sábado, 27 de fevereiro de 2016

Hamlet – Processo de Revelação (RJ)

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Foto: divulgação


Emanuel Aragão

Muitos problemas no monólogo sobre "Hamlet"

“Hamlet – Processo de Revelação” é um espetáculo com tantos problemas que seus méritos acabam por ser bem poucos. É claro que, consideradas as dificuldades de fazer teatro, sempre é preciso aplaudir quem se aventura. No entanto, coragem e pretensão são palavras com significado parecido, mas não sinônimas. No monólogo, com dramaturgia e interpretação de Emanuel Aragão, há uma série de questões que mal se aproveitam do clássico shakespeareano, substituindo as reflexões mais nobres e principalmente o feito maior é que seria o de interpretá-lo. O problema mais grave da montagem dirigida pelos irmãos Adriano e Fernando Guimarães é a confusão de propostas. Sem se decidir por qualquer uma, e nem aprofundar nenhuma, a peça fracassa e não é preciso ser Bárbara Heliodora (1923-2015) para perceber isso. Para discordar ou concordar, o espetáculo está em cartaz no Teatro 2 do Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, até amanhã. É bem provável que cumpra outras temporadas aqui e pelo país.

Os três movimentos da dramaturgia de Emanuel Aragão
Três movimentos são bem claros na dramaturgia de "Hamlet – Processo de Revelação” assinada por Emanuel Aragão. O primeiro é uma exploração do campo semântico do texto original de William Shakespeare (1564-1616). O monólogo começa com a história de um chinês de 84 anos que quis acabar com a própria vida, mas depois se distraiu enquanto lia as notícias do dia. Avança a partir da narrativa de momentos (talvez ficcionais, talvez não) que sucederam a notícia do falecimento do pai (ou de Aragão, ou dos diretores?) e os encaminhamentos do velório. Ainda inclui outras pequenas narrativas que, embora aparentemente reais talvez não sejam. O objetivo é explorar o universo significativo de “Hamlet”, oferecendo novas abordagens para o público experimentar seu sabor. Se só “Hamlet” já não bastasse ou se esse investimento realmente dessa conta de ir além do básico, sem dúvida, essa seria uma grande colaboração da proposta à grade da programação teatral carioca. Por motivos que a seguir serão apontados, não o é.

O segundo esforço da peça está em revelar o processo de interpretação de “Hamlet”. Em cena, o ator Emanuel Aragão revela pesquisa elementar sobre o clássico shakespeareano, apresenta sua tradução sobre o solilóquio mais famoso (“ser ou não ser”) do teatro universal e se empenha em, ato por ato, descrever um pretenso contexto narrativo que ele criou para interpretar o personagem. Uma vez que o original, nesses últimos quatrocentos anos, tem sido objeto de análise de estudiosos do mundo inteiro, não é difícil reconhecer a fragilidade das dúvidas que Aragão apresenta. Além disso, a beleza dos versos de Shakespeare e a profundidade do texto justamente têm sido objeto de reflexão porque eles valem muito mais que as motivações interpretativas que cada ator cria para si.

O terceiro movimento é a interpretação de trechos de “Hamlet”, feito esse que seria mais valoroso se não perturbado pelos outros dois. Eles alongam a narrativa, dispersam a atenção e, chamando a atenção mais para Aragão do que para Shakespeare, acabam por fazer a inglória batalha perder.

Direção deixa o lugar do ator ainda mais perigoso
Quando a peça começa, Emanuel Aragão está sentado no proscêncio acompanhando o público procurar o seu lugar para se sentar. Logo de início, o ator explica as “regras” do que ele chama de “conversa”: as luzes da plateia permanecerão acesas como sinal de que será possível o público interrompê-lo, manifestando-se, interagindo, participando da peça. Também que, por inclusive não ter duração previamente estabelecida, as pessoas podem ir embora quando achar que devem. No entanto, em mais de uma oportunidade, na sessão a que essa análise quer corresponder, ficou claro que o intérprete se vê em lugar mais perigoso do que o esperado. O texto é longo e difícil e, por vezes, fica difícil lidar com as colocações que o público faz. O misto de interpretação formalizada e improviso esbarra no desejo de Aragão de apresentar o seu espetáculo até o fim.

Dono de um raro direito à palavra, o público quer se manifestar. Considerando que o original tem cinco atos, fica fácil perceber o quanto toda a proposta se alonga. Dirigido por Adriano e por Fernando Guimarães, o ritmo do espetáculo cai também porque nem se consegue adentrar no íntimo do príncipe da Dinamarca, nem se se compreende bem o intento da proposta. O purismo da dramaturgia (que se volta para si) não encontra eco na narrativa trágica elisabetana. E tudo fica mais parecendo um auto-elogio (pronto para agradar os amigos dos realizadores) do que uma partilha estético-artística com a plateia profissional.

Questões finais
Emanuel Aragão se esquece de questões muito relevantes sobre “Hamlet”. Escrita entre 1599 e 1601, toda a narrativa acontece mais ou menos dois meses depois do falecimento do misterioso Rei Hamlet e um mês após o casamento da Rainha Gertrudes com seu cunhado Cláudio, irmão do Rei. Toda a peça se passa nos corredores do poder da Dinamarca, afrontada pela Noruega em algum século final da Idade Média. Em nenhum momento das mais de quatro mil linhas do texto, fica claro onde estava o príncipe Hamlet (cuja idade varia entre 20 e 30 anos na opinião dos teóricos) quando esses acontecimentos tiveram lugar, mas se sabe que ele está enlutado e também que permanece príncipe, isto é, foi-lhe usurpada a coroa. A peça, assim, passa ao largo de um drama burguês em que um filho vinga o pai por quem chora copiosamente, mas alcança outras vias, do poder ao existencialismo. 

Profundamente inspirado pelas tragédias latinas (Plauto, Terêncio e Sêneca) e pelos romances de cavalaria, Shakespeare tinha uma noção de tragédia cuja origem vinha da Grécia. Ou seja, o conceito de liberdade naquela sociedade estratificada esbarrava não apenas nos limites sociais, mas no divino, no inexplicável, no além. Imerso na cultura elisabetana em que católicos e protestantes duelavam pelo comando político da Europa, o bardo sabia para quem escrevia: as reviravoltas da política, o público conservador, os atores que valorizavam a palavra acima de qualquer outra coisa. Infelizmente, no entanto, nem Shakespeare, nem seus contemporâneos escreveram sobre a peça algo que tenha chegado até a contemporaneidade.

Nesse sentido, “Hamlet – Processo de Revelação”, na ânsia de colorir o personagem e a narrativa, fica ainda muito distante da sua essência, revelando mais a perda da oportunidade do estudo do que exatamente valor estético. Eu usei o direito concedido de ir embora no fim do primeiro ato ainda respeitando o intérprete e sua equipe, mas com uma avaliação negativa sobre esse trabalho em específico. Fica o convite para opiniões adversas.

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HAMLET – PROCESSODE REVELAÇÃO
Dramaturgia: Emanuel Aragão
Direção: Adriano Guimarães / Fernando Guimarães
Elenco: Emanuel Aragão
Colaboração: Liliane Rovaris
Iluminação: Dalton Camargos / Sarah Salgado
Cenografia: Adriano Guimarães / Fernando Guimarães / Ismael Monticelli
Figurino: Ismael Monticelli / Liliane Rovaris -
Projeto Gráfico, site e fotografia: Ismael Monticelli
Direção técnica: Josenildo de Sousa
Assistência: Eduardo Jaime
Produção e administração: Quintal Producões | Veronica Prates