As histórias alheias
Reconhecer que Claudia Ventura é Mestre em Artes Cênicas explica o fato de “Amor Confesso” ser um espetáculo que chama a atenção tanto do público comercial como da academia, agradando a todos, no fim de tudo, pelos mesmos aspectos. Idealizado em conjunto com Alexandre Dantas, o espetáculo consiste na tradução de oito contos de Arthur Azevedo (1855-1908), dramaturgo brasileiro pré-modernista cujas peças podem facilmente ser lidas a partir da ótica do teatro de costumes.
As histórias de Azevedo, autor da peça “A Capital Federal”, também outrora encenada por Ventura e Dantas, giram em torno de traições e de conquistas, aventuras amorosas e tragédias sentimentais que, por seu tom irônico tipicamente brasileiro, fogem do romantismo de Alencar e do realismo machadiano, embrenhando-se nas ruelas, nos bondes, nos morros do Rio de Janeiro sem muitas descrições idealizadas nem tampouco reflexões psicológicas sobre as intenções dos personagens. A partir do espetáculo dirigido por Inez Viana, o leitor de Azevedo se encontra com uma obra cujo ritmo é rápido, leve, engraçado sem ser, nem de longe, superficial. Diretora de “As Conchambranças de Quaderna”, Viana traz para a comédia de costumes resquícios bem-vindos das máscaras farsescas dos personagens de Suassuna, se utilizando delas, nesse outro universo, como um recurso inevitável para a agilidade da encenação que se auto-referencia a cada nova cena. Todos os personagens, e são muitos, se apresentam a partir de uma marca definitiva sem a qual se perderiam em meio à selva narrativa de múltiplas histórias. Ao dar a ver um personagem com um dedo indicador sobre o dente canino, a direção permite que a construção seja viabilizada tanto por Cláudia como por Alexandre, sem que nos confundamos com o personagem com sotaque lusitano, a mulher caolha ou o homem prognata. O gesto de dar o lugar no assento do bonde se repete em várias passagens dando positiva unidade ao espetáculo. Os jogos são rápidos, as cenas são encadeadas, a evolução é positivamente pobre em termos de sua estética visual e bastante rica no modo como os detalhes preenchem a tela do palco italiano. Assinado por Carlos Alberto Nunes, no cenário, há apenas duas cadeiras e uma negra rotunda, acrescentando, à titulo de ilustração cênica, o fraque completo do noivo e o vestido branco de noiva suspensos nas laterais. O figurino, também de Carlos Alberto, é inteligentemente composto por partes de baixo da caracterização de um noivo e de uma noiva que ainda estão se arrumando para sair, não se modificando ao longo da apresentação apesar dos muitos personagens que os atores interpretam. Deve-se dizer, antes de mudar o ponto de vista, que todos os méritos de Viana e do casal de atores já tratados são plenamente visíveis na passagem do primeiro para o segundo conto de Azevedo. A grata surpresa, a novidade, a motivação em “Amor Confesso” em sua totalidade espetacular vêm da trilha sonora dirigida por Marcelo Alonso Neves e interpretada pelo pianista Roberto Bahal. De músicas a la Richard Clayderman (“Balade pour Adeline”, entre outras), a um repertório nacional conhecido e desconhecido, o espetáculo se renova e ganha corpo desde os mais simples inserts sonoros até a versão de “La donna è mobile”, da ópera Rigoletto de Verdi, brilhantemente cantada por Ventura num dos momentos mais brilhantes de toda a representação. Neves e Bahal participam da cena, bem como Viana, fincando suas presenças no trabalho de interpretação cênica, fazendo ampliar o olhar para o teatro como fruto de algo que vai além do trabalho dos atores, embora, sem dúvida, parta deles.
Mas há, conforme o prometido, um outro ponto de vista possível para “Amor Confesso”. A dramaturgia parte, como já se disse, de contos de Arthur Azevedo e não de seus célebres textos dramáticos e a novidade já nem tão nova assim é o fato da prosa centenária estar presente na narrativa cênica que, claro, não chega a se desprender da linguagem dramática. Assim, os diálogos permanecem convivendo com a narração em terceira pessoa própria dos contos e romances que todos conhecemos. O pesquisador (e diretor teatral) Luiz Arthur Nunes trata desse efeito em um artigo chamado “Do livro para o palco: formas de interação entre o épico literário e teatral”, cuja leitura é recomendável. Nele, tratando do conceito do ator-rapsodo, há a reflexão para esse exercício já presente na história do teatro que fornece para a arte novas possibilidades de polifonia e manutenção de um discurso autoral e, por isso, épico. Nunes destaca dois tipos de narradores: aquele que participa da encenação e aquele que não participa. No caso de “Amor Confesso”, o diferencial está para uma variação do primeiro caso. Vestindo-se de personagens cênico-narrativos cujos nomes se confundem com os de seus intérpretes, Claudia e Alexandre não só participam da encenação por eles narrada como fazem dessas histórias as suas próprias histórias ou seus motivos para refletirem sobre os seus futuros. Na cena de abertura, os dois personagens, após cumprimentarem o público, explicam que estão indo para a cerimônia de seu casamento quando começam a representar os contos de Azevedo. A sucessão das narrativas deixa ver pequenos conflitos que dão dúvida para o iminente acontecimento de forma que a cena final guarda uma resposta vital para os espectadores: eles vão mesmo se casar ou não? O épico, que aqui não é politicamente ideológico, está no exercício de se utilizar de histórias alheias para 1) contar a própria; e 2) refletir sobre a própria; ações que, sem dúvida, são próprias da assistência, lugar em que todos estamos.
Em “Amor Confesso”, dois personagens se utilizam dos contos clássicos da literatura brasileira para refletir sobre seus caminhos. Além dessa seleção, o espectador tem, a sua disposição, uma nona história, a de Cláudia e de Alexandre, para se divertir, pensar e celebrar as próprias histórias de amor confessadas ou não.
*
Ficha técnica:
Autor: Arthur Azevedo
Direção: Direção Inez Viana
Elenco: Claudia Ventura e Alexandre Dantas
Pianista: Roberto Bahal
Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Cenário e Figurino: Carlos Alberto Nunes
Iluminação: Paulo César Medeiros
Preparação Vocal: Marcelo Rodolfo
Projeto Gráfico: Mais Programação Visual
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Fotografia: Silvana Marques
Produção de Fotos: Lucília de Assis
Produção: Falantes
Produção Executiva e Administração: Christina Carvalho
Assessoria de Produção: Leila Moreno
Assistente de Direção: Luiz Antonio Fortes
Assistente de Cenário e de Figurino: Gabi Windmüller
Assistente de Assessoria de Imprensa: Bruna Amorin
Operador de Luz: Boy Jorge
Bilheteria: Anderson Aragón
Costureira: Adélia Andrade
Cenotécnico: Marcos Souza
As histórias de Azevedo, autor da peça “A Capital Federal”, também outrora encenada por Ventura e Dantas, giram em torno de traições e de conquistas, aventuras amorosas e tragédias sentimentais que, por seu tom irônico tipicamente brasileiro, fogem do romantismo de Alencar e do realismo machadiano, embrenhando-se nas ruelas, nos bondes, nos morros do Rio de Janeiro sem muitas descrições idealizadas nem tampouco reflexões psicológicas sobre as intenções dos personagens. A partir do espetáculo dirigido por Inez Viana, o leitor de Azevedo se encontra com uma obra cujo ritmo é rápido, leve, engraçado sem ser, nem de longe, superficial. Diretora de “As Conchambranças de Quaderna”, Viana traz para a comédia de costumes resquícios bem-vindos das máscaras farsescas dos personagens de Suassuna, se utilizando delas, nesse outro universo, como um recurso inevitável para a agilidade da encenação que se auto-referencia a cada nova cena. Todos os personagens, e são muitos, se apresentam a partir de uma marca definitiva sem a qual se perderiam em meio à selva narrativa de múltiplas histórias. Ao dar a ver um personagem com um dedo indicador sobre o dente canino, a direção permite que a construção seja viabilizada tanto por Cláudia como por Alexandre, sem que nos confundamos com o personagem com sotaque lusitano, a mulher caolha ou o homem prognata. O gesto de dar o lugar no assento do bonde se repete em várias passagens dando positiva unidade ao espetáculo. Os jogos são rápidos, as cenas são encadeadas, a evolução é positivamente pobre em termos de sua estética visual e bastante rica no modo como os detalhes preenchem a tela do palco italiano. Assinado por Carlos Alberto Nunes, no cenário, há apenas duas cadeiras e uma negra rotunda, acrescentando, à titulo de ilustração cênica, o fraque completo do noivo e o vestido branco de noiva suspensos nas laterais. O figurino, também de Carlos Alberto, é inteligentemente composto por partes de baixo da caracterização de um noivo e de uma noiva que ainda estão se arrumando para sair, não se modificando ao longo da apresentação apesar dos muitos personagens que os atores interpretam. Deve-se dizer, antes de mudar o ponto de vista, que todos os méritos de Viana e do casal de atores já tratados são plenamente visíveis na passagem do primeiro para o segundo conto de Azevedo. A grata surpresa, a novidade, a motivação em “Amor Confesso” em sua totalidade espetacular vêm da trilha sonora dirigida por Marcelo Alonso Neves e interpretada pelo pianista Roberto Bahal. De músicas a la Richard Clayderman (“Balade pour Adeline”, entre outras), a um repertório nacional conhecido e desconhecido, o espetáculo se renova e ganha corpo desde os mais simples inserts sonoros até a versão de “La donna è mobile”, da ópera Rigoletto de Verdi, brilhantemente cantada por Ventura num dos momentos mais brilhantes de toda a representação. Neves e Bahal participam da cena, bem como Viana, fincando suas presenças no trabalho de interpretação cênica, fazendo ampliar o olhar para o teatro como fruto de algo que vai além do trabalho dos atores, embora, sem dúvida, parta deles.
Mas há, conforme o prometido, um outro ponto de vista possível para “Amor Confesso”. A dramaturgia parte, como já se disse, de contos de Arthur Azevedo e não de seus célebres textos dramáticos e a novidade já nem tão nova assim é o fato da prosa centenária estar presente na narrativa cênica que, claro, não chega a se desprender da linguagem dramática. Assim, os diálogos permanecem convivendo com a narração em terceira pessoa própria dos contos e romances que todos conhecemos. O pesquisador (e diretor teatral) Luiz Arthur Nunes trata desse efeito em um artigo chamado “Do livro para o palco: formas de interação entre o épico literário e teatral”, cuja leitura é recomendável. Nele, tratando do conceito do ator-rapsodo, há a reflexão para esse exercício já presente na história do teatro que fornece para a arte novas possibilidades de polifonia e manutenção de um discurso autoral e, por isso, épico. Nunes destaca dois tipos de narradores: aquele que participa da encenação e aquele que não participa. No caso de “Amor Confesso”, o diferencial está para uma variação do primeiro caso. Vestindo-se de personagens cênico-narrativos cujos nomes se confundem com os de seus intérpretes, Claudia e Alexandre não só participam da encenação por eles narrada como fazem dessas histórias as suas próprias histórias ou seus motivos para refletirem sobre os seus futuros. Na cena de abertura, os dois personagens, após cumprimentarem o público, explicam que estão indo para a cerimônia de seu casamento quando começam a representar os contos de Azevedo. A sucessão das narrativas deixa ver pequenos conflitos que dão dúvida para o iminente acontecimento de forma que a cena final guarda uma resposta vital para os espectadores: eles vão mesmo se casar ou não? O épico, que aqui não é politicamente ideológico, está no exercício de se utilizar de histórias alheias para 1) contar a própria; e 2) refletir sobre a própria; ações que, sem dúvida, são próprias da assistência, lugar em que todos estamos.
Em “Amor Confesso”, dois personagens se utilizam dos contos clássicos da literatura brasileira para refletir sobre seus caminhos. Além dessa seleção, o espectador tem, a sua disposição, uma nona história, a de Cláudia e de Alexandre, para se divertir, pensar e celebrar as próprias histórias de amor confessadas ou não.
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Ficha técnica:
Autor: Arthur Azevedo
Direção: Direção Inez Viana
Elenco: Claudia Ventura e Alexandre Dantas
Pianista: Roberto Bahal
Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Cenário e Figurino: Carlos Alberto Nunes
Iluminação: Paulo César Medeiros
Preparação Vocal: Marcelo Rodolfo
Projeto Gráfico: Mais Programação Visual
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Fotografia: Silvana Marques
Produção de Fotos: Lucília de Assis
Produção: Falantes
Produção Executiva e Administração: Christina Carvalho
Assessoria de Produção: Leila Moreno
Assistente de Direção: Luiz Antonio Fortes
Assistente de Cenário e de Figurino: Gabi Windmüller
Assistente de Assessoria de Imprensa: Bruna Amorin
Operador de Luz: Boy Jorge
Bilheteria: Anderson Aragón
Costureira: Adélia Andrade
Cenotécnico: Marcos Souza
Ilustração de Esteban Crotti
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