Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatralFoto: Igor Motta e Rita Aragão
Gilson de Barros e Licurgo |
Ótima peça sobre um dos maiores poetas da história do Brasil
“Boca do Inferno” é um ótimo espetáculo teatral a partir de texto original de Adailton Medeiros sobre o poeta baiano Gregório de Matos Guerra (1636-1696). Considerado o primeiro poeta brasileiro, ele é uma figura muito interessante na história do Brasil pelo modo como, através de seus textos, podemos chegar a um panorama do século XVII, em pleno período colonial. A peça, com belíssimas atuações de Andréa Mattar e de Licurgo, mas principalmente de Gilson de Barros, ficou em cartaz no Parque das Ruínas, em Santa Teresa, durante os meses de setembro e de outubro de 2017, mas voltará à grade programação carioca em janeiro de 2018 no Teatro Municipal Café Pequeno, no Leblon. Vale a pena esperar para ver!
Excelente dramaturgia de Adailton Medeiros
Em termos de dramaturgia, o melhor de “Boca do Inferno” é reparar como o texto não se deixa vencer pela força da poesia de Gregório de Matos. O personagem se mantém, ao longo de toda a narrativa, vivo em seus dilemas, em suas certezas, em suas paixões e contradições. Adailton Medeiros, que escreveu a peça há quinze anos, permite que alguns textos do poeta entrem em cena, bem como encara de frente a organização de sua biografia, mas o personagem título, em nenhum momento, vira objeto de uma homenagem superficial como tantas e incontáveis vezes o teatro fluminense tem visto por aí com outras pessoas. É uma dramaturgia muito bem escrita.
Gregório de Matos Guerra era filho de ricos portugueses radicados no Brasil e nasceu em uma época em que, pela união das coroas de Portugal e de Espanha, era regido pelo Rei Felipe IV de Castela, o monarca então mais poderoso do mundo. Depois de uma primeira formação na colônia, Guerra foi para Lisboa e depois Coimbra, onde se formou em Direito e entrou em contato com a gloriosa literatura do Século de Ouro Espanhol: Miguel de Cervantes (1547-1616), Góngora (1561-1627), Lope de Vega (1562-1635), Quevedo (1580-1645), Calderón de la Barca (1600-1681), Gracián (1601-1658), entre muitos outros. Nas questões estéticas, o grupo publicamente guerreava entre si. Uns defendiam os versos mais livres, o apego ao popular, temas políticos ou de ordem mais humana. Outros, flertando com o classicismo francês, cobravam mais rigidez formal e maior apuro nas escolhas das palavras e dos assuntos. Matos se situava no primeiro grupo.
De volta à Bahia, em 1679, serviu como desembargador e tesoureiro mor da sé católica. A colônia não era muito diferente do que hoje no modo como se dão as relações sociais. Indígenas catequizados pelos jesuítas de um lado, indígenas “selvagens” de outro; negros escravos aqui, negros quilombolas acolá; um pequeno grupo de portugueses muito ricos donos de grandes extensões de terra versus portugueses e luso-brasileiros pobres. Em todo o canto, guerras entre facções com cada povo tentando se impor sobre o outro na posse das terras e na conquista e manutenção do poder. Gregório de Matos Guerra, como qualquer europeu do século XVII, frequentemente se via confuso sobre o que pensar de tudo isso. Para muitos, negros e índios não eram considerados seres humanos. Para outros vários, eram humanos menores. Para quase ninguém, eram seres humanos iguais a qualquer um. As divisões religiosas também rachavam o contato entre as pessoas. Na Idade Moderna (1453-1789), a limpeza de sangue era uma questão importantíssima, pois não bastava ser católico, mas era preciso, para ascender socialmente, provar que, atrás de si, não havia nenhum antepassado nem judeu, nem muçulmano. Os “cristãos velhos”, como a família Matos Guerra, estavam no topo máximo da pirâmide.
Na dramaturgia de “Boca de Inferno”, todo esse universo complexo aparece. Nesse sentido, em vários momentos, o público se vê diante de um protagonista cheio de preconceitos raciais, religiosos, de gênero e de orientação sexual que, longe de tornar o personagem menos delicioso, o tornam vivo como um homem que viveu o seu tempo. A partir do seu lugar privilegiado, encontrar em sua obra tantos textos extremamente ácidos e em sua vida tanto comportamento rebelde é o que justifica sua importância trezentos anos depois para além da beleza de sua poesia. Por isso, eis aqui uma dramaturgia muito bem vinda pela oportunidade que ela oferece à audiência de se encontrar com o homem e com o seu mundo na profundidade de ambos.
Vale citar o horroroso filme “Gregório de Mattos”, de 2002, dirigido por Ana Carolina, e celebrar que a peça “Boca do Inferno” não tem nada a ver com aquilo felizmente.
Gilson de Barros se destaca em elenco com ótimas atuações
A direção de Licurgo do espetáculo que ele próprio protagoniza é também muito boa. Em cena, há diversos personagens: três deles ganham corpo pelos atores – Gregório (Licurgo), o amigo Chico (Gilson de Barros) e a amásia Ana (Andréa Mattar) – e os outros todos são mencionados - políticos, familiares, religiosos, amigos e inimigos de Gregório. Toda essa gente participa ativamente da narrativa, sendo capaz de modificar os percursos dela, apenas comentá-los ou lutar para mantê-los. Os diálogos surgem pontuais, as cenas são rápidas, cada situação é bem aproveitada de maneira que consegue o público visualizar a cidade de Salvador da segunda metade do século XVII como também alguns meandros de sua cultura.
O mais interessante na encenação é descobrir como as poesias do personagem-título surgem nas cenas e também identificar a maneira como Chico e Ana, figuras secundárias, alçam lugares de grande importância. Quanto ao primeiro, o preciosismo da poesia barroca vem com toda a sua pompa ao espetáculo mas ele não dispensa delas o tom popular e cotidiano que tinham. Sobre o segundo, Chico e Ana garantem o direito do público de participar da história, reagindo diante da personalidade intempestiva do poeta. Se não conseguimos nos identificar com o homenageado, não é muito difícil ficar longe daqueles que estão ao seu lado. E isso é muito bonito.
Andréa Mattar |
O conjunto de interpretações apresenta trabalho muitos méritos. Andréa Mattar defende sua Ana com bastante força, tornando-se uma presença muito significativa sobretudo nos momentos finais da narrativa quando alcança enfim algum protagonismo. Há nela um excelente uso do corpo e um tom interpretativo capaz de emocionar, o que eleva os valores estéticos do espetáculo como um todo. Licurgo dosa com pontualidade as várias energias do personagem título, vencendo o desafio da poesia e oferecendo um aspecto humano ao seu Gregório que é vibrante. A figura não se serve comodamente de um carisma natural do escritor, mas o ator o apresenta e o defende na peça para o deleite do público através de uma dicção perfeita, de intenções muito claras e de um gestual comedido e honesto.
No entanto, do trio, quem mais se destaca é Gilson de Barros, dando vida a Chico, o amigo de Gregório de Matos. Durante toda a encenação, com enorme carisma, o personagem se desenha na cena de uma maneira muito doce. Melhor do que isso, diferente de Ana, é um personagem sem curva e, portanto, com muito mais desafios ao intérprete. A maneira como Barros levanta o ritmo da encenação em todas as suas participações, catalisando os signos em volta de si, faz ver seus méritos. Há nele excelente uso do corpo, mas também da voz e um empenho elogiável em conferir verdade a uma figura que é quase dispensável. Aplausos!
Ótimo espetáculo!
Em “Boca do inferno”, há modesta, mas boa participação dos belos figurinos de Janaína Wendling (a partir de acervo da figurinista Carol Lobato) bem como da luz e do cenário de Paulo Denizot. Todas essas colaborações parecem reforçar o trabalho da dramaturgia, da direção e das interpretações, confiando nelas e na sua capacidade de protagonismo na produção. O resultado é bastante positivo: tem-se uma peça simples, mas que atinge o público de maneira especial.
Eis um ótimo espetáculo sobre a vida e com a obra de um dos maiores poetas da história do Brasil!
*
FICHA TÉCNICA
Texto: Adailton Medeiros
Direção : Licurgo
Elenco: Licurgo, Gilson de Barros e Andréa Mattar
Direção de Movimento: Virgínia Maria
Figurinos: Janaína Wendling
Acervo: Carol Lobato
Iluminação: Paulo Denizot
Cenário: Paulo Denizot
Operador de Luz: Denilson Batalha
Programação Visual: Guilherme Rocha
Visagismo: Diego Nardes
Assistente de Visagismo: Lucas Souza
Fotos: Lucas Souza
Assessoria de Imprensa: Júlio Luz
Produção: Adriana Lemos e Fernanda Nicolis
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Bem-vindo!