segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Sangue e pudins (RS)

Foto: divulgação

Elison Couto e Li Pereira

De um lado, belo texto. De outro, belo espetáculo


“Sangue e pudins” é a mais nova produção teatral dirigida por Luciano Alabarse, um dos diretores mais conhecidos e respeitados do sul do Brasil. Trata-se de uma releitura da peça teatral “Shopping and fucking”, do inglês Mark Ravenhill (1966), pincelada com trechos do romance semi autobiográfico do americano Brontez Purnell (1982) “Johnny, would you love me if my dick were bigger?”. Muito bom sob vários aspectos, o espetáculo pauta questões que envolvem consumismo, (homos)sexualidade, solidão e relações humanas, mas é principalmente uma homenagem aos anos 90. Angela Spiazzi (Lulu), Elison Couto (Gary), Jaques Machado (Robbie), Li Pereira (Mark) e Pingo Alabarce (Brian) estão no elenco apresentando boas interpretações, com destaque para os ótimos trabalhos de Spiazzi e sobretudo de Couto, esse último que, como normalmente, abrilhanta as peças nas quais atua. O trabalho estreou em janeiro de 2024 e pretende voltar à cena em abril ainda desse ano. É bem interessante conferir.


O ótimo casamento entre “Shopping and fucking” e “Johnny”: a adaptação de Alabarse.

O enredo de “Sangue e pudins” mantém quase que em sua integridade o de “Shopping and fucking”, peça escrita em 1995 e que foi um hit em Londres em 1996. No Brasil, houve uma primeira montagem em 1999 dirigida por Marco Ricca; uma segunda, em 2007, por Fernando Guerreiro; e uma terceira, em 2016, por Jopa Moraes.

Um dia, em um supermercado, o rico Mark (Li Pereira) compra dois jovens de sua idade: Lulu (Angela Spiazzi) e Robbie (Jaques Machado). Juntos, os três formam um certo de tipo de família, andando sempre juntos em festas, orgias, todo o tipo de experiência que envolve comida, drogas, sexo e música. Quando a história começa, Mark, recém diagnosticado como portador do HIV, não está bem de saúde, provavelmente em função de mais uma noitada de bebidas e heroína. Então, por sua própria conta, decide abandonar Lulu e Robbie (com quem tem uma relação afetiva um um pouco mais profunda) e ir para uma clínica de reabilitação. A partida do “provedor da casa”, deixa os dois em apuros: é preciso sustentarem-se. E, assim, comida congelada passa a fazer parte da rotina. Em busca de uma oportunidade, Lulu vai a uma agência de atores. Lá ela se encontra com Brian (Pingo Alabarce) e recita para ele um lindo trecho de “O canto do cisne” (1887), do russo Anton Tchekhov. Ele, porém, tem outro trabalho em mente para a desempregada. Sem outra opção, ela aceita, mas seu roommate Robbie (Jaques Machado) acaba estragando tudo e criando, para a dupla, um problemão fenomenal.

Do outro lado da narrativa, “Sangue e pudins” desenvolve uma trama paralela. Tendo sido sempre, desde muito criança, violado de todas as formas por parentes e pessoas estranhas, Gary (Elison Couto) hoje é um jovem michê (garoto de programa). Seu fantasma maior é seu padrasto, aquele que mais vezes o estuprou. Na adaptação de Alabarse de “Shopping and fucking”, o personagem Brian é o mesmo que “contrata” Lulu (no original de Ravenhill, não). Brian, uma espécie de “príncipe das trevas” no original, é apaixonado por “The lion king”, mas aqui ressalta a música como a maior criação de Deus. E, ainda na comparação com o original, Mark é expulso do centro de reabilitação, enquanto aqui, em “Sangue e pudins”, ele afirma mais de uma vez que saiu do lugar por sua própria vontade.

Ao voltar ao apartamento que dividia com Lulu e Robbie, Mark não é bem recebido. E suas novas decisões de vida o fazem encontrar-se com Gary, de modo que é, nesse momento, que as duas pontas de “Sangue e pudins” se unem. Ainda que Gary tenha cenas muito marcantes, é Robbie o personagem mais bem desenvolvido por Ravenhill mesmo na adaptação de Luciano Alabarse.

Contemporânea do musical “Rent”, de Jonathan Larson; e da peça “Closer”, de Patrick Marber, o texto “Shopping and fucking” envelheceu. Seus personagens são os jovens adultos frutos do neoliberalismo de Margareth Thatcher e Ronald Reagan que atormentaram suas infâncias. De um lado, a comida e o amor congelados; de outro, as drogas e o sexo como fantasmas assassinos. Essa dualidade já hoje em dia exige muita força para ser comparada com o mundo pós internet. Em outras palavras, é difícil trazer aquelas questões para o hoje sem muito esforço. E é aqui que entra o mérito do casamento de “Shopping and fucking”, de Ravenhill, com “Johnny, would you love me if my dick were bigger?”, de Purnell.

“Sangue e pudins” dosa bastante bem as cenas de ação com pequenos monólogos que exibem reflexões introspectivas dos personagens.  Escrito em 2015 e publicado um ano depois, o romance “Johnny…” participou, junto com outros textos do mesmo autor, de uma leitura dramática em Berlin, em setembro de 2023. Brontez Purnell, musicista, artista visual, bailarino e escritor, é um jovem conectado com o hoje e, como tal, reconhece as diferenças entre a contemporaneidade e os anos 90 no que se trata de consumismo, uso de drogas, práticas sexuais e solidão. São seus textos, em “Sangue e pudim”, que conectam o público ao espetáculo e aos personagens, promovendo reflexões bastante válidas que oxigenam a montagem. O título da peça vem de uma música de Fagner e Fausto Melo, interpretada por Simone e que faz parte de um disco lançado em 1976. Na letra, a frase: “Não quero saber quem sou, morro de medo” simboliza um vórtice de todas as questões abordadas no espetáculo. Lulu, Robbie, Brian e principalmente Mark e Gary só se reconhecem a partir de suas relações com as demais pessoas, pois não têm identidades próprias.


A direção boazinha com os personagens

A concepção de direção de Luciano Alabarse é bastante paradoxal. De um lado, “Sangue e pudins” é uma obra bonita de se ver porque esteticamente está muito vinculada aos anos 90: suas cores, estampas, modelagens, valores. Qualquer um que se lembre do apartamento da Mônica de “”Friends” vai achar visualmente bonito o que se vê em cena. Por outro lado, a beleza da produção atrapalha a violência, o escárnio, a acidez, a solidão, a desesperança da dramaturgia. A performance de “Help!”, dos Beatles, em que Jaques Machado dubla Miley Cyrus (?), é um desses momentos exemplares: belíssimo de um lado, mas pouco contribuinte de outro. E, encadeados a essa concepção, caminham o lindo desenho de luz de Maurício Moura e João Fraga, que tornam o espetáculo quase um musical adocicado da Broadway; os incríveis figurinos do grupo; o cenário assinado pelo diretor; e as ricas coreografias de Angela Spiazzi. Tudo isso parece ser de um espetáculo enquanto o texto é de outro. Um ponto de vista realmente negativo e sem contradições é a trilha sonora de Luciano Alabarse. É como se não houvesse um só instante de silêncio ao longo dos 120 minutos de duração da peça, o que alivia a dureza que os personagens deveriam sentir em suas extremas solidões e faltas de perspectiva. Em resumo, a direção parece ser muito “boazinha” com os personagens.


A brilhante interpretação de Elison Couto

Quanto às interpretações, a primeira coisa que deve ser dita é que Angela Spiazzi (Lulu), Pingo Alabarce (Brian) e principalmente Elison Couto (Gary) revelam ter técnica vocal bastante positiva para a defesa do espetáculo. Tudo o que eles dizem é compreensível: cada sílaba, cada entonação, o que nos faz recordar um tempo distante em que os atores, em geral, não precisavam de microfones de lapela para qualquer obra. O mesmo não se pode dizer infelizmente de Jaques Machado (Robbie) e sobretudo de Li Pereira (Mark). No caso deles, ouvem-se mais os gritos e as intenções bruscas do que o que realmente deve ser ouvido - as palavras. Pereira, em especial, praticamente diz todas as suas falas com a mesma entonação, sem nuances, sempre com muito esforço, nenhuma técnica, de maneira muito perigosa para suas cordas vocais e bastante monótona para a plateia.

Já foi dito, mas é possível repetir que Angela Spiazzi e Jaques Machado tem poucas oportunidades de mostrar variáveis de expressão, pois seus Lulu e Robbie respectivamente têm curvas muito limitadas já no roteiro. Lulu para na solução do problema do dinheiro que deve a Brian e Robbie tem toda a sua flexão nos ciúmes de Gary, e quase nada além disso. No entanto, ambos, mas principalmente Spiazzi dão a ver ótimos trabalhos com o pouco que têm, aproveitando bastante bem as possibilidades. Pinto Alabarce (Brian) praticamente não contracena, isto é, em boa parte da peça, seu personagem está sozinho. No entanto, o ator, cheio de ótimas oportunidades, agarra-as com galhardia ao que lhe é oferecido com destaque para a cena da cobrança de Lulu. Li Pereira (Mark), aquele que foi agraciado com o melhor personagem do roteiro, é o que menos tira proveito do texto. Tendo uma curva narrativa cheia de nuances, ele oferece uma interpretação linear que, no máximo, vai do 8 ao 80: ou está quase imóvel, ou está em explosão.

Elison Couto (Gary), com muitos mais anos de vida que o personagem que interpreta, apresenta uma defesa nada menos que brilhante em “Sangue e pudins”. Desde a verdade da sua dor física ou psicológica até a verdade irônica da forma como ele ridiculariza a si próprio em uma espécie de automutilação, o ator nutre a peça com detalhes riquíssimos de teatralidade. Há tantas variações de expressividade que fica difícil para o público digerir seu Gary, o que é motivador, pois tudo o que um bom espectador quer é sorver aos poucos o espetáculo que se descortina diante de si. Couto oferece, vibrantemente, um espetáculo à parte, fugindo dos lugares mais fáceis, investindo em segundos níveis e explorando as melhores dúvidas sobre sua composição, enquanto esconde a cristalização (se é que ela existe). Sem dúvida, é o que há de melhor em “Sangue e pudins”.


Escolher e aplaudir

Embora seja assim que o espetáculo se apresenta em seu programa entregue na bilheteria e divulgado nas redes sociais, “Sangue e pudins” é muito pouco sobre violência e muito mais sobre anos 90. Está muito mais próximo dos “Doc.s musicais”, dirigidos por Frederico Reder e Marcos Nauer no Rio de Janeiro, do que realmente sobre a dor. Para exemplificar, há uma cena em que os contrarregras Alexei Goldenberg e Vini Gomes correm com uma enorme bandeira LGBT em uma cena linda que pauta o falecimento de milhões de homossexuais durante a década em função do vírus HIV. O quadro trata-se de um tópico de check-list de tudo o que se passou no período e que não pode deixar de ser tematizado na opinião dessa concepção. Com isso, quer-se dizer que, na hora de assistir, o público terá que escolher se se deslumbra por toda a enorme coleção de lindas presenças estéticas ou se mergulha no texto, no personagem e na história narrada. Há que se escolher e, depois então, aplaudir!


*


Ficha técnica:

textos originais de Mark Ravenhill (“Shopping and fucking”) e Brontez Purnell (“Johnny, would you love me if my dick were bigger?”) com adaptação de Luciano Alabarse.


Direção, Cenário e Trilha Sonora: Luciano Alabarse

Coreografias: Angela Spiazzi

Iluminação: Maurício Moura e João Fraga

Figurinos e Maquiagem: O grupo


Elenco por ordem alfabética:

Angela Spiazzi - Lulu

Elison Couto - Gary

Jaques Machado - Robbie

Li Pereira - Mark

Pingo Alabarce - Brian


Contrarregras:

Alexei Goldenberg

Vini Gomes


Produção Executiva: Jaques Machado Produções Artísticas

Assistente de produção: Vini Gomes

Operação de Som: Manu Goulart

Fotos: Juliana Alabarse e Mariano Czarnobai Jr.

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