabarse) ganhar em uma encenação as cores dos diálogos entre ela e Jasão aumentadas com vistas a explorar a relação marido e mulher e fazer, assim, o público entrar mais fortemente na história trágica. Também já se viu "Esperando Godot" (cena de "Cacilda", de Zé Celso Martinez Corrêa) terem suas falas ditas com emoção com vistas a reforçar o fato de Cacilda Becker ter falecido enquanto interpretava essa história. O teatro é vivo e o espectador que for à plateia esperando ver o que sempre viu deve, na verdade, ficar em casa revendo vinte vezes o mesmo DVD. Mas, no caso desse "Ricardo III", não é possível acreditar que todas as adaptações foram feitas para dizer o que já se sabia: de novo, que William Shakespeare é um grande autor e que Gustavo Gasparani é um grande ator.

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Ficha técnica:
Autor: William Shakespeare
Adaptação: Gustavo Gasparani e Sérgio Módena
Tradução em verso: Ana Amélia Carneiro de Mendonça
Direção: Sérgio Módena
Ator: Gustavo Gasparani
Música original e Direção musical: Marcelo Alonso Neves
Direção de movimento: Marcia Rubin
Cenografia: Aurora dos Campos
Figurino: Marcelo Olinto
Iluminação: Tomás Ribas
Apoio técnico: Liana Leão
Assistente de direção: Erika Riba
Fotografia: Nil Caniné
Projeto Gráfico: Mary Paz Guillén
Visagismo: Marcio Mello
Direção de produção: Alice Cavalcante
Produção executiva: Fernanda Lima
Administração: Sábios Projetos
Produção: Coisas Nossas Produções Artísticas e Sábios Projetos
Realização: Gustavo Gasparani e Coisas Nossas Produções Artísticas


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