quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Os Náufragos do Louca Esperança / Les Naufragés du Fol Espoir (França)

Fotos: Michèle Laurent

“Há-há-há-há-há: Capitão!”


Numa união de três estados, diversos municípios (incluindo Canoas/RS) e vários patrocínios de peso, o Théâtre du Soleil volta ao Rio Grande do Sul depois de quatro anos. “Os Náufragos do Louca Esperança - (Auroras)”, que reúne Ariane Mnouchkine, uma das diretoras mais celebremente conhecidas ao redor do mundo, e mais 75 profissionais (30 atores) em uma estrutura trazida diretamente da Cartoucherie de Vincennes, uma antiga fábrica de cartuchos dos arredores de Paris/França, fica em cartaz até o dia 11 de novembro (de 2011) no Brasil, seguindo depois para o Chile e outros lugares do mundo. Ao longo de três horas e quarenta e cinco minutos, o espectador está diante de um espetáculo teatral de primeira grandeza: uma peça que homenageia o teatro, o cinema, os artistas e, sobretudo, a humanidade contida em cada homem, mas nem sempre lembrada pelos próprios.

Segundo Les Echos, “Os Náufragos do Louca Esperança - (Auroras)” é a primeira obra prima desde “1789”, espetáculo produzido há 40 anos pelo grupo criado em 1964 por Ariane Mnouchkine (1939) e seus companheiros da ATEP (Associação Teatral dos Estudantes de Paris). A peça conta a história de um grupo de artistas que se reúne, no verão de 1914, em Paris, a fim de adaptar para o cinema um livro póstumo de Júlio Verne (1828-1905). Ele se chama “Os Náufragos do Jonathan” (Magellania), escrito em 1897, mas só publicado em 1909, quatro anos após a morte do escritor francês. Monsieur Félix Courage (interpretado pela atriz Eve Doe-Bruce) é dono da Louca Esperança, uma guinguette (um restaurante em que, além de servir comida e bebida, possui um salão de bailes) às margens do Rio Marne (conhecido pelas pinturas de Cézanne). Apaixonado pelo cinematógrafo (uma invenção que os franceses, ainda hoje, reivindicam), ele decide abrigar os irmãos Jean e Gabrielle LaPalette (Maurice Durozier e a atriz brasileira Juliana Carneiro da Cunha), recém demitidos da Pathé, uma das mais antigas produtoras de cinema. A demissão dos estúdios ocorreu em função dos ideais socialistas de Jean, leitor comprometido de Karl Marx (1818-1883), cuja maior obra é “O Capital”, de 1867, que aparece em cena. O sótão do estabelecimento de Monsiuer Courage se torna o estúdio em que os irmãos LaPalette e o auxiliar Tommaso (Duccio Bellugi-Vannuccini) vão filmar “Os Náufragos do Louca Esperança” com a ajuda de todos os funcionários da guinguette que se alternarão entre interpretar os personagens e auxiliar nos diversos trabalhos relativos à produção das sequências.

(Ariane Mnouchkine faz, com o espetáculo, uma dupla homenagem. Seu pai, o russo Alexandre Mnouchkine (1908-1993), foi fundador e proprietário da Ariane Films, que tem uma vasta e importante produção cinematográfica desde 1945. Além disso, o discurso socialista que inspira o fazer cinematográfico de LaPalette faz uma clara alusão ao conceito de trupe teatral utilizado pelo Théâtre du Soleil, em que todos os envolvidos, incluindo a diretora, ganham o mesmo salário e dividem todas as funções: da interpretação à bilheteria, da cozinha à faxina, da recepção do público à manutenção do espaço.)

O filme fictício produzido pelos irmãos LaPalette é, nesse contexto anterior a 1927, mudo. Ele trata, entre 1889 e 1895, da história de um navio, chamado “Louca Esperança”, numa homenagem de LaPalette à guinguette a Courage, que parte de Cardif (País de Gales) em direção à Austrália, naufragando no distante Cabo Horn (o ponto mais meridional da América do Sul). A história contada no filme mistura Julio Verne com os acontecimentos políticos reais. A Primeira Guerra Mundial está para eclodir e suas causas estão na formação do Império Austro-Húngaro (1867) sob a égide da Casa de Habsbourg, cujos descendentes (arquiduques) vão sendo rapidamente substituídos em função de suas mortes prematuras (assassinatos e suicídio).

(Politicamente unidas, as nações Austro-Húngara, Alemanha e Rússia entram em choque na Guerra dos Balcãs. Quando Francisco Fernando, herdeiro do trono austro-húngaro é morto em Saravejo (Sérvia) em 28 de junho de 1914, Áustria, Alemanha e Itália (Tríplice Aliança - 1882) declaram guerra aos Balcãs. Rússia, França e Inglaterra (Tríplice Entente - 1907) se unem para defender a Sérvia. É o início da Primeira Guerra Mundial, que um dos primeiros movimentos foi a Batalha dos Falklands (Ilha das Malvinas), travada na região do Cabo Horn entre navios britânicos e alemães.)

O Louca Esperança parte com um grupo heterogêneo de tripulantes: nobres, artistas, colonos e prisioneiros. Ao chegar na Região da Terra do Fogo chamada de Magellania, os náufragos se encontram com indígenas e brancos (missionárias católicas salesianas e colonizadores argentinos, chilenos, ingleses e de outras nacionalidades, entre eles Jean Salvatore de Habsbourg-Toscane, personagem interpretado por Serge Nicolaï). O encontro tem dois resultados: de um lado, o grupo pretende estabelecer a primeira nação socialista da história; de outro, a guerra pela descoberta do ouro, iniciada por Émile (Maurice Durozier) e seu irmão Simon Gautrain (Sebastien Brottet-Michel), acaba por produzir um auto-massacre em série da pequena população. O filme termina com a construção do Farol que deverá auxiliar as embarcações para que com elas não aconteça o mesmo que aconteceu com o Louca Esperança, construção que será importante na batalha dos Falklands de que já se falou. As filmagens terminam junto com um comentário acerca da morte de Jean León Jaurès (1859-1914), um pacifista francês que escrevia contrariamente à participação da França na guerra entre o Império Austro-Húngaro e a Sérvia, propondo acordos sem violência entre as nações.

Adaptado por Hélène Cixous, o texto, como se vê, é repleto de referências históricas que podem auxiliar o espectador na fruição do espetáculo, cuja narrativa se organiza em um jogo complicado de passagens de tempo e mudanças de lugar. Com uma narrativa lenta, porque pesada em função dos muitos detalhes, o discurso é, muitas vezes, cheios de teses ideológicas, o que, de forma positiva, faz da produção francesa um meio universal de reflexão, mas, de forma negativa, pesa ainda mais o trabalho do espectador. A encenação, por sua vez, não é menos pesada, sendo, assim, coerente consigo própria: “Os Náufragos do Louca Esperança” é um espetáculo realista em que cada um dos mínimos detalhes está para ser apreciado.

Em cena, está o sótão da guinguette de Félix Courage. A cenográfica luz do dia entra pelo telhado do sótão, onde todos os cenários do filme são construídos e desmontados a cada sequência que é filmada. Os figurinos são coerentes com a segunda década do século XX quando se tratam dos atores de LaPalette e com a última década do século XIX quando se tratam dos personagens do filme. Cordas, neve, blocos de gelo, efeitos de ventilação, carruagens e navios cenográficos entram e saem pelas mãos dos atores de LaPalette a todo o momento enchendo os olhos do espectador que se sente, de fato, num antigo set de filmagens. A dublagem da peça se mistura com a dublagem do filme, sendo diferenciada pelos tipos de fontes escolhidas para as suas grafia. Os atores de LaPalette, assim como os de Mnouchkine, se dividem em diversas funções e o jogo do monta e desmonta, convivendo com a iminente eclosão da grande guerra, é o que dá positiva e negativamente ritmo à encenação do Théâtre du Soleil.

“Os Náufragos do Louca Esperança” é um espetáculo de tecnologia. Roldanas que fazem subir cenários fictícios, neve de papal picado, ventiladores e toda uma série de detalhes (minuciosamente cuidados) concorrem com igual, por vezes, maior, força com o texto e as interpretações dos atores. A cada nova sequência do filme que é gravada, um arsenal de objetos surge e o próprio meio através do qual ele surge é um signo a se prestar a atenção. De forma que o espectador, enquanto se sente alimentado pela novidade surpreendente que está em cena e pela promessa da que está por vir, tem motivos visuais para se interessar pelo espetáculo (além dos motivos pessoais). Isso, no entanto, não dura os 225 minutos da representação, apesar da pausa de 15 minutos entre os dois atos. Em um determinado momento, em especial na cena em que os náufragos resolvem criar uma sociedade totalmente socialista com ideais humanitários a serem estabelecidos plenamente naquela distante Ilha Hoste, têm-se a impressão de que tudo que era para ser visto já se viu: já se sabe como entram e saem os cenários, como funciona a neve, já se contemplou as interpretações dos atores de LaPalette interpretando cinema mudo, já se prestou a atenção nos abajures, nas roupas, nos fios elétricos, no piano, nos cabelos e na maquiagem e já se conhece todos os ambientes do palco (o sótão de Courage) que foram sendo explorados paulatinamente ao longo da peça. A partir de então, só resta saber como a história termina, narrativa essa que, por ser repleta de referências histórico-políticas, deve ainda encarar o desafio de se compreendida para segurar a atenção, o que, de fato, não acontece em plenitude. Por fim, colaboram para o cansaço final do espectador, os desconfortáveis assentos do Théâtre du Soleil, que, por serem muito baixos, exigem do joelho que ele fique mais alto que o quadril (se você tiver mais de 1,65m), de forma que todo o peso do corpo fique ou sobre o cóccix ou sobre os joelhos, em um vai e vem constante em busca da melhor posição.

Brilhantes são as interpretações de todo o elenco com alguns destaques para a sensibilidade cativante de Juliana Carneiro da Cunha ao se expressar com docilidade e ironia nos seus diálogos. Também para a força cênica de Maurice Durozier, cuja paixão do seu personagem Jean pelos ideais marxistas é transmitida a ponto de identificá-lo como líder não só pelas falas, mas por seus posicionamentos em cena. Entre todos, o ator que consegue resultados mais vezes aparentes e de forma mais interessante dos signos da interpretação própria do cinema mudo é Serge Nicolaï, embora bastante positivas sejam, no mesmo sentido, as pequenas participações de Astrid Grant (Rainha Victória), Seer Kohi (Yuras, o jovem índio) e Armand Saribekyan (o pintor Vassili). Sem duvida, está em Eve Doe-Bruce (Félix Courage), o resultado mais positivo em termos de interpretação. A atriz obtém resultados magníficos na forma como localiza a coluna, como sustenta os ombros, como movimenta as mãos em gestos pontuais, como elegantemente se mantém equilibrada no figurino de homem barrigudo e suíças, expressando peso e leveza ao mesmo tempo.

O realismo que norteia todas as opções estéticas de “Os Náufragos do Louca Esperança - (Auroras)” é, em resumo, um espetáculo. Cristais, telas, chapas de cobre, rendas, iluminação nos mínimos detalhes evidenciando não só compromissos com a estética do espetáculo, mas um extremo bom gosto da direção de arte: tudo isso faz dessa segunda vinda do Théâtre du Soleil para o Brasil um evento imperdível.

Em uma das cenas, no início do segundo ato, uma das ajudantes de Monsieur Courage vai até o patrão para pedir que ele interceda por ela junto a La Palette em favor de sua participação na equipe de filmagem. Courage, então, discursa sobre alguns detalhes da arte de interpretar numa das cenas mais interessantes do espetáulo apesar de, comparada com as demais, sem grandes investimentos de cenário e de movimentação. Então, ele fala para a funcionária, citando como exemplo, sobre Ravisharanarayanan (Vijayan Panikkaveettil) que, apenas por rir fortemente, ganhou o personagem de Capitão, estando no lugar certo e na hora certa. Essa é a metáfora para o município de Canoas que tem a honra de receber uma das mais importantes companhias teatrais do mundo, nos dando o privilegio de assistir Ariane Mnouchkine e seu grupo: “Há-há-há-há-há: Capitão!”

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Ficha técnica:

Uma criação coletiva do Théâtre Du Soleil
Escrita em parceria com Hélène Cixous e inspirada num misterioso romance póstumo de Júlio Verne
Encenação de Ariane Mnouchkine
Música de Jean-Jacques Lemêtre
Duração: 3h45min
Classificação etária: 14 anos

Elenco feminino:
Eve Doe-Bruce
Juliana Carneiro da Cunha
Astrid Grant
Olivia Corsini
Paula Giusti
Alice Milléquantt
Dominique Jambert
Pauline Poignand
Marjolaine Larranaga Y Ausin
Ana Amelia Dosse
Judit Jancso
Aline Borsari
Frédérique Voruz
Gabriela Rabelo

Elenco masculino:
Jean-Jacques Lemêtre
Maurice Durozier
Duccio Bellugi-Vannuccini
Serge Nicolai
Sebastien Brottet-Michel
Sylvain Jailloux
Andreas Simma
Seear Kohi
Armand Saribekyan
Vijayan Panikkaveettil
Samir Abdul Jabbar Saed
Vincent Mangado
Sébastien Bonneau
Maixence Bauduin
Jean-Sébastien Merle
Seietsu Onochi
Jean-Jacques Lemêtre – trilha sonora

Ariane Mnouchkine – idealizou o espaço do espetáculo executado por Everest Canto de Montserrat
Charles-Henri Bradier – assistente de direção
Lucile Cocito – assistente de direção (colaboração)
Serge Nicolaï, Sébastien Brottet-Michel, Elena Antsiferova, Duccio Bellugi-Vannuccini, Andreas Simma, Maixence Bauduin – cenografia
Elsa Revol, Hugo Mercier e Virginie Le Coënt – criação e operação de luz
Yann Lemêtre, Thérèse Spirli e Marie-Jasmine Cocito – criação de som
Nathalie Thomas, Marie Hélène Bouvety, Annie Tran, Simona Grassano e Cecile Gacon – criação de figurinos, com a colaboração do elenco
Danièle Heusslein-Gire – pintou as telas do espetáculo
Adolfo Canto Sabido, Kaveh Kishipur, David Buizard, Johann Perruchon e Jules Infante – construções em metal e madeira
Elena Antsiferova – acessórios de cena
Vincent Mangado e Dominique Jambert – acastelagem e mastreação
Erhard Stiefel – blocos de gelo e iceberg
Paula Giusti – reconstituiu câmeras
Olivia Corsini, Aline Borsari, Ana Amelia Dosse, Alice Milèquant, Martha Kiss Perrone – confecção da grande banquisa
Sylvain Jailloux – regulação de chassis
Andrea Marchant e Ebru Erdinc – canhões e cabines de luz
Naruna de Andrade e Pedro Guimarães – tradução
Marie Constant e Judith Marvan Enriquez – operadores de legendas
Dominique Lebourge – piso e cenário
Everest Canto de Montserrat – técnica
Etienne Lemasson – informática e organização
Claire Van Zande e Pierre Salesne – administrativo
Liliana Andreone, Sylvie Papandréou, Marian Adroher Baús e Svetlana Dukovska – relações públicas
Franck Pendino – questões editoriais
Karim Gougam, Augustin Letelier e Julia Marin – chefes de cozinha
Thomas Félix-François e Catherine Schaub-Abkarian – cartazes e programa
Marc Pujo – fisioterapeuta

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