quarta-feira, 13 de abril de 2016

Guia afetivo da periferia (RJ)

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Foto: Leo Aversa

João Pedro Zappa

Um belo convite!

No ótimo monólogo "Guia afetivo da periferia", Marcus Faustini adapta para teatro seu celebrado livro homônimo lançado pela editora Aeroplano em 2009. A peça saiu de cartaz no último sábado, dia 9 de abril, no Teatro Serrador. No texto, uma coleção de histórias revela o dia a dia de um rapaz que, quando era criança, mudou-se do bairro Chacrinha, em Duque de Caxias, para Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro. A visão dele sobre a vida nesses lugares e também sobre a relação deles com outras partes da cidade sugere uma reflexão acerca dos pontos não privilegiados no olhar do nosso entorno. A interpretação de João Pedro Zappa e a colaboração das projeções em vídeo na dramaturgia são outros pontos altos desse belo espetáculo que há de cumprir muitas e ainda calorosas temporadas.

O texto de Marcus Faustini
O texto de "Guia afetivo da periferia" é um excelente convite para um ponto de vista mais amplo no qual o comum também ganhe a atenção. O pôr-do-sol do Cesarão, conjunto habitacional de Santa Cruz, pode merecer tantos aplausos quanto o de Ipanema, o valor de um endereço na zona sul pode ser rapidamente questionado, a importância da função de office-boy do Banco do Brasil também é relativa. Sem sugerir uma inversão de valores através da simples troca de lugares entre o que é central e o que é periférico, a dramaturgia da peça oferece uma alternativa que não se desfaz do convencional. Justapostos, eles podem lindamente conviver em uma perspectiva mais complexa de humanidade.

Com muitos méritos, dois são os problemas que atrasam a excelência. O primeiro deles é um aspecto técnico da sala da espetáculo onde o texto ganhou montagem. O frio absurdo causado pelo ar condicionado enrijeceu a audiência, detalhe importante, mas que passa muitas vezes batido por produções desatentas. No inverno carioca, é preciso manter-se atento para o movimento do público em busca de casacos se se consideram não apenas os elementos estéticos como aqueles relevantes à fruição da obra.

A segunda questão diz respeito à estrutura do texto. A ausência de ordem cronológica e de situação de pontos de conflito que manifestem mais claramente uma curva ascendente é positiva porque dá à narrativa tom de realismo. Isso informa que "Guia afetivo da periferia" não está longe, mas perto, vivo, disposto em qualquer lugar ao alcance da vista mesmo fora do teatro. No entanto, um bom ritmo fica mais difícil de se sustentar com essa opção. O excesso de regularidade na disposição dos signos permite ao público sentir que a peça pode durar quinze ou noventa minutos a mais e a relatividade do tempo faz disso um problema que é vencido aqui, mas não facilmente.

A direção de Marcus Faustini
A direção de Marcus Faustini, assistido por Douglas Resende e por Veruska Delfino, estabelece ótimas bases para a fluente conversa entre palco e plateia. As projeções em vídeo, que dominam dois terços da encenação, trazem à cena balanço para os quadros unicamente apresentados pelo ator João Pedro Zappa. Elas oferecem, de maneira ímpar, a imagem indubitável das paisagens vistas pelo personagem: as bancas de churrasquinho, os azulejos do Edifício Capanema, as casas simples. Além disso, seu lirismo, como também o da trilha sonora, equilibra o todo com a iluminação de Aurélio de Simoni, essa que faz positivamente a peça tão crônica quanto o livro.

O cenário de Fernando Mello da Costa e o figurino do diretor agem na mesma da direção do texto: a enorme quantidade de palavras são esforço em defender as imagens sob o âmbito de suas complexidades. Com o público sentado muito próximo do espaço cênico, os vários objetos espalhados pela cena parecem ser ainda mais numerosos. Arquivos de aço, caixas de som e folhas de jornal vão dividindo lugar com outros artefatos, poluindo a cena em uma verborragia tão visual para a peça como é essa dramaturgia para a literatura. O panorama colabora bastante bem com o discurso na medida em que essa periferia de que fala "Guia" é totalmente urbana e, por isso, repleta de cores, formas e de texturas.

A interpretação de João Pedro Zappa
Na interpretação de João Pedro Zappa, não há qualquer marca que associe seu personagem ao modo estereotipado como frequentemente se vê quando se trata de periferia carioca. Dentre os vários aspectos positivos dessa opção, está o jeito como ela aproxima o público da peça. Em primeiro lugar, "Guia afetivo da periferia" não hesita em lembrar a plateia de que se está assistindo a um espetáculo teatral. Não há ilusionismo, nem farsa e a teatralidade se garante por modos bem discretos. Zappa exibe pesquisa de personagem, mas não se traveste dele, estabelecendo o contrato a partir de uma situação que nasce simples, cordial e madura e se mantém assim. A graça de alguns momentos atribui leveza ao todo sem tirar a força dos quadros imagéticos mais densos. Trata-se de um trabalho positivamente destacável sob todos os aspectos na programação carioca dessa temporada.

"Guia afetivo da periferia" apresenta um olhar amplo sobre vários aspectos incluindo fortemente a periferia. Proust, Barthes, Dostoievski e cinema francês, valorizados pelo centro, convivem com o sacolé de Toddy, as sonecas no ônibus da madrugada e a Ave-Maria das vésperas sem qualquer juízo pronto de valor no centro dessa narrativa. A justaposição é um convite para se olhar afetivamente para tudo, para o homem de um modo geral. Um belo convite!

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Ficha técnica:
Texto, direção, figurino e vídeos: Marcus Faustini
Atuação: João Pedro Zappa
Cenografia: Fernando Mello da Costa
Iluminação: Aurélio de Simoni
Assistente de direção: Douglas Resende e Veruska Delfino
Estágio de direção e Contrarregragem: Diego Migliorin
Edição de vídeos: Gregório Mariz
Trilha dos vídeos: Eduardo Guedes e Gregório Mariz
Câmeras: Gregório Mariz e Diego Bion
Produção Executiva: Edésio Mota-Inverso Produções Artísticas
Técnicos de luz e de som: JR Camacho e Matheus Castro
Designer Gráfico: Marina Moreira
Assessoria de Adminstração: Valquíria Oliveira e Francisco Salgado
Fotos: Leonardo Aversa
Assessoria de Imprensa: RPM
Realização: Instituto C