sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Preciso andar (RJ)

Suzana Nascimento e Tárik Puggina em cena
Foto: Divulgação

Força, beleza e sensibilidade no novo espetáculo de Ivan Sugahara

É muito bonito ver como a arte pode nos levar para lugares tão específicos e, por isso, tão sensíveis. É para um desses, ou para vários desses, que Ivan Sugahara e Tárik Puggina quiseram nos levar ao idealizar a produção de "Preciso andar" ("Wanderlust", do jovem dramaturgo inglês Nick Payne). Em cena, no Teatro de Arena da Caixa Cultural, Liz (Suzana Nascimento) é uma mulher que chega ao limite de não saber como dizer ao próprio marido que sexo é mais do que apenas penetração. Se ela verbalizar isso de forma clara, é possível que se perca a espontaneidade (e a verdade). Se ela deixar transparecer de outra forma, é possível que ele pense que ela perdeu o interesse sexual nele. Nessa encruzilhada, estão em foco a intimidade da relação a dois, as formas como cada um vive a sua própria sexualidade e a do outro, os diferentes papéis no jogo da conquista e no da manutenção dela. Com extrema sensibilidade e vital força, Sugahara conduz um excelente conjunto de atores em belíssimos trabalhos de interpretação além de brilhantes contribuições da equipe técnica. "Preciso andar" faz 2014 começar bem a programação teatral do Rio de Janeiro.

Liz (Nascimento) é uma urologista, casada com Alan (Otto Jr.), um professor de literatura, e mãe de Theo (Fábio Cardoso), um adolescente em pleno início da vida sexual. Na primeira cena, Liz recebe o paciente Estevão (Tárik Puggina), infectado por Cândida, uma doença sexualmente transmissível. Liz e Estevão foram amigos quando ainda adolescentes e não se vêem desde aquele tempo. A cena em que Liz examina o pênis de Estevão dá o tom do que vamos ver em seguida: o sexo e a sexualidade serão temas tratados sem pudor, mas com muita seriedade. Liz e Alan não fazem sexo há um ano embora o apetite sexual dele por ela continue o mesmo. Liz se sente pressionada (inclusive por ela mesma) a fazer algo em relação a isso, mas não sabe como, nem o quê. Cada quadro proposto pelo texto de Payne funciona, nesse contexto, como um comentário inteligente acerca do assunto. Clara (Cristina Lago), professora colega de Alan, confessa que se masturba com frequência, mas não confessa a imensa solidão em meio a qual ela vive. Théo, apaixonado por uma menina mais velha da escola, pede a ajuda da amiga Michele (Beatriz Bertu) para desvendar os mistérios do corpo feminino que ele só conhece via internet. Entre os dois adolescentes, começa uma sessão de exercícios sexuais frios e meramente investigativos que, no final da peça, farão todo o sentido para compreender Otto, o oposto complementar de Liz, esses dois últimos os esteios de sustentação dessa bela dramaturgia. Uma das marcas mais positivas do texto de Payne é que todos os personagens podem ser analisados como protagonistas de um argumento em favor do tema. Estevão, por exemplo, inclui a realidade de pessoas, casadas há muito tempo, e que, perdendo o interesse sexual pela parceira, passam a querer redescobrir-se no exercício instigante da conquista. Ou seja, por todos os lados, a sexualidade surge em seus mais diversos pontos de vista, todos eles tratados com a devida atenção.

"Preciso andar" é coberto de sutilezas. O problema de Liz é manifesto com expressões delicadas que Suzana Nascimento vai deixando transparecer quando se pune porque não ouviu uma última frase de seu marido, quando se vê aceitando convites para beber de Estevão, quando se sente preocupada com a forma de pensar sobre sexo do seu filho. Dadas as devidas proporções, a mesma sutileza se encontra na forma como o espectador vai tendo acesso a marcas que o fazem pensar no quanto tanto a professora Clara como a aluna Michele, vividas por Lago e por Bertu, se deixam experimentar sexualmente por seus homens, mas também deles almejam um pouco mais. Em Théo, de Cardoso, vemos com clareza o seu medo de não decepcionar sexualmente a sua futura parceira, sutileza essa que afasta a hipótese superficial de que os homens são brutos por egoísmo. Em Estevão, de Puggina, cujo contorno interpretativo é o mais fácil e positivamente visto, vemos sua ansiedade inicial em expôr a uma conhecida um problema de saúde extremamente íntimo e, logo em seguida, em tentar conquistá-la, para depois o encontrarmos mais sóbrio, livre da expectativa de obter um amor que não é seu.  Nesse sentido, o conjunto de trabalhos de interpretação funciona como uma máquina delicada e forte que movimenta a narrativa cênica de forma coesa, íntegra, potente e bela.

De extrema beleza e força comunicativa são o cenário de Aurora dos Campos, a iluminação de Tomás Ribas e o figurino de Ticiana Passos. A estrutura transparente que divide o palco, permite com que os vários ambientes existam em separado, mas sem usos fixos, de forma que o consultório pode virar uma pizzaria, a sala dos professores um bar e o quarto do casal em um quarto de hotel sem problemas na narrativa, mas com positivos efeitos estéticos. Ticiana Passos apresenta excelente trabalho na escolha de calças largas para Estevão e nas trocas não econômicas dos figurinos de Liz, detalhes que ajudam a contar a história, essa bem situada assim no tempo e no espaço.

"Wanderlust" significa "sair da zona de conforto", mas "Preciso andar" tem ainda mais significados possíveis. Pode-se precisar andar para fugir de um problema, pensar nele depois, dar tempo ao tempo, buscando um lugar de descanso que todos os humanos merecem e precisam. Mas pode querer dizer também sair da posição atual, avançar, fazer girar a roda, mudar os ares e mudar de ares. Dirigido por Ivan Sugahara, esse assistido por Lisa Eiras, temos aqui uma peça de arte que tem o mérito de, falando de seres humanos, nos lembrar que fazemos parte dessa espécie e, por isso, somos cheios de complexidade e de beleza. Aplausos!

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Ficha técnica:
Autor: Nick Payne
Tradução: Gustavo Klein
Direção: Ivan Sugahara
Diretora assistente: Lisa Eiras
Assistente de direção: Cynthia Reis
Elenco: Beatriz Bertu, Cristina Lago, Fábio Cardoso, Otto Jr., Suzana Nascimento e Tárik Puggina
Figurinos: Ticiana Passos
Cenário: Aurora dos Campos
Iluminação: Tomás Ribas
Preparação Vocal: Rose Gonçalves
Direção de Movimento: Paula Maracajá
Assessoria de Imprensa: Silpert e Chevalier Comunicação
Fotos: Dalton Valério
Programação Visual: Luciano Cian
Direção de Produção: Carla Torrez Azevedo
Produção Executiva: Carolina Kern
Realização: Nevaxca Produções
Idealização: Ivan Sugahara e Tárik Puggina

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