quinta-feira, 31 de março de 2022

Barnum - O Rei do Show (SP)

Foto: divulgação




Respeitável público, um excelente espetáculo chegou!

Até o dia 30 de abril, o belíssimo musical “Barnum - O Rei do Show” estará em cartaz no Teatro Casa Grande, na zona sul do Rio de Janeiro. A montagem, com excelente direção do estreante Gustavo Barchilon e com versão brasileira assinada por Cláudio Botelho, embeleza a programação teatral carioca. A peça é a primeira montagem nacional de “Barnum”, que estreou há 42 anos na Broadway. Ela celebra um personagem importante da história do mundo circense norte-americano, o Phineas Taylor Barnum (1810-1891), mas, para o público daqui, relembra e defende a magia do circo, a vibração de um espetáculo com altos padrões e o poder da arte. Nas atuações, a produção tem Murilo Rosa em excelente interpretação do papel-título, acompanhado pelas muitas vezes elogiades (e ainda aqui) Sabrina Korgut, Giulia Nadruz, Guilherme Logullo e Tauã Delmiro, mas também por Murilo Ohl. As coreografias de Alonso Barros, o desenho de luz de Maneco Quinderé, o cenário de Rogério Falcão e o figurino de Fábio Namatame são grifes que não surpreendem em oferecer altíssimo padrão de qualidade à obra. A crítica será estendida nos parágrafos a seguir, mas, para quem quiser parar de ler agora, vale dizer que eis aqui algo a ser visto e aplaudido. Isso sobretudo dito por causa dos maravilhosos trabalhos expressivos do elenco de apoio, esse que eu faço questão de nominar também: Ana Araújo, Bruno Ospedal, Diva Menner, Fernanda Muniz, Flavio Arcoverde, Gabriela Camissoti, Giu Mallen, João Siqueira, Juliano Alvarenga, Luan Pretko, Luisa Vianna, Marcos Fagundes, Marcos Lanza, Preto Viana, Rafael Barbosa, Raphael Silva, Renata Ricci, Rodrigo Silva e Sara Milca.

Sucesso de crítica nos Estados Unidos
Lançado na Broadway, no final de abril de 1980, “Barnum” não foi um grande sucesso de público ainda que tenha tido muitos elogios da crítica especializada. O compositor Cy Coleman, que quatorze anos antes havia feito algum sucesso com “Sweet Charity” (mais pelas coreografias de Bob Fosse) estava ao lado de Jim Dale, ator já reconhecido e premiado no teatro e figura conhecida no cinema. Glenn Close também estava no elenco unida a um grande grupo de artistas circenses e excelentes cantores e dançarinos. O que realmente faltava era uma boa dramaturgia. Mark Bramble (1950-2019) e Michael Stewart (1924-1987), os roteiristas, estavam muito envolvidos com o musical “42nd Street”, que ganharia os palcos alguns meses mais tarde (e que está agora para ser montado no Brasil pela Touché Entretenimento), e não encontravam uma boa chave de conflito para a encenação. De um modo geral, parece que, desde o princípio, se sabia que o mais importante do projeto não seria a história de P. T. Barnum, mas os números de circo que a produção ofereceria ao público.

A história parte de uma oposição a la “O feijão e o sonho” (lembrar da obra de Orígenes Lessa) entre um marido sonhador que pertence ao mundo das artes versus uma esposa prática e preocupada com as contas da casa. Avança por um conflito matrimonial, com a chegada de uma cantora sueca que renova a inspiração do protagonista, e por seu envolvimento com a política. E termina com o retorno circular da narrativa ao ponto inicial. De fato, o espetáculo primeiro ficou apenas dois anos em cartaz, um tempo relativamente inferior aos quase 9 anos de “42nd Streeet”. Quanto às premiações, obteve 10 indicações ao Tony, mas ganhou apenas 3 estatuetas: Melhor Cenário, Melhor Figurino e Melhor Ator (Jim Dale). O grande espetáculo de 1980 foi “Evita”, de Andrew Lloyd Weber, que ganhou 11 indicações e 7 troféus, incluindo Melhor Espetáculo. (“42nd Street” estreou no fim de agosto de 1980 e, por isso, ficou elegível para o Tony de 1981, quando venceu a categoria de Melhor Espetáculo.)

“Barnum”, no entanto, é uma peça americana e que trata da história de um personagem americano. P. T. Barnum realmente existiu, tendo nascido e vivido por noventa anos ao longo do século XIX. Ele era um homem que se tornou célebre por seu teatro de variedades, uma espécie de “Domingão do Faustão” da época: um espetáculo com números musicais, animais exóticos e personagens peculiares - a mulher mais velha do mundo, o homem mais baixo do mundo, a família de anões, o homem mais peludo, a pessoa albina. Seu teatro era chamado de “museu” por ser um local de abrigo a toda sorte de “curiosidades”, seja lá o que isso queria dizer naquela época em relação com o que politicamente correto se permite pensar ou falar hoje em dia. Joice Heth, por exemplo, que aparece como uma das personagens do musical “Barnum”, também existiu. Ela foi uma mulher preta sobre quem se dizia ter sido escravizada pelo pai de George Washington e, portanto, a babá do 1º presidente dos Estados Unidos. Isso faria com que ela contasse por volta de 160 anos de vida quando foi adquirida por Barnum e exibida no show, assim como outros de seus escravizados. Membro primeiramente do Partido Democrata e depois do Partido Republicano, Barnum atravessou o período da Guerra Civil Americana (1861-1865) com dificuldades. Foi prefeito e depois deputado estadual em Connecticut, um pequeno estado litorâneo ao norte de Nova Iorque e ao sul de Washington. A mudança de partido se deu pelo fato de que Barnum era contra a escravidão e seus posicionamentos foram provavelmente um dos motivos pelos quais seus teatros foram incendiados, pelo menos, duas vezes. O circo só foi entrar na vida de Barnum em 1870, cinco anos após o fim da guerra, como meio de ele se levantar financeiramente. O projeto de espetáculo itinerante foi criado quando Barnum se uniu a James Anthony Bailey (1847-1906) e sobreviveu, vejam só!, até 2017, ou seja, por 147 anos! Faliu devido a um conjunto de fatores, mas sobretudo por causa da proibição total do uso de animais selvagens em espetáculos artísticos. “Barnum”, após ter saído da Broadway, em 1982, fez apresentações na rua e também dentro do circo Barnum & Bailey. O estranho é o modo como o espetáculo se propõe a tratar de Barnum, colocando a nome no título, mas sem tratar das contradições e das profundidades desse homem importante da história das artes nos Estados Unidos. Faz lembrar de um espetáculo produzido no Brasil há alguns anos sobre Cássia Eller (1962-2001) que não fazia quase qualquer referência ao uso de drogas pela cantora em respeito à família dessa importante e saudosa artista brasileira.

Todas as questiúnculas trazidas acima sobre a superficialidade do roteiro de “Barnum” em relação a P. T. Barnum, que lhe nomeia enquanto obra artística, se foram consideradas problemas para a montagem americana, no Brasil, por outro lado, são positivos meios de acesso. Se o roteiro original da peça aprofundasse qualquer coisa sobre a figura homenageada, mais difícil seria para o público brasileiro se aproximar do espetáculo. Nesse sentido, é bom para nós que o Barnum de “Barnum” seja um mero joguete nas mãos de roteiristas que estão pensando no aspecto comercial do trabalho. A versão brasileira - “Barnum - O Rei do Show” - quase não tem qualquer link com a biografia de uma pessoa em específico, mas com os desafios, os maus bocados e as glórias de uma vida dedicada à arte circense. No palco, estão os malabarismos, a palhaçaria, os números de canto, dança e variedades (não há mágina infelizmente), uma menção à participação de animais (há uma cena de “elefante”) e a ênfase no risco físico. André Carreira, célebre pesquisador em Artes Cênicas na UDESC, trata sobre o poder do risco físico no teatro. Segundo ele, quando um homem está verdadeira e presencialmente diante de um outro homem que corre algum risco de vida, de maneira imediata, o primeiro se põe em estado de alerta. Numa das cenas, Murilo Rosa faz a plateia inteira do enorme Teatro Casa Grande prender a respiração. Nesse momento, toda a glória do canto, da dança, dos figurinos, da luz, do cenário, das interpretações fica em segundo plano. E isso nos faz recordar o quanto o circo, enquanto um ramo das artes cênicas, é um patrimônio universal a ser mantido e bem cuidado nessa viagem fria que fazemos pelo mundo digital.

Linda interpretação de Murilo Rosa
“Barnum - O Rei do Show” estreou em outubro de 2021 em São Paulo quando a flexibilização das medidas adotadas em prevenção à Covid-19 começou. E está em cartaz no Rio de Janeiro até o fim desse mês de abril de 2022. Sabrina Korgut (Sra. Charity Barnum, a esposa do protagonista) e Giulia Nadruz (a cantora sueca) fazem brilhar seus talentos musicais em personagens originariamente pouco profundos e bastante restritos. É uma pena ver os tantas vezes elogiados (e não menos aqui) Guilherme Logullo e Tauã Delmiro em personagens tão pequenos (respectivamente Bailey e Goldschmidt), mas sabemos que isso faz parte do jogo. E é ótimo conhecer Murilo Ohl (Tom Polegar) em um número tão difícil, que acontece logo após uma ótima cena e está em suas mãos manter ou resgatar a atenção da plateia após o relaxamento, desafio esse que ele vence positivamente. Diva Menner (Joice Heth) e Luisa Viana (Sra. Stratton) oferecem muito pouco para ser analisado positiva ou negativamente, isso muito provavelmente devido ao roteiro e não às suas potencialidades expressivas particulares.


O que se pode dizer da interpretação de Murilo Rosa? Sem medo do adjetivo, ele está lindo. E “lindo” é uma palavra muito difícil de ser usada numa crítica de teatro. Ela é escolhida aqui, porque o ator consegue defender seu personagem de maneira brilhante, conferindo ao protagonista um aspecto infantil, ingênuo, sensível para além de todas as adversidades. Mil problemas acontecem na jornada desse herói ao longo da narrativa e a relação dele com a esposa é um aspecto bem importante, mas Rosa mantém sempre um brilho nos olhos e um sorriso cativante no rosto pelo qual a gente se apaixona e mantém a confiança (e a esperança) por todo o espetáculo. Para além disso, deve-se dizer que o ator, assim como todo o elenco, mantém, sob a direção de Gustavo Barchilon com assistência de Vanessa Costa, excelente ritmo e excelente dicção, de modo que os diálogos não atrapalham em nada, mas só contribuem com o ótimo ritmo da peça. As cenas são rápidas, as marcações precisas e Rosa, Barchilon e toda a equipe assinam uma obra muito bem articulada.

O melhor e mais bonito de toda a peça, tal como aconteceu na Broadway, em Londres e em todos os lugares onde “Barnum” foi montado profissionalmente, e o que é mais interessante, é o aspecto circense. Bruno Ospedal, Luan Pretko, João Siqueira, Juliano Alvarenga, Marcos Fagundes, Rafael Barbosa e Rodrigo Silva apresentam um trabalho corporal de primeiríssima grandeza que, por si só, se nada mais houvesse na produção, já valeria o valor do ingresso. Todos esses profissionais, ao lado do elenco de apoio, renovam a certeza de que a arte melhora o mundo.

Sobre os aspectos técnicos, como se disse na introdução, “Barnum - O Rei do Show” tem a qualidade da assinatura Cláudio Botelho e sua equipe costumaz. As cores bem postas, tudo bem acabado, cheirando a ouro. O cenário de Rogério Falcão, o desenho de luz de Maneco Quinderé e sobretudo a coreografia de Alonso Barros com o figurino de Fábio Namatame e visagismo de Dhiego Durso e Feliciano San Roman são esplêndidos. Fosse um filme cujos quadros pudessem ser admirados em partes, inúmeros detalhes poderiam ser destacados: o primeiro figurino de Giulia Nadruz (Jenny Lind) é um pequeno grandioso exemplo. A cena de “A banda” (“Come follow the band”) é outro. Nele, e em diversos momentos e detalhes, se vislumbra, a beleza da direção musical de Thiago Gimenes com letras de Cláudio Botelho, mas esse elogio fica evidente pela responsabilidade (e peso) de apresentar uma trilha praticamente desconhecida no Brasil. “Barnum”, como já se disse, não é um daqueles musicais standards, cujas melodias ou letras o grande público conhece. E sair do teatro cantarolando as canções é mérito de quem as trouxe, no caso, a BARHO Produções.

Viva o circo!
O circo é uma arte multimilenar que teve sua origem na China, tendo se alastrado pelo mundo através do Império Romano. No Brasil, chegou via Estados Unidos na década de 30 do século XIX em uma era anterior a P. T. Barnum. Segundo dados da Associação Brasileira de Artes, Cultura e Diversões Itinerantes (ABACDI), há atualmente 651 circos no Brasil, sendo 40% desse montante do Nordeste e outros 40% da região Sudeste do país. Vale a pena assistir a um documentário sobre como muitas dessas empresas sobreviveram à pandemia clicando aqui. Em nossa história, o dia 27 de março é a data em que se comemora o dia do circo em homenagem a Abelardo Pinto (1887-1973), o Palhaço Pilion, que aniversariava nesse dia. Ele, seu irmão Ankito (1924-2009) assim como o nosso contemporâneo Frederico Reder, dono da Reder Circus, é o nosso P. T. Barnum, tendo dedicado sua vida ao circo seja sob a lona, seja dentro de um teatro. “Barnum - O Rei do Show” é uma excelente oportunidade para se conhecer a história artística da nossa ancestralidade, mas também sorrir, chorar e se encantar com um espetáculo vibrantemente produzido. Aplausos!

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FICHA TÉCNICA
Direção Geral: Gustavo Barchilon
Versão Brasileira: Cláudio Botelho
Direção Musical: Thiago Gimenes
Coreografia/Dir. de Movimento: Alonso Barros
Figurino: Fábio Namatame
Cenógrafo: Rogério Falcão
Iluminador: Maneco Quinderé
Design de Som: Tocko Michelazzo
Visagismo: Dhiego Durso
Perucaria: Feliciano San Roman
Diretora Residente: Vanessa Costa
Coordenadora do Circo: Alessandra Abrantes
Instrutora de Circo: Cinthia Nunes
Assistente de coreografia: Cecília Simões
Tradução: Cláudia Costa
Adaptação: Gustavo Barchilon

Murilo Rosa como P.T Barnum
Thiago Machado como P.T Barnum alternante
Sabrina Korgut como Charity
Giulia Nadruz como Jenny Lind
Diva Menner como Joice Heth
Murilo Ohl como Tom Polegar / Swing
Guilherme Logulo como Bailey
Marcos Lanza como Amos Scudder
Luisa Vianna como Sra. Stratton
Tauã Delmiro como Goldsmith

Trupe do Circo: Renata Ricci, Ana Araújo, Bruno Ospedal, Fernanda Muniz, Sara Milca, Gabriela Camissoti, Giu Mallen, Preto Viana, Juliano Alvarenga, Marcos Fagundes, Rafael Barbosa, Flavio Arcoverde, João Siqueira, Luan Pretko, Raphael Silva e Rodrigo Silva.

Diretor de Produção: Thiago Hofman
Produtora Executiva: Graziele Saraiva
Coordenadora Financeira: Thamiles França
Coordenadora Administrativa: Renata Stilben
Coordenadora do Projeto: Natália Egler
Assistente de Produção: Leandro Leal
Assessoria de Imprensa: Trigo Comunicação
Realização: BARHO Produções

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