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Fotos: João Gabriel Monteiro
Patrícia Selonk |
Os 30 anos da Armazém Companhia de Teatro
A Armazém Companhia de Teatro comemora os seus 30 anos com “Hamlet” em montagem a partir da obra de William Shakespeare. Trata-se de uma adaptação reduzida e romantizada da peça mais famosa da história universal que ganha voz através de ótimos trabalhos de interpretação e de montagem cheia de méritos apesar do que foi feito com o texto. Vale a pena assistir para conferir Patrícia Selonk como o Príncipe da Dinamarca e Lisa Eiras como Ofélia, mas sobretudo Ricardo Martins como Claudius. Com direção de Paulo de Moraes, a produção, que é uma das mais bem comentadas do ano de 2017, está em cartaz em sua primeira temporada no Teatro 1 do Centro Cultural do Banco do Brasil na Cinelândia até 6 de agosto.
“Hamlet” é a peça sobre a qual mais se escreveu na história do mundo. Composta pelo inglês William Shakespeare (1564-1616) entre 1599 e 1601, é a sua maior obra prima, e também a mais longa. Quando montada na íntegra, sua encenação dura mais de seis horas (nem quatro, nem cinco como escreveram outras pessoas antes de mim). Sua narrativa é muito conhecida. Dois meses depois do Rei Hamlet da Dinamarca falecer, o príncipe Hamlet é convocado pelo fantasma de seu pai para um encontro. Na entrevista, o morto narra ao filho detalhes sobre sua morte e clama por vingança. Fingindo-se de louco, Hamlet investiga o caso, confirmando a crença de que Claudius, o irmão do rei e herdeiro da coroa, foi quem tramou o regicídio antes de se casar com a Rainha Gertrudes.
Nos últimos quatrocentos anos, houve incontáveis leituras e, mais numerosas ainda, adaptações da obra original para tudo quanto é tipo de abordagem incluindo o próprio teatro. Aquela a que se refere aqui cumpre bastante bem em cena uma empobrecida versão dramatúrgica assinada por Maurício Arruda Mendonça, que surge, de um lado, prejudicada pelo ponto de vista muito romântico e pouco político, e, de outro, enaltecida pelos bons trabalhos de interpretação e pelas outras participações estéticas da luz, do cenário e do figurino.
Essa análise da montagem da Armazém Companhia de Teatro vai começar tratando do texto e da adaptação, avançar pelos traços da produção e chegar ao trabalho dos atores.
Mil anos de Hamlet
A lenda de Hamlet chegou a Shakespeare através de uma tradução francesa do terceiro livro de um grupo de dezesseis obras conhecidas como “Feitos dos dinamarqueses” (“Gesta Danorum”), escrito por Saxo Gramaticus (1150-1220) no século XII. O caso específico de Hamlet aparece em um livro ainda mais antigo: “Crônicas de Lejre” (mais ou menos de 1170) de autoria desconhecida. As duas narrativas se parecem no geral. Em ambas, no século VII, o primogênito Horvendill e o mais novo Feng eram dois príncipes filhos do Rei Gervendill de Jutland (Península que preenche a parte oeste do atual país Dinamarca), que morreu em uma batalha viking. Horvendill se casou com a Princesa Gerutha da Dinamarca (hoje o lado leste da Dinamarca) e com ela teve um filho chamado Amleth, cuja etimologia vem da união de duas palavras: Amiele (um nome próprio) e Othi (corajoso e louco). Com ciúmes do irmão, Feng assassinou o irmão e casou-se com Rainha, apoderando-se em seguida das coroas de Jutland e da Dinamarca.
Ao reescrever a história, Shakespeare situou-a em algum momento do fim do século X e do início do século XI. Desde 978, a Inglaterra era governada por Etheired II (968-1016), da casa de Wessex, que assumiu a coroa com o compromisso de expulsar definitivamente os vikings da região. De seu primeiro casamento, ele tinha vários filhos homens chamados Ethelstan Etheling. Um deles, o mais velho, era o herdeiro do trono, mas o posto foi usurpado quando o pai, já viúvo, se casou em segundas núpcias, em 1002, com a duquesa normanda Emma (985-1052), a mulher mais rica e poderosa do norte europeu. Durante a união de Etheired com Emma, o príncipe Edmund Ironside (990-1016), filho dos dois, se tornou o herdeiro favorito no lugar do irmão. Em 1013, em defesa do povo do norte, Sweyn I (965-1014), da casa de Knytlinga, então rei da Noruega e da Dinamarca, invadiu a Inglaterra, expulsando Etheired II, que fugiu para a Normandia com sua segunda esposa Emma e seus filhos. Sweyn I, para consolidar uma política de alianças, casou seu filho mais velho Cnut (995-1035) com a condessa Elfgifu of Northhampton (990-1036). Até essa época, a Inglaterra pagava um tributo (o danegeld) à Dinamarca, informação a que o personagem Hamlet se refere na Cena 2 do Ato 5, talvez a única pista na peça sobre quando a narrativa se passa. Coroado em 1016 após a morte do pai, Cnut II aboliu o tal imposto em 1017 – há exatos mil anos – quando se casou com Emma, rainha viúva do Rei Etheired II e também mãe do falecido rei Edmund Ironside. Dez anos depois, ao anexar a Noruega à sua coroa, os três países juntos formaram um reino que, em “Hamlet”, pode ser associado ao do personagem Fortimbrás, que termina como rei dos três países.
Na primeira metade do século XI, a Dinamarca vivia um período de transição cultural. Governada por Sweyn I desde 986, a região já era lugar onde tanto os vikings quanto os fazendeiros se transformavam em católicos aos poucos. Além disso, líderes na navegação e grandes conquistadores, sua cultura se modificava a partir do contato com outros povos do sul e do norte. Com a morte de Sweyn I, Harald II (?-1018) herdou a coroa, mas morreu pouco tempo depois solteiro e sem filhos. Cnut II, que reinava na Inglaterra, passou a reinar também na Dinamarca. Como trazido no parágrafo acima, ele tinha duas esposas: a inglesa Elfgifu of Northhampton e a normanda Emma. Quando assumiu a coroa, enviou os filhos do rei Edmund Ironside (netos de Emma pelo seu primeiro casamento com o velho rei Etheired II) para a Suécia com um plano secreto de que lá os príncipes fossem assassinados. No meio do caminho para o suposto exílio, porém, eles descobriram a artimanha de Cnut II e fugiram para a Hungria, onde permaneceram durante décadas. O episódio é aludido em “Hamlet”.
Em 1026, os reis Anund Jakob (Suécia) e Olaf II (Noruega) atravessaram o mar Báltico e invadiram a Dinamarca, onde Ulf The Earl era regente nomeado por seu cunhado Cnut II (rei da Inglaterra e da Dinamarca). Ulf apoiou um golpe em favor da coroação de Harthacnut (1018-1042), filho legítimo de Cnut II com Emma, que não deu certo. O pai voltou da Inglaterra, derrotou os inimigos e matou Ulf. Quando Cnut II morreu, em 1035, Harthacnut (Cnut III) herdou a coroa da Dinamarca, mas não a da Inglaterra. Essa foi dada ao seu meio-irmão Harold I (1016-1040), filho de Cnut II com Elfgifu of Northhampton, e irmão de Svein Knutsson (1016-1035), então rei da Noruega desde 1030, que é citado por Shakespeare em “Macbeth”.
Há ainda outras referências históricas que amparam uma leitura mais aprofundada do clássico shakespereano. Quando “Hamlet” estreou, o longo reinado (no total, quase 45 anos!) de Elizabeth I (1533-1603) estava chegando ao fim. Na última década, a Inglaterra gozava, pela primeira vez, de uma cordial estabilidade financeira e de um crescente prestígio europeu em um continente cada vez mais ensanguentado por guerras religiosas, fronteiras desfiguradas e pelo câmbio flutuante. Havia, no entanto, um problemão a resolver: quem sucederia a Rainha Virgem? Nessa questão, trabalhava – secretamente - um dos mais importantes conselheiros reais: o jovem Robert Cecil (1563-1612), conde de Salisbury. Nos últimos anos, ele se comunicava com o rei escocês Jaime VI, primo em terceiro grau de Elizabeth, futuramente chamado de Jaime I na Inglaterra. Salisbury e seu pai são provavelmente um dos personagens mais importantes de “Hamlet”: o conselheiro Polônio.
Robert Cecil era o filho mais novo de William Cecil (Barão de Burghley, 1520-1598), esse último o homem mais importante de quase todo o reinado de Elizabeth I. Quando o pai morreu, Robert acendeu à posição do pai, permanecendo nele até sua morte já nos primeiros anos de Jaime I. Houve quem dissesse, porém, que o lugar deveria ser reservado ao primogênito Thomas Cecil (Conde de Exeter, 1542-1623), irmão mais velho de Robert, que estava em Paris na ocasião do falecimento do pai. Em “Hamlet”, quando Polônio morre, seu filho Laerte está em Paris.
Nos últimos de sua vida, o velho Burghley foi o principal inimigo de Robert Devereux (2o Conde de Essex, 1565-1601), o último “favorito” (leia-se possivelmente amante) da rainha nos anos 80 do século XVI. Essex, trinta e dois anos mais novo que a monarca, era alto, bonito e muito carismático entre o povo. Além disso, ele era enteado e afilhado (ou filho bastardo?) de Robert Dudley (Conde de Leicester, 1532-1588), sem dúvida o “favorito mais favorito” de Elizabeth I, e também opositor de Burghley. O pai oficial do jovem Essex era Walter Devereux (1o Conde de Essex, 1541-1576), um militar renomado que foi o primeiro marido de Lady Lettice Knollys (1543-1634), com quem Leicester veio a se casar depois. Escritos deixados por Robert Devereux (Robert de Robert Dudley e Devereux de Walter Devereux) trazem sua dúvida sobre verdadeira paternidade.
Devereux acendeu ao Conselho Privado quando tinha por volta de 20 anos por indicação pessoal de Elizabeth, que lhe concedeu o monopólio do vinho suave na Inglaterra, deixando-o rico. Relatos, no entanto, constam que o relacionamento entre os dois degringolou no início dos anos 90. Essex acumulou derrotas militares (e também políticas), atuando de maneira independente nos conflitos com a Irlanda, chegando a empunhar a espada contra a rainha inglesa. Acabou condenado por traição e decapitado em 25 de fevereiro de 1601. (O personagem aparece em “Henrique V”, de Shakespeare, escrita dois anos antes de “Hamlet”.) Antes de morrer, ele dividiu a cela com o Henry Wriothesley (3o Conde de Southrampton, 1573-1624), que havia se casado - contrariamente aos acordos de Burghley – com Elizabeth Vernon (1572-1655), prima de Essex. Shakespeare havia dedicado “Venus e Adonis” e “O estupro de Lucrécia” a Wriothesley e há muitos estudos que apontam que “Romeu e Julieta” foi uma homenagem do bardo ao conde e à condessa de Southampton, em cuja localidade há ruínas chamadas de “King Cnut II`s Palace” onde, até o século XIX, se acreditava ter morado o rei medieval dinamarquês.
Vale lembrar ainda de que o favorito à sucessão de Elizabeth I era o rei escocês James VI, marido da Rainha Ana da Dinamarca. A morte do pai dele também era uma incógnita. Lord Darnley (Henry Stuart, 1545-1667) morreu após uma explosão de pólvora quando ele dormia em sua casa, mas seu corpo foi encontrado estrangulado fora dela provavelmente pelo Conde de Bothwell (James Hepburn, 1535-1578), que se casou três meses depois com a Rainha Mary Stuart (1542-1587), mãe de James VI, que havia sido decapitada após 20 anos presa na Torre por sua prima Elizabeth I. E por fim não se pode esquecer de que, seis meses após à decapitação de Essex, faleceu John Shakespeare (07/09/1601), pai do autor de “Hamlet”, o que provavelmente também colaborou com o tema de paternidade em meio a qual o bardo estava envolvido.
As fontes históricas acima são importantes para uma leitura política de “Hamlet” que intente ir além de uma mera narrativa sobre um filho metido a justiceiro que quer vingar a morte do pai. E é nisso que se baseia a avaliação inicial de que o corte proposto por Maurício Arruda Mendonça reduz consideravelmente as chances do novo texto de chegar à glória provavelmente planejada pelo dramaturgo quando escreveu a peça. No palco, há menos de um terço do texto e menos da metade dos personagens.
Em substituição, Mendonça oferece um olhar romântico ou, na melhor das hipóteses, expressionista para a narrativa. Por romântico, enaltece-se a sanha do príncipe Hamlet em matar o assassino de seu pai, mas esquece-se de que houve, seguida ao regicídio, uma usurpação da coroa que deveria ir para o príncipe e não para Claudius. Por expressionista, assume-se, desde o início, que Claudius é realmente o assassino do velho Rei, e se abandona a reflexão por sobre o fato de que o que foi dito pelo fantasma só foi ouvido pelo enlutado Hamlet e que não há, até a cena 3 do 3o Ato uma clara confissão (a qual só o público e não Hamlet pode ouvir) do atual Rei. A partir disso, tudo o que se vê na peça deixa de ser o que se vê realmente, mas uma expressão corrompida pelo olhar do protagonista. Tanto o ponto de vista romântico como o expressionista têm seus méritos, mas as duas abordagens também não podem se pautar em expressões contemporâneas como “trepar”, em gritarias nervosas, em roupas de malha, em cadeiras de cinema para - de maneira profunda - se atualizar. Como o tom político, que é divulgado como o preferido pela montagem, a leitura romântica e/ou a expressionista são conceitos estéticos complexos e que carecem de mais esforço.
Mas em “Hamlet”, há uma questão filosófica também que Mendonça não valoriza infelizmente. Em primeiro lugar, o fantasma do rei aparece para os soldados, mas não fala com eles. Sua voz só é ouvida pelo príncipe, a única pessoa que ouve o ponto de vista do morto sobre seu suposto assassinato. Hamlet decide parecer louco a fim de investigar o caso, isto é, resolve conhecer a verdade através da falta de lógica. Sua dúvida sobre de que modo confiar no quadro que vai se formando com o ajustar das peças do quebra-cabeça adia a vingança ao longo de toda a peça para além de todas as oportunidades que ele tem de matar o Rei Claudius. E, ao final, nem é a morte do pai que faz Hamlet querer matar o tio, mas duas tentativas desse de matá-lo: quando o príncipe está a caminho do exílio na Inglaterra e em um duelo com Laerte.
Assim, o conhecimento da verdade que Hamlet atinge através do teatro de suas ações não o leva à vingança pela morte do pai, mas à outra questão: é preciso reestabelecer a ordem, isto é, tirar o poder das mãos de Claudius. Enviado para a Inglaterra depois de ter assassinado Polônio, Hamlet descobre, no caminho, uma aliança entre o Rei e seus dois amigos de infância - Rosencrantz e Guildenstern - para matá-lo. Conseguindo fugir, desembarca de novo na Dinamarca e aceita de estranho bom grado participar de um duelo “amigável” com Laerte, cujo pai (Polônio) Hamlet matou e cuja irmã (Ofélia) acabou de se suicidar por amor ao príncipe. É nesse duelo que primeiro a Rainha Getrudes e depois Laertes acusam publicamente Claudius e que só então Hamlet mata o Rei, tornando-se ele também um regicida. A coragem do jovem que não mais finge loucura advém de uma transformação já completa do personagem nas cenas finais: para ele próprio envenenado e já às portas da morte, o poder já não faz mais sentido.
A tragédia “Hamlet”, imersa em um mundo em transformação pelas revoluções científicas e religiosas, pelo alargamento das fronteiras a muito além da Europa e pelo declínio de um longo reinado chegando ao fim, engendra um homem assolado pelo desconhecido. As mais de quatro mil palavras divididas em cinco atos são um roteiro de viagem dos personagens pelo interior das próprias consciências. É por isso que elas são tão caras e é por causa disso que, sem qualquer purismo, lamenta-se a banalização das raras oportunidades que elas têm de ganhar vida no palco.
Lisa Eiras |
30 anos da Armazém Companhia de Teatro
O texto é apenas um elemento do discurso teatral e já há muito tempo seu privilégio foi abandonado mesmo quando se trata de Shakespeare. Nesse sentido, uma análise do espetáculo “Hamlet” precisa considerar seus outros meios de expressão para além das contribuições do dramaturgo inglês e de Mendonça. Vale começar pelo modo como os signos todos se articulam no quadro.
A montagem de Paulo de Moraes, se dispensa Shakespeare, parece ir em busca do seu próprio Hamlet: um jovem relativamente comum, sem nobreza alguma e em uma família burguesa como qualquer outra. O valor disso talvez esteja na tentativa de aproximar o personagem do público de hoje, limpando-o das falas empoladas, da frieza nórdica e das fleumas monárquicas com a qual nossa cultura nunca conviveu. O encontro resulta em um adolescente sensível (e moralista), mergulhado na mágoa e disposto a vingar o pai idealizado contra a vulgaridade dos outros membros de sua família. Daí que todas as cenas da montagem da Armazém Companhia de Teatro talvez se organizem pela vontade de serem um campo de batalha para um protagonista facilmente identificável: moinhos de vento cervantinos para um Hamlet quixotesco. E, se essa leitura estiver correta, vai o espectador se encontrar diante de um objetivo plenamente alcançado.
As cenas se articulam com fluidez ainda que dispostas em ordem diferente da que consta no texto original. O empenho talvez se interesse pelo estranhamento, combatendo propositalmente as expectativas trazidas por quem conhece a peça e enfrentando o desafio de manter o olhar diante de algo que pareça novo. O ritmo cai em vários momentos negativamente, porque há solilóquios dos quais Mendonça e Paulo de Moraes não conseguiram fugir, como o de Claudius em sua oração, o “Ser ou Não Ser” de Hamlet e o delírio de Ofélia. Em Shakespeare, esses e outros vários momentos estão contextualizados em diálogos longos imersos em uma narrativa que acontece lenta regularmente. Aqui, o apressar do ritmo em algumas partes fez outras parecerem chatas.
Os figurinos de Carol Lobato e de João Marcelino têm seu ponto mais alto no belíssimo rufo usado por Ofélia e na caracterização geral de Hamlet, interpretado pela atriz Patrícia Selonk. Articulado com a direção e com outros elementos estéticos como a dramaturgia, o cenário e como a trilha sonora, o guarda-roupa mantém o estranhamento que parece ser útil aos intentos do projeto, investindo em roupas com tecidos contemporâneos ora em cortes mais clássicos, ora em looks mais atuais.
O cenário de Carla Berri e de Paulo de Moraes faz um misto do que recentemente o Rio de Janeiro viu em “Krum” e em “Nós”, ambos espetáculos dirigidos por Márcio Abreu: fileiras de cadeiras de cinema (ou de teatro) mais uma grande estrutura de fundo que, lá pelas tantas, se mexe como uma porta de garagem que se abre. Junto com a luz de Maneco Quinderé, os móveis compõem um quadro bonito, mas que não exatamente participam do conceito (ainda que poltronas aludam à algo a que alguém assiste como uma peça dentro da peça). Em outras palavras, parece um cenário bem construído de uma outra montagem que, na falta de outro, apareceu ali.
A trilha sonora original de Ricco Viana se empenha no rock romântico contemporâneo, forçando - com som bem alto e muitos gritos com e sem microfone - uma indignação que cheira à fricote adolescente. Nessas ocasiões, a peça tem seus piores momentos, porque superficializam não só o conteúdo, mas também a forma. A concepção e o modo como ela se apresenta parecem ter sido os caminhos mais fáceis e não os mais nobres.
Ótimos trabalhos de interpretação
Marcos Martins (Polonius e Coveiro), Jopa Moraes (Laertes, Guildenstern e Ator), Isabel Pacheco (Gertrudes) e Luiz Felipe Leprevost (Horácio, Rosencrantz e Loba) apresentam bons trabalhos de interpretação, mas sem destaque porque muito pautados em suas próprias figuras cênicas e pouco além disso. Moraes basicamente repete os personagens já feitos por ele em “Shopping and Fucking” e em “O dia em que Sam morreu”, Leprovost se serve da liberdade oferecida por uma figura que não existe em Shakespeare e os demais são salvos pelo figurino.
Ricardo Martins e Patrícia Selonk |
Lisa Eiras (Ofélia) e Ricardo Martins (Claudius), esse último com mais desafios vencidos e, portanto, com resultado ainda mais excelente, brilham em cena na defesa de personagens dificílimos. Ofélia, tão representada quanto o próprio personagem título, oferece à atriz o problema de vencer a expectativa. Claudius, por sua vez, é quem detém a tarefa de não deixar a trama óbvia, mas de sustentar tanto quanto possível a dúvida e consequentemente a complexidade sobre as quais se fundam o duelo interno de Hamlet. Eiras e Martins, ambos com sensibilidade e delicadeza nas menores expressões conseguem, para além de toda a colaboração (ou entrave) estética, manter a peça tão viva para muito além de qualquer outro traço superficial.
Patrícia Selonk (Hamlet) leva os valores obtidos por Eiras e por Martins anteriormente citados para patamares ainda mais elevados, aproveitando todas as muitas chances que seu personagem lhe possibilita, mas também seus enormes e tantas vezes elogiados talento e técnica como atriz. Seu príncipe, dentro da proposta, consegue permanecer senhor de uma guerra interna expressa por meio de um texto dito de forma emocionada, mas não melodramática; complexa, mas não difícil; inteligente, mas não inacessível; verdadeira, mas ainda assim poética. Esses três atores, mais que tudo nessa montagem, merecem os aplausos do público.
O aniversário da Armazém Companhia de Teatro
É bonito ver um grupo como a Armazém Companhia de Teatro completar seu aniversário de três décadas de atividade e presentear seu público com montagem cheia de méritos como essa. Fica, no entanto, a triste pergunta: se nem eles montaram “Hamlet” inteiro, quem mais o fará?
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Ficha técnica
HAMLET
Da obra de William Shakespeare
Montagem da Armazém Companhia de Teatro
Patrocínio: Petrobras e Banco do Brasil
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil
Direção: Paulo de Moraes
Versão Dramatúrgica: Maurício Arruda Mendonça
Elenco: Patrícia Selonk (Hamlet), Ricardo Martins (Claudius), Marcos Martins (Polonius), Lisa Eiras (Ofélia), Jopa Moraes (Laertes), Isabel Pacheco (Gertrudes) e Luiz Felipe Leprevost (Horácio)
Participação em Vídeo: Adriano Garib (Espectro)
Cenografia: Carla Berri e Paulo de Moraes
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: João Marcelino e Carol Lobato
Música: Ricco Viana
Preparação Corporal: Patrícia Selonk
Coreografias: Toni Rodrigues
Preparador de Esgrima: Rodrigo Fontes
Fotografias e Vídeos: João Gabriel Monteiro
Programação Visual: João Gabriel Monteiro e Jopa Moraes
Técnico de Palco: Regivaldo Moraes
Assistente de Produção: William Souza
Assessoria de imprensa: Ney Motta
Produção Executiva: Flávia Menezes
Produção: Armazém Companhia de Teatro
Bravo! É uma verdadeira aula, meu anjo.
ResponderExcluirParabéns pela excelente crítica!
ResponderExcluirAmo ler tuas críticas!
ResponderExcluirObrigada!