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Foto: divulgação
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Gustavo Vaz e Armando Babaioff |
Uma das melhores peças de 2017
“Tom na fazenda” é uma das melhores peças de 2017 no teatro carioca, tendo já ganhado as principais indicações aos Prêmios Shell e Cesgranrio do ano e recebido inteiramente críticas bastante positivas tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo. Escrito pelo franco-canadense Michel Marc Bouchard em 2010, o texto é o primeiro do dramaturgo montado no Brasil. Rodrigo Portella assina um excelente trabalho de direção em que o uso do espaço e o modo como estabelece a tensão se articulam em uma proposta estética que une a dramaturgia original e a versão fílmica que a peça recebeu em 2013 pelas mãos de Xavier Dolan. No elenco, Armando Babaioff, que interpreta o personagem título, está em seu melhor trabalho. Ele divide o palco com Gustavo Vaz, Kelzy Ecard e Camila Nhary, todos também em performances muito meritosas. O espetáculo, em que se veem brilhantes contribuições do cenário, do figurino, da luz e da trilha sonora, está atualmente em cartaz no Teatro Poerinha, em Botafogo, na zona sul da capital fluminense.
Um texto brilhante!
A história começa com a chegada do publicitário Tom (Armando Babaioff) à casa da família de seu namorado logo após o falecimento desse como vítima de um acidente automobilístico. É aí que, conhecendo Ágatha (Kelzy Ecard), a mãe do falecido, o protagonista descobre que a orientação sexual do morto era um tabu em sua pequena cidade de origem. Tom conhece também Francis (Gustavo Vaz), filho mais velho de Ágatha, que, desde o início, deixa clara a sua antipatia pelo visitante desconhecido bem como por qualquer motivo que possa tê-lo trazido ali. De modos diversos, a mãe e o irmão de seu namorado acabam convencendo Tom a permanecer entre eles alguns dias na fazenda.
O texto reaviva uma história que compõe a coletânea “Les Limbes”, que Bouchard escreveu em 1995 e que nunca foi encenada. Em 2010, “Tom à la ferme” foi levado às mãos do diretor Claude Poissant, que encenou a primeira versão da peça em janeiro de 2011 em Montreal, no Canadá. A montagem brasileira, cuja tradução é assinada por Armando Babaioff, parte da adaptação para cinema dirigida por Xavier Dolan, mas com roteiro desse e do próprio Bouchard. De uma para outra e chegando à terceira, houve um aprofundamento vertiginoso do psicologismo da situação com ênfase na complexidade dos signos que dão a ver a narrativa.
No passado, o namorado de Tom abandonou o interior e partiu para a grande metrópole. Agora é Tom quem faz o caminho de volta. Ele vem para enterrar o falecido, mas, de algum modo, acaba ele próprio enterrado em um buraco do qual é difícil de sair. Como publicitário, o visitante trabalha com imagem, com identidade, mas, no recorte da narrativa, ele tem acesso a outras perspectivas dessas questões. Há duas mortes e um parto; há uma família cerceada pelo olhar alheio, mas com membros extremamente solitários. Tom manda mensagens de áudio para o WhatsApp de seu namorado ausente que nunca serão ouvidas por ele. No entanto, conhece segredos do outro aos quais nunca até então teve acesso. Essas e outras ambivalências que organizam a estrutura dramática são pontos-limite cujos elos de ligação expõem a complexidade a partir da qual Bouchard, Dolan e Babaioff parecem ter preferido na sua visão do homem. Em uma frase célebre de uma de suas entrevistas, o dramaturgo diz que “os homossexuais aprendem a mentir antes mesmo de aprender a amar”. Longe de um juízo de caráter, a fala trata de uma dimensão de teatralidade. Envolvida em processos discursivos de construção, defesa e de expressão da identidade, ela tem tudo a ver com uma narrativa em que quatro personagens têm pontos de vista muito diferentes sobre um quinto que já morreu. Eis aqui um texto brilhante!
Excelente direção de Rodrigo Portella
A direção de Rodrigo Portella em “Tom na fazenda” é o seu melhor trabalho em um universo de outros já bem elogiados. A articulação de todos os elementos estéticos da obra evidencia uma concepção rica em possibilidades e que se expressa por meio de quadros muito profundos. Em primeiro lugar, há que se prestar a atenção no uso do espaço. O palco aberto, sem cortinas nem móveis tira dos personagens qualquer moldura na qual eles poderiam se apegar. A opção traz à superfície a solidão e o sentimento de perda e os obriga a se conectar entre si na falta de qualquer coisa ou pessoa melhor. A tensão desenvolvida nesse aspecto se mantém nos modos como as falas aparecem na dramaturgia cênica. Há uma série de silêncios maiores ou menores em meio aos quais as relações entre os pontos se cruzam. Nesses intervalos, a perspectiva impressionista se impõe, garantindo que a paisagem vista por Tom possa chegar ao espectador corrompida por seus filtros, o que é muito interessante.
Outro destaque da encenação é a maneira como o barro se torna um signo forte. Tanto na tradição judaico-cristã como na africana, o homem veio do barro e a ele volta. Durante as quase duas horas de espetáculo, os personagens vão se enlameando na “sujeira” que domina o chão sob seus pés de modo que suas características particulares vão gradualmente sumindo. É como se a peça estabelecesse uma curva em direção à materialidade mais profunda do homem, ao lugar onde todos se encontram. Além de belo, é um feito inteligentíssimo.
Por fim, Portella usa bem todos os níveis que tem em mãos: os atores se deitam, andam e são alçados a voos em uma rica exploração do panorama que permanece no olhar por sobre os outros elementos do texto espetacular como o cenário de Aurora dos Campos, o desenho de luz de Tomás Ribas e o figurino de Bruno Perlatto. Esses últimos colaboram com o espetáculo na medida em que ocupam seus espaços, elevando as possibilidades visuais da obra. Já elogiado, a jeito como o chão invade os personagens e os enterra exige a participação da luz e do figurino: a primeira estabelecendo o choque e o segundo se neutralizando.
É, no entanto, na concepção sonora e na direção musical de Marcello H. que “Tom na fazenda” atinge seus patamares mais elevados entre os elementos externos às interpretações. Mais uma vez, H. incluiu a banda sonora em uma produção cênica de modo a inventar um novo personagem. Graças ao som, o público tem chances de fruir, em primeiro lugar, um certo isolamento da propriedade onde quase toda a peça acontece e o resto do mundo. Em segundo lugar, na medida em que as cenas vão acontecendo, a música revela variações na intimidade entre as figuras. Por fim, H. realça o silêncio dos diálogos, escrevendo falas musicais nos intervalos de Bouchard, colaborando com a manutenção da tensão provavelmente sonhada por ele, por Dolan e por Babaioff.
Os destaques de Armando Babaioff e de Gustavo Vaz
Kelzy Ecard e Gustavo Vaz |
Todo o elenco apresenta valorosos trabalho de interpretação. Camila Nhary, que interpreta Sara, a amiga de Tom e de seu namorado falecido, tem uma participação relativamente pequena na dramaturgia, mas marcante também no espetáculo. Sua personagem entra na narrativa para salvar um amigo, mas, de algum modo, acaba salvando outro, enquanto reestabelece o contato entre o mundo externo e a situação interna. E a atriz meritosamente pauta esse estranhamento, se utilizando dos bons recursos expressivos de que dispõe. Kelzy Ecard, que já foi a Mãe em outra história também filmada por Xavier Dolan (“Apenas o fim do mundo”, filme de 2016), traz sua melhor força para a personagem Ágatha, contribuindo com a montagem sem aparentemente grandes desafios.
Gustavo Vaz e Armando Babaioff repetem a dupla formada em 2009 em “Na solidão dos campos de algodão”, de Bernard-Marie Koltès, com direção de Caco Ciocler, mas agora em trabalhos muito melhores. Os dois, protagonista e antagonista, são a força que sustenta todos os demais aspectos da encenação que gravitam em seu redor. Se os outros elementos caracterizam o conflito, esse surge através de seus personagens Francis e Tom. E o resultado é muito positivo. Ambos os intérpretes apresentam excelentes trabalhos de corpo e de voz por meio dos quais se ouvem diálogos precisos e figuras interessantes em universos, a princípio opostos, mas que depois talvez nem sejam tanto. Há uma masculinidade vibrante que mantém a narrativa vinculada à questão LGBT, mas sem estar presa a ela, permitindo que se invista em voos mais altos, como a própria humanidade, por exemplo. Eis dois trabalhos excelentes que elevam os méritos dos atores na programação carioca desse ano.
Para ver, rever e aplaudir!
“Tom na fazenda” também estreou esse ano na Ucrânia, na Alemanha e na Venezuela depois de já ter sido montado em muitas outras cidades do mundo nesses apenas sete anos desde sua escritura. Em uma montagem sem patrocínio e que depende inteiramente do público, a produção tem colhido o calor das audiências em retribuição ao excelente espetáculo que apresentam. Vale a pena ver, rever e aplaudir!
Ficha técnica:
Texto: Michel Marc Bouchard
Tradução: Armando Babaioff
Direção: Rodrigo Portella
Elenco:
Armando Babaioff - TOM
Kelzy Ecard - ÁGATHA
Gustavo Vaz - FRANCIS
Camila Nhary - SARA
Cenografia: Aurora dos Campos
Iluminação: Tomás Ribas
Figurino: Bruno Perlatto
Concepção Sonora e Direção Musical: Marcello H.
Guitarra e Violões: JR Tostoi
Preparação Corporal: Lu Brites
Coreografia: Toni Rodrigues
Hair Stylist: Ezequiel Blanc
Fotografia: José Limongi, Renato Mangolin e Ricardo Brajtman
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Direção de Produção: Sérgio Saboya
Produção Executiva: Milena Monteiro
Assistente de Produção: Pri Helena
Produção: Galharufa Produções
Idealização: ABGV Produções Artísticas
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