sexta-feira, 21 de julho de 2017

Dois amores e um bicho (RJ)

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Foto: divulgação

José Karini



Ótimo espetáculo da Notória Cia de Teatro

“Dois amores e um bicho” é o segundo e ótimo espetáculo do grupo carioca Notória Companhia de Teatro. Dirigida com mão firme e perspicaz por Danielle Martins de Farias, a peça é a terceira montagem (oficial) no Brasil do excelente texto do venezuelano Gustavo Ott. A dramaturgia narra a história de uma família às voltas com a morte em série dos bichos de um zoológico municipal, mas os diálogos, para muito além disso, revelam três seres humanos – o pai, a mãe e a filha – fazendo descobertas essenciais sobre si próprios e sobre suas histórias bem como tomando decisões sobre seus futuros. Com belíssimos trabalhos de interpretação de Julie Wein, mas principalmente de Adriana Seiffert e de José Karini, a produção fica em cartaz até 31 de julho na Sala Multiuso do Espaço Sesc Copacabana. Imperdível.

O excelente texto de Gustavo Ott

A peça começa quando, em uma terça-feira qualquer, Pablo (José Karini) e Karen (Adriana Seiffert) vão visitar a filha Carol (Julie Wein), uma jovem recém formada veterinária que se torna integrante do corpo técnico de profissionais de um zoológico municipal. Lá pelas tantas, o casal se depara com um orangotango isolado em uma jaula solitária. O motivo? Trata-se de uma medida para conter um comportamento “difícil” do animal”: ele assedia sexualmente outros de sua espécie e de mesmo gênero. O caso, que talvez possa ser considerado um tanto quanto banal, é ponto de partida para um trecho da memória familiar que é (e que precisa ser) resgatada. Carol quer saber porque o pai, há quinze anos, passou quarenta dias na prisão. A descoberta da verdade, porém, é um caminho sem volta: pode-se não gostar do que se sabe, pode-se fingir não saber, mas nunca mais poder-se-á desconhecer o sabido. A volta à tona do acontecido ressignifica as relações familiares e exige dos três personagens novos posicionamentos. “Dois amores e um bicho”, por causa disso, é uma história sobre linguagem mais do que sobre preconceito homossexual, ecologia, família ou sobre política.

Pablo foi preso por matar seu cachorro a pauladas em uma véspera de natal. Ao delegado, ele confessou os motivos do crime que ganhou, na ocasião, as primeiras páginas dos jornais: seu cão assediava sexualmente o cão de sua esposa. Gustavo Ott, de maneira habilíssima, investe o caso de uma série de pontos que não apenas contextualizam a narrativa, mas sobretudo dão a ela caráter avassalador. De maneira geral, procurando não envenenar o prazer do público aqui leitor de descobrir a história durante sua encenação, podem-se citar alguns deles. Há fatos acontecidos com aquela família dias antes daquele natal, houve uma tragédia pública naquele exato dia, os nomes dos dois cães envolvidos são importantes, o papel do poder público e do terceiro poder – a mídia: tudo isso oferece outros níveis de leitura para a história. E todo esse passado reverbera questões no presente da narrativa: a relação entre marido e mulher; a entre pais e filha; a personalidade de Carol, mas também a de Pablo e de Karen.

Durante todo o desenrolar de narrativa, o espectador se vê diante de um precioso uso da linguagem verbal (e também poética). Ott, autor de mais de quarenta peças e ganhador de diversos prêmios em redor do globo, defende em “Dois amores e um bicho” o poder das palavras no processo de racionalização do mundo pela consciência. Ao organizar o discurso para construí-lo, o homem se vê engendrado em um plano paralelo com regras próprias e com consequências específicas, mas que está intimamente relacionado, talvez hoje mais que nunca, com a dimensão além da linguagem. O texto, que já foi encenado em montagens produzidas pela Tentáculos Espetáculos (em 2014, com direção de Guilherme Delgado) e pelo Clowns de Shakespeare (em 2015, com direção de Renato Carrera), é uma denúncia, mas também um elogio à humanidade. (As montagens anteriores tiveram a tradução assinada por Carlito Azevedo. Essa é assinada pela diretora.)

A ótima direção de Danielle Martins de Farias
Como se elogiou no seu “Fim de Partida”, o maior mérito da direção de Danielle Martins de Faria está em partir do que é mais valoroso no projeto a que ela se dedica: o texto. Em outras palavras, a encenação parece não estar tão preocupada em melhorar o que não é bom, mas enfrenta o desafio de oferecer, para além do que é ótimo, aspectos que sejam melhores ainda. Em “Dois amores e um bicho”, vai o espectador encontrar um excelente texto que é otimamente bem defendido em uma montagem que valoriza o seu ritmo natural; em que se viabilizam as possibilidades do seu campo semântico com profundidade; que se interessa pela inteligência; e, melhor que tudo, que não se vende às facilidades, à superficialidade ou ao ego. E é nesse sentido que se reconhece a mão firme de Farias.

Em conjunto, o elenco encara o público e se enfrenta entre si, buscando dar a ver as condições nas quais se fundam tanto o jogo como também os meandros de seu desenvolvimento. Com isso, a peça oferece à programação carioca um trabalho de primeira grandeza, corajoso e diferente, que é pautado na dificuldade das boas interpretações e, portanto, na contribuição mais valiosa que o teatro ainda é capaz de dar à sociedade em um tempo de subterfúgios superficiais muitas vezes apoiados em grandes figurinos e cenários, projeções em vídeo, em pontos de mudança e ganchos dramáticos e em tudo quanto é tipo de ilusão.

Julie Wein, que se destaca também pela exploração de suas habilidades com diversos instrumentos musicais, interpreta com delicadeza a personagem de Carol em torno de quem a narrativa começa. De todos, é ela quem, por primeiro, se vê transformada pela realidade: como viverá uma veterinária sabendo que seu pai matou um cachorro a pauladas? A excelente Adriana Seiffert, que dá vida à Karen, a mãe, é em cima de quem a tensão se sustenta. Durante quase toda a peça, ela participa sem protagonizar os acontecimentos, mas isso se modificará nas cenas finais. Nesse trecho, sua personagem assumirá o leme de sua historia e isso será motivo para os espectadores ressignificarem o encerramento da trama e perceberem o que poderá ter acontecido com essas pessoas após o fim do recorte da dramaturgia.

É José Karini, cujo personagem é mais privilegiado desde Gustavo Ott, aquele que mais brilha em “Dois amores e um bicho”. O ator, intercalando na temporada o personagem com Lucas Gouvêa, interpreta Pablo: o personagem mais importante da peça, contra o qual todos os demais reagem, o que mais se enfrenta e, assim, aquele que melhor une todos os pontos da narrativa. Com uma atuação brilhante, Karini dá vida à selvageria de que fala a peça, essa que transcende a consciência humana e que liga a nossa espécie a dos animais. Também corporifica as paixões por meio das quais se tematiza o homem simples em seus processos de catarse. E, por que não?, abre espaço para o lado pantanoso da transformação de valores a que nossa sociedade passa - os debates sobre homofobia, ecologia, terrorismo, política e sobre tantos outros temas pelos quais o espetáculo passa em sua reflexão sobre o homem. O bem aproveitar das chances que é visível no trabalho de Karini e o valorizar das possibilidades que se vêem em Seiffert e em Wein colocam as interpretações em mesmo enorme mérito que o texto e a direção.

Parabéns!
“Dois amores e um bicho” se estrutura ainda a partir de valorosas contribuições do figurino de Raquel Theo e da direção musical de Felipe Habib, mas principalmente da iluminação de Renato Machado e do cenário de André Sanches. Esses aspectos estéticos, por meio de participações elegantes, colaboram com o texto e com as interpretações na medida em que não pesam a narrativa já complexa. São bastante bem cuidadas em detalhes que reforçam a qualidade do todo, tornando essa produção digna dos aplausos que vem recebendo e da longa vida que há de ter nos palcos brasileiros. Parabéns!

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FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Gustavo Ott
Direção: Danielle Martins de Farias
Elenco: Adriana Seiffert, José Karini, Julie Wein, Lucas Gouvêa
Direção musical: Felipe Habib
Movimento: Toni Rodrigues
Iluminação: Renato Machado
Cenário: André Sanches
Figurino: Raquel Theo
Design Gráfico: Marcus Moraes
Fotografia: Rodrigo Castro
Mídias Sociais: Rafael Teixeira
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Produção e realização: Notórias Produções

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