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Elenco em divulgação |
Um dos pontos mais altos da temporada nacional de 2017
“Suassuna – O Auto do Reino do Sol” é o mais novo excelente espetáculo da companhia Barca dos Corações Partidos, o mesmo grupo que recentemente assinou sucessos como “Auê” e “Gonzagão – A lenda”. Com texto de Braulio Tavares e canções de Chico César, Alfredo Del Penho e de Beto Lemos, o musical é inteiramente original para a glória do teatro brasileiro. Trata-se de uma peça escrita para o dramaturgo paraibano Ariano Suassuna (1927-2014), que estaria completando 90 anos em junho último. Não é uma biografia dele, nem tem colagens de textos dele, mas é uma homenagem inédita composta a partir do seu universo. Produzida por Andrea Alves da Sarau Agência, a obra dirigida por Luís Carlos Vasconcellos fez uma elogiada primeira temporada no Teatro Riachuelo, na Cinelândia, Rio de Janeiro, e agora está em cartaz em São Paulo, no Sesc Vila Mariana, até o início de outubro. Vale a pena correr para garantir os ingressos a fim de não perder um dos pontos altos da temporada nacional de 2017.
Dramaturgia, direção e trilha sonora excelentes!
A história começa com a chegada de um Circo-Teatro a uma região fictícia chamada Vale do Soturno, no interior do sertão nordestino, onde os estados do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba e de Pernambuco se confundiriam. A trupe, liderada por Sultana (Adrén Alvez), ensaia seu novo espetáculo: “As novas aventuras de Dom Quixote de La Mancha”, em que Escaramuça (Eduardo Rios) interpretará o personagem título, Cabantõe (Renato Luciano) será o fiel escudeiro Sancho Pança e Mosquito (Fábio Enriquez) será a mula Rocinante. De repente, às vésperas da apresentação, chegam ao acampamento o casal Lucas Fortunato (Alfredo Del Penho) e Iracema Moraes (Rebeca Jair). Um diz que eles estão casados há um ano, outro que há um mês. É preciso decidir se eles serão aceitos ou não no grupo de artistas. Aos poucos, fica-se sabendo o que está por trás do interesse desses dois últimos em fugir com o circo.
A região dO Soturno é dominada por duas famílias inimigas: a do major Antônio Moraes (Ricca Barros) e a da matriarca Eufrásia Fortunato (Ádren Alvez). Ele é tio da jovem Iracema, ela é avó do jovem Lucas. Quando Lucas raptou Iracema, matou dois jagunços do tio de sua amada. E agora Antônio Moraes quer vingança. Nesse sentido, a trupe de Sultana se vê no meio de uma guerra sertaneja com a qual tem mais relações do que gostaria.
Em “O Auto do Reino do Sol”, questões de honra, a dureza da vida no sertão, a religiosidade, a habilidade de resolver problemas e o amor são ingredientes para uma narrativa popular originalmente escrita por Braulio Tavares. Coberta de influências do universo do saudoso dramaturgo paraibano Ariano Suassuna, a obra acaba não sendo nem de Suassuna, nem sobre o homenageado, mas para ele. Com tão magnífica montagem, a Barca dos Corações Partidos, em uma declaração de amor a tudo o que Ariano amava, eleva a ele um sublime agradecimento em nome do público brasileiro e de si próprio.
Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho assinam as músicas originais. Cada uma é mais bonita que a outra, tocando fundo na alma dos brasileiros de todas as regiões, embargando as vozes das audiências de todos os Brasis. Temas das canções, a guerra que o sertanejo trava contra a dureza da seca, o amor como pedra de salvação dos espíritos em meio à corrupção, a força da natureza e o poder da religião são como impulsos que unem os homens entre si, mas também com sua gente e com o lugar por onde perambulam. são. Todas elas são tocadas e cantadas pelo elenco com tamanha maestria que só nos resta orgulhar-se da oportunidade de estar diante de tal experiência estética e, mais ainda, de reconhecer que eles são artistas brasileiros, nossos irmãos, em luta como nós em país tão castigado. Gabriel D’Angelo, e André Garrido e Bruno Pinho, como designers de som associados, valem ser citados.
Sobre palco quase vazio, sem quase qualquer cenário, a direção de Luiz Carlos Vasconcelos, assistido por Vanessa Garcia, faz do palco metáfora para a aridez do sertão em que os personagens lutam para se impor através de suas existências. Cada quadro viabiliza um jogo de movimentações que propõe novas regras, defende-as e as subverte na manutenção de um ritmo interessante, que é rico em possibilidades. O público vence o desafio de identificar as forças que circundam cada novo panoramas. E ganha com o registro dessas variedades que, às vezes, se repetem de modo a conservar a unidade estética da obra como um todo e, às vezes, são surpreendentes de maneira a manter ativo o estado de atenção. Dramaturgia, trilha sonora e direção, assim, são três bases iniciais sobre as quais fundam-se os primeiros méritos do texto espetacular, sendo eles acrescidos de outros, não menos valorosos, mas mais ricos em detalhes.
Belas contribuições do figurino, do cenário e da iluminação
O figurino de Kika Lopes e de Heloísa Stockler polui o quadro inicial com enorme carga de texturas, cores, formas, detalhes e referências em um embaraço neomaneirista que faz “O Auto do Reino do Sol” lembrar o Grupo Galpão em espetáculos definitivos como “Romeu e Julieta”. Pouco a pouco, porém, a profusão se estabiliza e, do meio do emaranhado de temas, começa a se ver relativa particularidade. Ao final do espetáculo, a glória do figurino será contemplada, no todo e por cada parte, pela ebulição proposta. Trata-se talvez um comentário sobre as oposições temáticas de que o espetáculo fala: a vida e a morte, a esperança e a conformidade, a riqueza e o começo, o sol e a noite, o amor e o ódio, a partida e a chegada, o fim e o começo. Tudo isso parece estar ao mesmo tempo em um só quadro que é difícil de explicar, mas muito fácil de identificar. Vale nomear nesse item o visagismo assinado por Uirandê de Holanda e por Angélica Ribeiro.
A cenografia de Sérgio Marimba tem dois grandes momentos: um carro metálico por onde se movimenta a trupe de Sultana pelo sertão e a lona que, multiforme, assume várias funções no fundo do palco, às vezes, desparecendo e deixando ver o infinito. São participações pequenas, mas que, dentro das possibilidades, elevam as qualidades estéticas da obra como um todo, inclusive por nobremente oferecer espaço para outros elementos, como o figurino e a trilha sonora, atingirem maior importância. A iluminação de Renato Machado, do céu estrelado às inclusões da plateia através da luz cumpre igualmente mais modesta colaboração, mas nem por isso menor ou menos valorosa.
Eduardo Rios, Renato Luciano, Fábio Enriquez, Adrén Alvez nA Barca dos Corações Partidos
A Barca dos Corações Partidos é uma companhia, isto é, um coletivo onde diversos artistas unidos entre si constroem uma história conjunta unindo histórias pessoais. Nesse sentido, é inválido destacar o trabalho desse ou daquele profissional se não se entender o resultado como um fruto de processo que se deu e que se dá pela parceria espetáculo após espetáculo. Em “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”, há quatro destaques que refletem as brilhantes participações de Beto Lemos (o advogado de Dona Eufrásia), de Ricca Barros (o Major Antônio Moraes), de Alfredo Del Penho (Lucas), de Rebeca Jamir (Iracema) e de Chris Mourão e de Pedro Aune. São eles: Eduardo Rios e Renato Luciano (a dupla de palhaços), Fábio Enriquez (o jagunço Casimiro) e Adrén Alvez (Dona Eufrásia e Sultana).
Renato Luciano e Eduardo Rios |
Eduardo Rios (Dom Quixote) e Renato Luciano (Sancho Pança) defendem a difícil arte da palhaçaria, uma técnica centenária de artes cênicas sobre a qual inúmeros teóricos, historiadores e pesquisadores escrevem há dezenas de anos. Em suas construções, se dão a ver toda a complexidade da forma – uma esquina de claros e escuros, de tragédias e comédias, de ironia, de ingenuidade e de esperteza, de dor e alegria – mas também um fluxo de marcas que assinala seus envolvimentos com a particularidade da dramaturgia. Seus personagens Escaramuça e Cabantõe, que por sua vez interpretam outros personagens na peça dentro da peça, são artistas sertanejos, palavras que cheiram à redundância. Neles se encontram a criatividade e a força do povo, a alegria e a ingenuidade, a malandragem e a pureza das quais tantas vezes Ariano Suassuna se utilizou para compor seus heróis. O público se diverte em seus números de plateia, torce por eles nas partes da narrativa em que essa se apresenta mais fechada e vibra pelos trabalhos aplaudindo os intérpretes ao final da sessão. É maravilhoso!
Adrén Alvez |
“O Auto do Reino do Sol” tem ainda o excelente trabalho de Fábio Enriquez e o fenômeno Adrén Alvez. Sobre o primeiro, que se destacou também em “Auê”, vale ressaltar o modo como o palco enorme parece pequeno em seus solos. O intérprete capta a atenção e devolve ao público exuberante gestual, expressões mergulhadas em técnica e com altíssimo controle da espontaneidade e uso da voz magnificamente meritoso. Sem dúvida, é um dos grandes trabalhos de interpretação de 2017. Sobre o paraibano Adrén Alvez, a recorrência dos elogios que ele acumula ao longo de sua já sedimentada carreira nos palcos da região sudeste seja como ator, seja como cantor aponta para alguém sobre quem o futuro dirá se tratar de um dos mais notórios artistas desse início de século XXI. Ele é um fenômeno da natureza por sua potência musical, por sua força interpretativa, por seu enorme talento e sobretudo pelo modo ímpar como a cada nova produção ele se renova e ganha mais notoriedade. Vale a pena assisti-lo desde já para fazer parte dessa história.
Por fim, na análise das interpretações, há que se dizer que esse espetáculo apresenta Rebeca Jamil, cujo brilho aumenta gradativamente ao longo do espetáculo até seu personagem Iracema dominar a narrativa através de seu trabalho bastante positivo como atriz. Eis um novo nome nascendo que se merece acompanhar!
Relato de audiência: o mais longo aplauso
Há muito tempo não uso a primeira pessoa do singular na escrita das críticas publicadas aqui, mas talvez valha agora uma exceção porque há muito tempo não presencio o que eu testemunhei na plateia de “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”. Eu assisti à peça em uma sessão corriqueira, isto é, nem estreia, nem estreia vip, mas ao lado de um público de pessoas anônimas, que compraram seus ingressos e que se prepararam, em um dia qualquer, para ver uma peça sem atores globais. No instante em que o espetáculo acabou, a massa de pessoas pôs-se de pé a aplaudir sonoramente em um movimento vibrante que durou muito além do normal. Isso, aos meus olhos acostumados com a gentileza do público brasileiro, criou uma energia capaz de marcar o momento para sempre. Relatar essa ovação longa, espontânea, afetuosa e grata da audiência à montagem vista quer ser aqui um convite para se prestar a atenção nessa peça e no que ela causa em nossa história. Eis um grande espetáculo!
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SUASSUNA – O AUTO DO REINO DO SOL
Uma encenação de Luiz Carlos Vasconcelos
Texto: Bráulio Tavares
Música: Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho
Idealização e Direção de Produção: Andrea Alves
Com a Cia. Barca dos Corações Partidos: Adrén Alvez, Alfredo Del Penho, Beto Lemos, Fábio Enriquez, Eduardo Rios, Renato Luciano e Ricca Barros.
Atriz convidada: Rebeca Jamir
Artistas convidados: Chris Mourão e Pedro Aune
Cenografia: Sérgio Marimba
Iluminação: Renato Machado
Figurinos: Kika Lopes e Heloisa Stockler
Design de som: Gabriel D’Angelo
Assistente de direção: Vanessa Garcia
Coordenação de Produção: Leila Maria Moreno
Produção Executiva: Rafael Lydio
Apoio: One Health e ONS
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