segunda-feira, 19 de setembro de 2016

My fair lady (SP)

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Foto: divulgação


Daniele Nastri, Paulo Szot, Eduardo Amir e grande elenco

A glória do teatro musical inclusive no Brasil

A atual montagem brasileira de “My fair lady” é uma das produções mais bonitas que o nosso país já produziu em teatro musical em sua história recente. Dirigida por Jorge Takla, com Daniele Nastri, Paulo Szot e Sandro Christopher nos papeis principais, ela celebra os sessenta anos de uma das mais belas narrativas do ocidente. As canções de Frederick Loewe com letras de Alan Jay Lerner, que adaptaram a história de George Bernard Shaw, surgem aqui intactas em sua enorme beleza e complexidade na versão de Claudio Botelho com direção musical de Luis Gustavo Petri. O cenário de Nicolás Boni, a iluminação de Ney Bonfante e principalmente o figurino de Fábio Namatame são nada menos que exultantes. Quem assistir saberá, da primeira à última cena, que está diante de uma obra prima em todos os seus aspectos. O espetáculo fica em cartaz até 6 de novembro no Teatro Santander, na zona sul de São Paulo. É para rever muitas vezes!

“Pigmalião”, de George Bernard Shaw
A origem de “My fair lady” está em na peça “Pygmalion”, escrita na primavera de 1912, do irlandês George Bernard Shaw (1856-1950). Para escrevê-la, ele se baseou na lenda grega conhecida pelo mesmo título que aparece no Livro X de “Metamorfoses”, de Ovídio (43 a. C. – 18 d. C.). Na história, o rei Pigmalião era um escultor na ilha grega de Chipre que, desgostoso com as mulheres reais, esculpiu uma perfeita em mármore. Encantado por sua criatura idealizada, passou a dar-lhe presentes, imaginar as respostas dela às suas perguntas e, perdidamente apaixonado, ver-se casado. No festival de Vênus, a deusa romana do amor, ele pediu em oração que sua obra ganhasse vida, no que foi concedido. Da união entre eles, nasceu uma filha, Pafos, cujo nome batizou uma região em Chipre. A lenda, que teria aparecido antes em “A história de Chipre” (222 – 206 a. C.), do norte-africano Filostefano, inspirou diversas obras de arte nos últimos vinte e dois séculos. Um melodrama de Jean-Jacques Rousseau (1762), um poema de Johann Wolfgang Goethe (1767), uma opereta de Franz von Suppé (1863) e outra de W. S. Gilbert (1871) estão entre as mais famosas antes da peça de Shaw.

Mrs. Patrick Campbell ( à esquerda) 
“Pigmalião”, sobre a qual o crítico Eric Bentley disse ser uma peça biográfica, tem fáceis relações com a vida do dramaturgo/diretor/crítico teatral George Bernard Shaw. O modo duro como ele foi criado e como lidava com suas relações afetivas aparece em várias análises que aproximam o autor do personagem Mr. Higgings. A peça, como várias outras antes dela, foi escrita para a atriz inglesa Beatriz Stella Tunner (1865-1940), conhecida por Mrs. Patrick Campbell (nome do primeiro marido dela), por quem, acredita-se, Shaw nutria um amor platônico. Eles se conheceram no fim do século XIX, quando a carreira dele despontava e a dela já estava plenamente estabelecida, mas se aproximaram quando “Pigmalião” começou a ser produzida por ela com direção dele em Londres. Mrs. Campbell tinha 49 anos na estreia do espetáculo (depois Gertrude Lawrence fez o papel na Broadway aos 47 e Bibi Ferreira no Rio aos 40.) e ainda continuou a temporada em Nova Iorque e pelo mundo até o início dos anos 20.

A versão inglesa de “Pigmalião” foi a quinta, vindo depois de uma austríaca (outubro de 1913, uma alemã, uma sueca e de uma americana (março de 1914). Os ensaios foram conturbados principalmente por causa das brigas entre o ator Herbert Beerbohm Tree (1853-1917), que interpretava Higgins, e o dramaturgo/diretor. O primeiro, um famoso intérprete shakespeariano, era politicamente conservador enquanto o segundo apaixonadamente socialista (tendo inclusive apoiado o nazismo em célebres declarações). “Pigmalião”, que estreou em abril de 1914, foi um sucesso na capital inglesa, ficando dezoito meses em cartaz. Quando o diretor se ausentava, o final era modificado por Tree para um diferente do que Shaw queria. Nessa versão alternativa, Higgins atirava sobre Eliza um bouquet de flores como se a pedisse em casamento. No final oficial, publicado em 1916, Higgins debochava do suposto casamento entre Eliza e Freddy. No escrito para a montagem de 1920, Shaw exigia que Higgins visse Eliza partir e gritasse “Galatea!” depois, assumindo que havia construído a mulher perfeita.

Em 1938, Shaw assinou o roteiro da primeira versão para o cinema da peça, onde várias cenas importantes do que veio a ser depois “My fair lady” – como os exercícios de fonética de Eliza, o baile na Embaixada e o diálogo da cena final – apareceram pela primeira vez. Dirigido por Anthony Asquiteh e por Leslie Howard, o filme tinha Howard (que fez Ashley em “... E o vento levou”) no papel de Higgins e a estreante Wendy Hiller no de Eliza. A obra recebeu indicações ao Oscar de Melhor Ator (Howard), Melhor Atriz (Hiller) e de Melhor Filme, vencendo o prêmio de Melhor Roteiro Adaptado (Shaw, que também havia ganhado o Nobel de literatura em 1925). Nos anos seguintes, houve várias tentativas de transformar a peça e o filme para musical, entre elas, a de Cole Porter e a da dupla Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, mas esses projetos não foram adiante talvez principalmente por causa dos direitos autorais. (Shaw não havia aprovado adaptações anteriores de suas peças para musicais.)

O musical de Frederick Loewe e de Alan Jay Lerner
Em 1954, o dramaturgo da peça George Bernard Shaw e o produtor do filme Gabriel Pascal já haviam falecido e as negociações para transformar a obra em musical puderam ser reiniciadas. Frederick Loewe (1901-1988) e Alan Jay Lerner (1918-1986) já eram conhecidos na Broadway por “Brigadoon” (1947) e por “Paint your wagon” (1951), mas suas intenções para “My fair lady” eram ainda mais altas. “Pigmalião”, para eles, era uma história de amor apesar de não haver beijo, romance e, mais difícil ainda, nem casamento. Os diálogos eram extremamente racionais e, por isso, as melodias precisavam equilibrar com sentimento sem tornar tudo açucarado. Michal Redgrave, Noël Coward e George Sanders foram cogitados para o papel de Higgins (que não foi escrito para um cantor que atuasse, mas para um ator que cantasse) e Mary Martin para o de Eliza, mas nada havia sido fechado. Foi aí que entraram os britânicos Reginald Carey (Rex) Harrison (1908-1980), Stanley Holloway (1890-1982) e a recém chegada à Broadway Julie Andrews, que os autores haviam assistido em “The Boy Friend”. No teste, em março de 1955, Andrews cantou “Getting to know you” (de “The king and I”) e ensaiou algumas cenas de “My fair lady”. Três meses depois, soube que havia sido aprovada. Dirigido por Moss Hart, os ensaios começaram em janeiro de 1956 e a peça fez seus primeiros ensaios abertos em fevereiro em New Heaven, onde duas canções e uma coreografia foram cortadas e a cena anterior ao baile foi criada. Em Nova Iorque, a estreia aconteceu em 15 de março de 1956. Foi a primeira vez que Rex Harrisson cantou diante de uma orquestra e que Julie Andrews criou um personagem no teatro profissional.

O musical começa em uma noite de março, em Convent Garden, na frente ao Royal Opera House e à Igreja de St. Paul (conhecida como Igreja dos Atores) em uma Londres do período eduardiano. O tempo ensaia uma chuva enquanto os aristocratas estão saindo de uma sessão da ópera “Fausto” a que acabaram de assistir e buscam por transporte para ir embora. Entre eles, estão o jovem Freddy Eynsford-Hill (Frederico Silveira) e sua mãe que esbarrou em uma florista, fazendo com que suas flores caíssem no chão. Por isso, ela agora tenta convencê-los a ajudar-lhe comprando uma violeta desperdiçada. A voz de Eliza Doolittle (Daniele Nastri), a vendedora ambulante, ecoa a pequena multidão de transeuntes. A notícia de que há um homem anotando tudo o que ela diz a deixa apavorada, com medo de ir presa injustamente, e todos começam a defendê-la. Henry Higgins (Paulo Szot) exibe a habilidade de descobrir, pelo modo como as pessoas falam, suas origens (“Why can’t the English?”). O “cockney accent” de Eliza sinaliza para ele que ela veio de Lisson Grove, uma região pobre ao norte de Londres, onde ficava um orfanato para meninas órfãs (Eliza é órfã de mãe). Higgins não é detetive, mas um mundialmente conhecido estudioso de fonética. Ao Colonel Pickering, outro estudioso do mesmo tema, ele afirma que, se Eliza falasse corretamente, poderia ser confundida com uma princesa ou, ao menos, trabalhar como florista em uma loja. O quadro termina com a bela canção “Wouldn’t it be loverly” (“Bão demais”), em que há a coroação de Eliza como, desde já, a princesa da sarjeta.

A cena seguinte acontece na Rua Wimpole, número 27A, na zona norte de Londres, onde mora Higgins, que está hospedando Colonel Pickering (I’m an ordinary man”). (Nessa casa, na vida real, morou o renomado linguista Professor Horace Wilson (1786-1860), em quem Shaw se baseou para escrever Henry Higgins. Há outras teorias que aproximam o personagem do foneticista Henry Sweet (1845-1912) e do poeta Robert Bridges (1844-1930)) Eliza aparece, tentando oferecer trabalho a Higgins como seu professor particular, o que ele obviamente rejeita. Depois de uma sessão de grosserias, porém, os dois estudiosos fazem uma aposta. Durante seis meses, Eliza ficaria com eles, com as despesas pagas e roupas novas, exercitando um novo jeito de falar. Se, ao final do período, fosse confundida com uma dama em um baile no Palácio de Buckingham, ela ganharia uma quantia em dinheiro suficiente para abrir seu próprio negócio e recomeçar a vida. Se sua verdadeira origem fosse descoberta, seria enforcada. Ela aceita a proposta e as aulas começam.

O beberrão Alfred Doolittle (Sandro Christopher), pai de Eliza, é, então, avisado de que a filha foi morar na zona nobre da cidade e pediu lhe entregassem apenas uma gaiola e um leque chinês, mas não são suas roupas (“With a little bit of luck”). Almejando participar também da nova condição financeira da filha, ele vai em busca de Higgins. O professor fracassa na tentativa de mostrar ao velho que a garota não serve ali como cortesã, mas que é apenas aluna dos dois cavalheiros. Por fim, dá a ele dinheiro e manda que, em resposta a uma solicitação americana de uma palestra sobre moralidade, o nome de Doolittle seja incluso como sua sugestão aos organizadores do evento.

Os exercícios com Eliza são infindáveis e cansativos (“Just you wait” e “Poor Professor Higgins”), entrando madrugada a dentro. Um dia, quando todos estão exaustos, Higgins deixa de lado a grosseria e, tocando na aluna pela primeira vez, fala de um jeito mais dócil com ela sobre a importância do que ela está aprendendo. Então, ela consegue, pela primeira vez, pronunciar corretamente o trava-língua “The rain in Spain stays mainly in the plain”, que, embora incorreto em termos de gramática (o correto seria “the rain in Spain falls mainly on the plain”), lhe ajuda a compreender melhor o som de “ain”. (No Brasil, na versão de Henrique Pongetti, a frase ficou “O rei de Roma ruma a Madrid”. Na de Claudio Botelho, “Atrás do trem as tropas vêm trotando”.) A vitória (“I could have dance all night”, a música tema) é comemorada por todos e inspira Higgins a levar Eliza para um teste no Hipódromo de Ascot (“Ascot Gavotte”), onde sua mãe tem um camarote. Lá, Eliza mostra que já sabe falar as palavas corretamente, mas também que ainda não tem conteúdo. Freddy Eynsford-Hill a reencontra sem reconhecê-la e se apaixona por ela, passando a frequentar a porta de Higgins toda noite à espera de um sinal (“On the street where you live”).

O primeiro ato termina com a grande prova, um baile no Palácio de Buckingham oferecido à Rainha da Transilvânia. Nele, um antigo aluno de Higgins, Zoltan Karpathy, que fala 32 idiomas, ajuda a monarca a reconhecer quem tem ou não sangue real no evento. Eliza, vestindo um maravilhoso vestido e uma tiara de diamantes, dança com ele, cumprindo a etapa final de sua avaliação (“Embassy waltz”).

No segundo ato, muito mais dramático que o primeiro, conhecem-se os resultados da transformação de Eliza (“You did it”). Nesse ponto da dramaturgia, o público está diante de um Higgins que soube reconhecer a flor na sarjeta, mas que, quando olha para ela, só consegue ver a si próprio em um exercício extremamente egóico. Seus modos cada vez mais grosseiros revelam a inversão dos personagens: uma Eliza forte e um professor sensível. Com Freddy à espera (“Show me”), ela vai embora da casa de Higgins (“A hymm to him”) e se reencontra com seu pai. Alfred Doolittle fez sucesso como palestrante sobre moralidade e, rico como jamais esteve, amarga o medo de ficar pobre e sobretudo a iminente prisão que o casamento com sua esposa, a madrasta de Eliza, lhe impõe (“Get me to church on time”). Nas cenas finais, de um modo absolutamente delicado, complexo e profundo (“Without you” e “I’ve grown accustumed to your face”), o estado da questão entre Higgins e Eliza se revela plenamente e, a partir disso, pode o público decidir sobre o final.

“My fair lady”, na Broadway, nasceu como uma das produções mais elogiadas de todos os tempos desde sua estreia, ficando seis anos em cartaz em um total de 2.717 apresentações, um recorde na época. Ganhou indicações ao Tony de Melhor Coreografia, Atriz (Julie Andrews) e Ator Coadjuvante (Robert Coote e Stanley Holloway) e os troféus de cenário, figurino, direção musical e os de Melhor Direção (Moss Hart), Ator (Rex Harrison) e Melhor Musical. As remontagens de 1976, 1981 e 1993 tiveram sucesso similar. As produções inglesas também. Pelo mundo afora, em vinte e dois países de onze idiomas diferentes, incluindo o Brasil, nada diferente aconteceu.

Jayme Costa, Bibi Ferreira e Paulo Autran
Antes dessa versão que aqui se analisa, no Brasil, houve montagens oficiais em 1962 e em 2007. A primeira, chamada “Minha Querida Lady”, foi produzida por Oscar Ornstein e por Victor Berbara e traduzida por Henrique Pongetti. Bibi Ferreira e Paulo Autran (e Edson França) interpretaram Eliza e Higgins ao lado de Jayme Costa (Doolittle) durante os três anos que a peça ficou em cartaz. (Marilia Pêra era uma das criadas.) Quarenta e cinco anos depois, Jorge Takla assinou uma versão do musical com Daniel Boaventura e com Amanda Costa nos papeis de Higgins e de Eliza, com Tadeu Aguiar como Colonel Pickering e Francarlos Reis como Alfred Doolittle. Com as mesmas versões de agora, assinadas por Claudio Botelho, a peça tinha figurinos de Fábio Namatame também, mas o cenário era de Daniela Thomas. Essa montagem ganhou, entre outros prêmios, o APCA (Associação de Críticos de Arte de São Paulo) de Melhor Espetáculo.

Na televisão brasileira, houve ainda a novela “Pigmalião 70”, produzida pela Rede Globo, em 1970. Ela foi escrita por Vicente Sesso e adaptava, para o horário das 19 horas, a peça de Shaw. Na história, o jovem Nando (Sérgio Cardoso) aprendia a se comportar com a aristocrática Cristina (Tônia Carreiro), que se apaixonava pelo aluno.

Ainda parte das comemorações dos sessenta anos de “My fair lady”, Julie Andrews assina a direção de uma montagem do musical que estreou, no último dia 30 de agosto em Sydney, na Austrália.

Julie Andrews x Audrey Hepburn: uma das histórias mais curiosas de Hollywood
Jack Warner, que havia construído o teatro onde a peça estreou na Broadway (Mark Hellinger Theater, hoje uma igreja), estava presente na première de “My fair lady” e, cumprindo um roteiro que acontecia normalmente com os grandes sucessos, tratou de adaptar o espetáculo para o cinema. Os direitos foram comprados em 1962 (por 5,5 milhões de dólares, vencendo a proposta da MGM), quando a temporada em Nova Iorque terminou. Alan Jay Lerner escreveu a adaptação e o premiadíssimo George Cukor foi chamado para dirigir (depois que Vicent Minelli cobrou um cachê alto demais). Rex Harrison foi convocado para o papel de Higgins (depois que Peter O’Toole fez o mesmo que Minelli e que Cary Grant anunciou publicamente que se negaria até mesmo a ver o filme se Harrison não o fizesse). Para o personagem de Alfred Doolittle, James Cagney foi chamado, mas se negou a aprender cockney accent de maneira que Stanley Holloway eternizou o personagem.

O caso mais curioso da versão cinematográfica foi a não escalação de Julie Andrews para o papel de Eliza Doolittle. Ela tinha recebido indicações e troféus pelo papel que desempenhou durante quatro anos (dois na temporada da Broadway e quase outros dois na de Londres) e estava em cartaz novamente em Nova Iorque com “Camelot”, ao lado de Richard Burton, o musical de Loewe e de Lerner que veio logo depois de “My fair lady”. Até 1963, tinha aparecido algumas vezes na televisão (incluindo, até hoje, o quarto maior recorde de audiência na história da programação televisiva americana, o musical “Cinderella”, de 1957), mas nunca no cinema até então. Mesmo assim, Jack Warner não a considerava nem fotogênica, nem sexy e, por isso, não a convidou.

A belíssima Audrey Hepburn (1929-1993) nunca havia participado de um fracasso comercial na história do cinema. Ela tinha recentemente protagonizado com sucesso “Breakfast at Tifany’s”, de 1961, dirigido por Blake Edwards (com quem Julie Andrews se casou em 1969), e permanecia nas graças de Hollywood. Quando foi chamada para interpretar Eliza, sabia que seria dublada, mas não conhecia exatamente em quais lugares do filme isso aconteceria. Por isso, fez questão de estudar as canções e gravá-las ao vivo (como também fez Rex Harrison cuja voz original é a que aparece na obra). No meio do processo, para sua decepção, ouviu que Marni Nixon (1930-2016), cuja voz ouvimos em “West Side Story” (“Amor sublime amor”) e em “The king and I” (“O rei e eu”) e que fez depois uma das freiras em “The sound of music” (“A noviça rebelde”), a estava dublando em todas as canções. Ficou furiosa e abandonou os estúdios (desculpando-se depois e retornando ao trabalho). O filme foi lançado em 9 de novembro de 1964. Inteiramente gravado em estúdio, quase como um teatro filmado, ele custou 17 milhões de dólares.

Audrey Hepburn e Julie Andrews
Em contrapartida, Julie Andrews foi convidada por Walt Disney para protagonizar “Mary Poppins”. Na entrega do Oscar de 1964, a versão cinematográfica de “My fair lady” ganhou doze indicações e venceu em oito delas, incluindo Melhor Ator (Harrison) e Melhor Filme. Audrey Hepburn, porém, não foi nem mesmo indicada. Julie Andrews, em seu primeiro filme, ganhou o seu único Oscar até hoje encerrando assim uma das mais “cabeludas” histórias de Hollywood. Em um documentário de 1986, Hepburn disse ter se arrependido de ter feito o filme e não ter usado sua influência para eternizar Andrews como Eliza Doolittle, aquele que teria sido, ao lado de Maria von Trapp, seu maior papel. (Por outro lado, vale lembrar que Hepburn criou a Gigi no musical homônimo no teatro, mas foi Leslie Caron quem fez seu papel no cinema. E que Julie Andrews fez, em “A noviça rebelde”, o personagem que Mary Martin havia inaugurado no palco.)

A versão de 2016
A versão atual dirigida por Jorge Takla, em associação com Tânia Nardini, representa a glória do teatro musical no Brasil. Produzida por ele em parceria com a EGG Entretenimento e com a IMM Esporte e Entretenimento, a montagem atinge níveis de qualidade altíssimos somente comparáveis a “O violinista no telhado” e a “O mágico de Oz” (ambos dirigidos por Charles Moeller e por Claudio Botelho), a “O rei e eu” (dirigida também por Takla) e a “Wicked” (da Time for Fun, atualmente em cartaz). Com 350 profissionais envolvidos, trinta atores e quatorze músicos na orquestra, é uma produção em que o largo investimento se equilibra com excelente padrão de qualidade.

Quanto à estética, um dos melhores aspectos do espetáculo é o modo como ele se relaciona com o filme. Por uma questão óbvia, a obra cinematográfica é eterna (a teatral é perene) de modo que, no imaginário do público, sua contribuição é muito valiosa para a construção do sentido da peça. Takla conversa com essa abordagem, estabelecendo pontes que aproximam a audiência da história com fluência e carisma, mantendo, claro, a relação com as versões teatrais e a sua originalidade. Por ser um clássico, é vital que novas versões de “My fair lady” não se distanciem do que se espera, mas surpreenda para além disso. E esse é o caso aqui felizmente.

Alguns exemplos em que a atual montagem ratifica (o que não é o mesmo que repetir nem que copiar) o filme valem ser destacados. Higgins finaliza a cena de abertura, jogando moedas sobre a cesta de flores de Eliza. Metade delas cai dentro da cesta, mas a outra desaba no chão, o que sinaliza a displicência por sobre alguém que, para ele, não tem qualquer valor. Eliza usa verde nos exercícios, branco na cena do baile e rosa no final. Ainda sobre o figurino, os tons de “Ascot Gavotte” são o preto e o branco para os participantes em geral, cinza para os protagonistas da cena e um toque de vermelho em Eliza. A Rainha, quando vê a florista no baile, encosta em seu queixo ao elogiá-la quando ela se curva em um gesto nobilíssimo. Esses detalhes, ao lado daqueles em que essa montagem se faz ímpar, reforçam o sentimento de que se está revivendo a memorável experiência estética promovida na produção original de Moss Hart e na adaptação de George Cukor em todo o seu esplendor.

Porque não corrompidas pelos enquadramentos fílmicos, as coreografias de Tânia Nardini podem ser vistas em sua máxima potência aqui para o deleite do público do espetáculo teatral. Destacam-se, além da cena do baile, os dois números excelentes de Alfred Doolittle: “Um pouquinho assim de sorte” e “Vou me casar de manhazinha”. Vibrantes, ambos oxigenam a racionalidade da peça com humor em movimentos complexos, mas aparentemente leves. A direção musical de Luis Gustavo Petri, se talvez tenha precisado se adaptar a um número mais reduzido de músicos do que na montagem original dos anos 50, teve aqui ainda mais mérito, porque, em nenhuma só nota, se vê alteração nas partituras originais. Eis um trabalho magnífico em que se aplaude também a contribuição de Tocko Mickelazzo na assinatura do desenho de som.

Como sempre, as versões de Claudio Botelho são deliciosas. Com habilidade já tantas e repetidas vezes destacada, ele ultrapassa também aqui qualquer barreira do idioma, fazendo com que as músicas pareçam ter sido compostas originalmente em português. Quem conhece as letras originais facilmente reconhece que não há transformações significativas no sentido e que a fluência da linguagem empregada só torna tudo mais delicioso. Excelente!

A luz de Ney Bonfante e o cenário de Nicolás Boni trabalham juntos na providência de ambientes que valorizam o musical, mas também sua audiência. O modo como o espaço é preenchido, estruturando-se em profundidade, em urdimento e em largura, evolui para quadros cada vez mais belos: Convent Garden, Wimpole Street, Ascot Racecourse e Buckingham surgem tão visualmente potentes quanto o gabinete de Higgins, onde a maior parte da narrativa se dá.

No entanto, ao lado das canções e de suas defesas, o mais glorioso elemento dessa montagem de “My fair lady” é o figurino de Fábio Namatame (com perucas assinadas por Feliciano San Roman e visagismo por Duda Molinos). Se o guarda-roupa das cenas em Convent Garden impressiona, há que se esperar por “Ascot Gavotte” e principalmente pelo baile para sentir o brilho dessa produção. Se for possível destacar uma caracterização, vale citar o vestuário da Sra. Higgins (Eliete Cigaarini), mantendo a crítica originalmente feita por Cecil Beaton na montagem original e no filme à afetação aristocrática do período eduardiano. Demais!!


Sandro Christopher e elenco

Sandro Christopher, Daniele Nastri e Paulo Szot brilham em excelente elenco
Quanto às interpretações, Eduardo Amir (Colonel Pickering), Frederico Silveira (Freddy Eynsford-Hill), Eliete Cigaarini (Sra. Higgins) e Daniela Cury (Sra. Pearce) fazem belas participações, explorando suas figuras em colaborações elogiosas. O coro, com atuações cheias de mérito em “Canção dos Serventes”, “Que loucura” e em “Mas você venceu”, enaltece os valores da peça como um todo. Em destaque, Sandro Christopher, um dos nossos mais célebres (e melhores) cantores líricos, apresenta trabalho brilhante, tornando seu Alfred Doolittle ainda mais delicioso. O enorme carisma de sua atuação mantém em cena a vitalidade do personagem mais querido dessa narrativa.

Se havia alguma dúvida sobre a artista adequada para o papel de Eliza Doolittle, depois do que aconteceu com o filme, ficou claro para o mundo que o personagem somente pode ser interpretado por uma soprano potente, educada e habilidosa que se disponha também a bem atuar. (Vale, sobre isso, uma história narrada por Julie Andrews em sua biografia. Na temporada de estreia na Broadway, Maria Callas foi assistir à peça e ficou chocada ao saber que, em uma época em que não existiam microfones de lapela, apresentava-se a peça oito vezes em sete dias. “No auge de uma temporada, eu raramente me apresento duas vezes por semana. Como você consegue fazer isso oito vezes?” – questionou a diva.) A goiana Daniele Nastri, com mestrado em performance musical na Inglaterra, exibe excelente trabalho em termos de intepretação, com destaque para sua contribuição musical. A linda “Mas era bão demais”, as dificílimas “Você vai, Enri Higgins”, “Faça” e “Sem você” e a clássica “Agora eu vou dançar” surgem em máxima potência em uma atuação de enorme grandeza.

Paulo Szot, ator brasileiro destaque no cenário mundial também no mundo lírico como barítono, vencedor do Tony de Melhor Ator por sua participação na montagem de “South Pacific” na Broadway, é o maior destaque dessa versão de “My fair lady”. O intérprete, além de atribuir ao seu Higgins a afetação irônica (e agressiva) criada por Rex Harrison através, sobretudo, de uma dicção perfeita (exigida pelo maestro austríaco Franz Allers da primeira versão), traz ao personagem o preciosismo do canto. “Mais aparece uma mulher” e “Não são como eu” brilham, mas “Minha bela lady”, que encerra o espetáculo, define sua participação como um dos pontos altos da temporada brasileira. Ele, que tem uma belíssima voz, defende um protagonista afiado, sensível e másculo, estabelecendo a complexidade da relação entre Eliza e seu personagem bem como os contornos narrativos dela. Aplausos efusivos!

Um programa imperdível!
O título “My fair lady” tem origem em três fontes: o subtítulo da peça “Pygmalion”, de George Bernard Shaw”, que é “Fair Eliza”; uma referência a uma canção homônima de George Gershwin (com letra de Buddy G. DeSylva e de Ira Gershwin), do musical “Tell me more”, de 1925; e a cantiga de roda “London bridge is falling down”, em que aparece a frase “My fair lady” no fim de cada estrofe. (Julie Andrews diz que ela pode ser ouvida rapidamente no Overture.) Ele veio como uma substituição ao título original, que era “Fanfarron” (“Come to the ball” e “Lady Eliza” também foram outros nomes planejados). O primeiro destacava Higgins como aquele que destrói as próprias possibilidades. O segundo, e oficial, destaca Eliza. A peça, na verdade, é sobre o modo como ambos personagens se modificam a partir da relação entre eles. Essa é uma bela lição que, permanecendo eterna e universal, se rejuvenesce principalmente em produções tão valiosas como essa assinada por Jorge Takla. Excelente!

*

FICHA TÉCNICA
Baseado no clássico “Pigmalião”, de George Bernard Shaw
Músicas: Frederick Loewe
Texto e Letras: Alan Jay Lerner
Versão Brasileira: Cláudio Botelho
Direção Geral: Jorge Takla
Direção associada e Coreografia: Tânia Nardini
Direção Musical: Luis Gustavo Petri
Cenário: Nicolás Boni
Figurino: Fábio Namatame
Design de Luz: Ney Bonfante
Design de Som: Tocko Mickelazzo
Visagismo: Duda Molinos
Perucas: Feliciano San Roman
Produtora e diretora da divisão de teatro da IMM: Stephanie Mayorkis

Elenco:
Paulo Szot (Prof. Henry Higgins)
Daniele Nastri (Eliza Doolittle)
Sandro Christopher (Alfred Doolittle)
Eduardo Amir (Colonel Pickering)
Frederico Silveira (Freddy Eynsford- Hill)
Eliete Cigaarini (Sra. Higgins)
Daniela Cury (Sra. Pearce)

Ana Luiza Ferreira (ensemble feminino)
Ana Paula Villar(ensemble feminino)
Carol Costa (ensemble feminino)
Claire Nativel (ensemble feminino)
Debora Dib (ensemble feminino)
Gisele Jesus (ensemble feminino)
Janaina Bianchi (ensemble feminino)
Luana Zenun (ensemble feminino)
Maria Isabel Nobre (ensemble feminino)
Talitha Pereira(ensemble feminino)

Cadu Batanero (ensemble masculino)
Cayo Caesar (ensemble masculino)
Daniel Cabral (ensemble masculino)
Diego Luri (ensemble masculino)
Elton Towersey (ensemble masculino)
Felipe Tavolaro (ensemble masculino)
Fernando Cursino (ensemble masculino)
Paulo Grossi (ensemble masculino)
Marcio Louzada (ensemble masculino)
Rafael Villar (ensemble masculino)
Mariana Barros (swing feminino)
Thiago Jansen (swing masculino/dance capitan)

*o elenco deste espetáculo poderá sofrer alterações sem aviso prévio

“My fair Lady” é uma produção Takla Produções, EGG Entretenimento e IMM Esporte e Entretenimento.
Apresentação: Ministério da Cultura, Mercado Livre e Mercado Pago
Patrocínio: Renner e Zurich Santander Seguros
Apoio: Estácio e Colgate

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