Atores e público em "Cosmocartas" |
Muito mais que uma excelente homenagem
“Cosmocartas - Hélio Oiticica e Lygia Clark” é uma vibrante experiência estética, uma performance bastante bem conduzida pelos seus realizadores e um trabalho que vale a pena ser visto pelo seu vigor comunicativo. Seu maior mérito enquanto obra artística é o fato de que sua estrutura cênica-narrativa fala a mesma coisa que a dramaturgia, evidenciando uma coerência que é bem-vinda. Partindo das pessoas de Lygia Clark (1920-1988) e de Hélio Oiticica (1937-1980), chegamos as suas obras e aos seus jeitos de pensar o mundo, as pessoas e a arte. Em outra ponta, evolui-se das pessoas de Cristina Flores e de Álamo Facó para o modo como ambos personagens se comportam no mundo, diante das pessoas e o como parecem ver a arte. O resultado é a viabilização de uma intersecção vital que responde às perguntas que a peça propõe com inteligência, força e elegância. Com direção de Renato Linhares (com colaboração artística de César Augusto) e dramaturgia de Pedro Kosovski e de Facó, “Cosmocartas” está em cartaz no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, próximo da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro.
Em linhas gerais, performance é uma variação do teatro. A diferença mais significativa, dentro da semiótica teatral, é que, na performance, o espectador não tem diante de si marcas suficientemente claras para identificar os limites entre ator e personagem e é dessa “confusão” que esse tipo textual se serve. Diferente de uma biografia tradicional, em “Cosmocartas”, as personagens Lygia e Cristina (propositalmente, o mesmo nome da atriz que a interpreta) se misturam, fazendo com que o discurso em primeira pessoa ganhe, assim, uma força diferente. Na dramaturgia, o texto “baila” entre a troca de emails entre Flores e Facó e entre a troca de cartas entre Clark e Oiticica, resultando em uma aparente proximidade entre as reflexões e o mundo dos dois artistas plásticos dos anos 60 e 70 com o público do verão carioca de 2013-2014 e o Brasil teoricamente democrático. A quebra com a arte figurativa nos anos 50 e o manifesto neoconcretista dos anos 60 dialoga fluentemente com a Escadaria do Selarón (Jorge Selarón, 1947-2013), com criminalização das drogas e com a “cafonização” do Rio de Janeiro, essa última uma óbvia referência ao episódio do topless protagonizado por Cristina Flores e estampado na mídia impressa e virtual nas últimas semanas. Essa conversa constrói, em forma e em conteúdo, uma reflexão sobre os ideais de Clark e de Oiticica, concluindo que seus pensamentos sobreviveram felizmente às suas mortes, trinta anos depois, e ainda são atuais e necessários.
No prólogo, o espectador assiste deitado em redes (referência à série “Cosmococas”, da qual fazia parte o projeto “Quase-cinema”, de Oiticica) a um vídeo-documentário sobre a morte de Selarón, fato esse narrado com altas doses de poesia concreta. A palavra-objeto do material literário aponta para o conceito de obra-objeto (em uma rápida definição, quando a arte deixa de ser apenas estética e passa a ser uma coisa com a qual o antes apenas espectador se relaciona agora mais ativamente) que os anos 50 apresentaram ao mundo e que repercutem na forma como a Rua Manoel Carneiro, na Lapa, se tornou uma obra de arte sobre a qual as pessoas pisam. Em seguida, começa a peça, cuja primeira cena se dá em uma sala repleta de colchões (outra obra de Oiticica). Slides são apresentados em meio ao diálogo entre Clark-Flores e Oiticica-Facó, a uma explosão de plástico-bolha,a música e a disponibilização de conhaque, tudo isso com efeitos estéticos de primeiríssima grandeza. O texto foi inspirado no livro “Lygia Clark/Hélio Oiticica: Cartas 1964-1974”, organizado por Luciano Figueiredo, mas se mistura, como já se disse, com a vida supostamente apresentada de seus intérpretes. Convites para que o espectador participe do acontecimento teatral não param de ser enviados, criando uma atmosfera de troca, de interação e de liberdade que é responsável pelo excelente contexto narrativo em que se dá toda a peça, principalmente na cena final. A direção de Renato Linhares oferece um ritmo cálido, e positivamente não linear, no espetáculo que se apresenta ao entardecer. 120 minutos se passam fluentemente sem que haja, em “Cosmocartas”, problemas a serem resolvidos, conflitos, heróis e sagas, mas, ao contrário, uma articulação de quadros que parece tão natural como a “Fita de (August) Möbius” (1865), que inspirou a “Unidade Tripartida”, do suíço Max Bill, obra fundante para o concretismo brasileiro. O momento final, que acontece em meio a uma instalação do coletivo Opavivará!, não encerra definitivamente o espetáculo, mas, de forma positiva, marca intenção de negar molduras,como defenderam Clark e Oiticica em boa parte de suas vidas.
O trabalho de performance/interpretação de Cristina Flores e de Álamo Facó é tão positivo quando se mostra intimista como o é quando explosivo. Se, em um, temos o estabelecimento de relações mais próximas entre o público e os personagens, em outro, temos o espetáculo no seu sentido mais pleno. A não linearidade da narrativa já apontada se vê na evolução desses momentos em que a dupla de intérpretes/performers se mostra principalmente bastante receptiva à participação que eles almejam. Há intensidade e plenitude, força e carinho na viabilização da narrativa.
Pela possibilidade de grande número de reflexões, mas principalmente porque todas elas estão bem articuladas, “Cosmocartas - Hélio Oiticica e Lygia Clark” vale a pena ser visto como um espetáculo que não apenas homenageia dois grandes nomes da cultura brasileira, mas dá continuidade às suas proposições. Aplausos.
Ficha técnica
Invenção: Álamo Facó, Cristina Flores, Pedro Kosovski, Maria Flor Brazil, Renato Linhares e Opavivará!
Elenco: Álamo Facó e Cristina Flores
Dramaturgia: Pedro Kosovski e Álamo Facó
Colaboração dramatúrgica: Cristina Flores e Renato Linhares
Direção: Renato Linhares
Diretora assistente: Laura Samy
Colaboração artística: Cesar Augusto
Luz: Tomás Ribas
Figurino: Ticiana Passos
Direção de arte: Opavivará!
Trilha sonora/Som: Gabriel Fomm
Projeto gráfico: Estúdio▲ | www.triangulo.nu
Documentação e vídeo: Maria Flor Brazil
Fotografia: João Penoni e Maria Flor Brazil
Administração financeira: Rodrigo Gerstner
Produtora assistente: Luana Carvas
Produção executiva: Daniela Paita
Direção de produção: Camila Vidal
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