Foto: Lair Júnior
Elenco em cena |
Com problemas de direção, CoolHall traz importantes reflexões brechtianas a Cascavel
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Ficha técnica:
Texto: Bertolt Brecht
Direção: Maia Piva
Maquiagem e Figurino: Mateus Espíndula
Expressão Vocal: Regina
Expressão Corporal e Improvisação: Virgínia Tosta
Interpretação: Cleci Pagnussatti
Elenco:
Cessi Dassi
Sol Cozzatti
Léo Aguiar
Gi Mazzotti
Vitor Deuner
Lucas Wengrat
Produção: Lair Júnior e CoolHall Cine-Teatro e Escola
“A exceção e a regra”, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), é a mais nova produção teatral em cartaz na cidade paranaense de Cascavel. Ela é parte do Curso de Formação de Atores da Coolhall, cine-teatro e escola, que fica no bairro Alto Alegre, um pouco a leste do centro, e tem apresentações lotadas desde o dia 30 de novembro e vai até amanhã, dia 03 de dezembro, às 20h. Escrita entre 1929 e 1930, pertencente à 3a fase brechtiana, foi o 24o texto do autor, depois dos famosos “O casamento do pequeno burguês”, “O homem é um homem”, “Mahagonny”, “A ópera dos três vinténs” e “Santa Joana dos Matadouros”. O elenco é composto pelos alunos-atores concluintes do 2o semestre Cessi Dassi, Gi Masotti, Léo Aguiar, Lucas Wengrat, Sol Cozzatt e Vitor Deuner. A direção, cheia de problemas gravíssimos, é assinada pela professora da disciplina de Laboratório de Montagem Maia Piva, trabalho esse que afasta o espetáculo de melhores elogios. Vale a pena assistir pela força avassaladora do texto que sobreleva todo e qualquer problema da encenação felizmente, trazendo reflexões importantes para o hoje, quase um século após a sua escritura.
O precioso texto de Bertolt Brecht:
Por “A exceção e a regra” (“Die Ausnhame und die Regel”) se tratar de um clássico da dramaturgia ocidental, dispensar-se-ia o medo de spoilers. No entanto, evitá-los-emos como estímulo a quem deseja ir conferir a montagem hoje e amanhã e tirar as suas próprias conclusões. Pode-se, porém, dizer que a narrativa gira em torno de três personagens: o Coolie (ou Cule, ou Porter, ou Carregador), o Guia e Karl Langmann (o único personagem com nome), esse último um comerciante a caminho da cidade de Urga, na Mongólia (desde 1924, oficialmente chamada de Ulã Bator, a cidade mais fria e mais poluída do mundo), que, na dramaturgia, atraía pessoas em função da extração petrolífera. O roteiro, um rascunho do que, dez anos depois, veríamos em “Mãe Coragem e seus filhos”, cumpre o seguinte esquema: primeiro sai um, depois outro e, por fim, temos o protagonista sozinho. Já em termos estético-políticos, temos bem marcadas as funções sociais e as relações de poder entre as três figuras: o funcionário braçal mal pago e não sindicalizado, o intelectual protegido por sua classe e o aquele que tem poder porque tem o dinheiro. Durante a peça, vemos como essas peças se movem nesse tabuleiro de drama didática no mais conhecido método de Brecht: o distanciamento. Feroz inimigo da ilusão alienante teatral, Brecht fazia de tudo, em sua produção dramatúrgica dessa fase, para que o espectador jamais se esquecesse de que estava em uma plateia vendo uma peça e não mergulhasse nela sem esquecer-se da sua própria realidade.
“A exceção e a regra” só estreou em 1938 na Palestina, longe de Berlin. O Brasil fez sua primeira montagem do texto em 1954, dirigida por Alfredo Mesquita na Escola de Arte Dramática de São Paulo e, só dois anos após, é que a Alemanha (Oriental) assistiria a uma produção em sua língua materna, mesmo ano do falecimento de seu autor. As canções, que recheiam o texto, foram compostas pelo famoso Kurt Weill (1900-1950), amigo de Brecht de longa data e que tinha falecido alguns anos antes. A fonte primária para a narrativa foi um poema do lendário escritor chinês do fim do fim do século IX e início do século X: Han Shan, da dinastia Tang.
Os muitos problemas da encenação de Maia Piva e de sua equipe
Os problemas da encenação dirigida por Maia Piva podem ser analisados a partir de três perspectivas: a) a empolgação (e a preocupação) diante do conceito de “distanciamento brechtiano”; b) a falta de coerência na concepção da direção de elenco; e c) e mau uso do espaço tanto cênico quanto da infraestrutura teatral.
Para Bertolt Brecht, o teatro não era apenas entretenimento, mas principalmente um instrumento de educação política. Quando “A exceção e a regra” foi escrita, a Alemanha vivia os últimos anos da República de Weimar, um período de explosão cultural e de altíssimo consumo que dividia espaço com insuperáveis crises financeiras que advinham do Tratado de Versalhes, pós fim da 1a Guerra Mundial. Para completar, 1929 foi o ano da queda bolsa de Nova Iorque e o início da Grande Depressão nos Estados Unidos que afetou o mundo inteiro e pôs gasolina nos movimentos extremistas tanto de direita quanto de esquerda ao redor do mundo, esses que viriam a abrir caminho para a 2a Guerra Mundial. Então, seu teatro não era dirigido nem à elite deslumbrada e nem tampouco aos líderes políticos já conscientizados do se papel diante da defesa dos mais fracos, mas ao povo alienado e àqueles todos que queriam que esse povo permanecesse entorpecido. O texto de “A exceção e a regra” já traz em suas próprias linhas o conceito de distanciamento: 1) é um texto curto, sua encenação não passa de sessenta minutos; 2) há a quebra da quarta parede (quando os atores se dirigem abertamente ao público despidos das máscaras expressivas) em vários momentos; 3) não há cenário e, em seu lugar, as cenas são ditas de forma descritiva, anunciando a evolução da narrativa sem qualquer disfarce; 4) as falas são recheadas de teses sócio-políticas: “um homem forte dormindo não é mais forte que um homem forte acordado”, por exemplo. Tudo isso, porém, não pareceu ser o bastante para Maia Piva. No espetáculo que ela assina, vemos figurinos com texturas atuais, maquiagem em alguns mais, em outros menos exagerada, utensílios das mais diversas fontes estéticas: desde guarda-chuva no lugar de uma tenda, passando por um ursinho de pelúcia sintético e chegando a um cantil de plástico não-térmico. Ou seja, uma confusão de “sabores” que faz derramar o copo já cheio do nada simples texto original.
Quanto ao segundo ponto, Maia Piva parece ter confundido Distanciamento Brechtiano com Commedia Dell Arte na direção das interpretações dos personagens Esposa (Sol Cozzatti), Karl Langmann (Vitor Deuner) e Juiz (Lucas Wengrat). É muito perceptível uma referência animalesca na composição desses personagens bem a la teatro popular medieval e moderno italiano. Nada disso se vê na interpretação extremamente neutra do Estalajadeiro (Ceci Dassi). E o que se encontra na construção do Carregador (Léo Aguiar) é um processo contínuo de busca do seu lugar nessa selva de referências interpretativas tão distintas. A impressão que se tem do resultado é que não houve uma concepção coerente, mas um “salve-se quem puder” terrível.
Vale, no entanto, destacar *com ênfase* que o elenco é formado por alunos que estão aprendendo a arte de atuar. Nesse sentido, a cada um deles se deve todos os aplausos pela coragem, pelo desprendimento, pela entrega, pela abnegação, pelo interesse em descobrir suas ferramentas expressivas e expô-las ao público, o que não é coisa pouca! Não seria nada justo responsabilizá-los pelos problemas de seus trabalhos interpretativos. Ao contrário, o que se deve é valorizá-los por manter acesa a ancestral e multimilenar tradição teatral e por lotar plateias trazendo à Cascavel, uma cidade tão distante da capital Curitiba, uma peça tão importante quanto “A exceção e a regra”. A eles, toda honra, glória e louvor.
Sobre o terceiro ponto, é notório que Maia Piva não teve a real percepção nem do espaço cênico, nem do espaço teatral. Pelo primeiro, quer-se dizer sobre o palco em si e suas possibilidades. Quase toda a peça acontece no proscênio, as movimentações corporais são mínimas (ao contrário das expressões gestuais e faciais), o palco é muito mal utilizado e ainda prejudicado por um horrível pallet situado no centro que tem dois pequeníssimos e super dispensáveis usos ao longo da apresentação. Pelo segundo, por espaço teatral, quer-se dizer sobre a infraestrutura do teatro em si. O CoolHall é um teatro com pouco mais de cem lugares. Ou seja, cada mínimo detalhe é grande e definitivamente não precisa ficar maior. Então, o pequeno espaço cênico é usado como se menor fosse, perdendo a oportunidade de usar-lo melhor, e o igualmente pequeno espaço teatral é utilizado como se enorme fosse, cansando o olhar da plateia com duas interpretações carregadíssimas, objetos e figurinos sem qualquer coerência e um visagismo circense.
Por tudo isso, a direção não melhor que péssima. Quem assina a maquiagem é Mateus Spindola, a expressão vocal é Regina (?), a expressão corporal e a improvisação é Virgínia Tosta e a direção de interpretação é assinada por Cleci Pagnussati. Obviamente todas essas pessoas dividem com Maia Piva os problemas da peça e seria injusto sobrecarregá-la de avaliações negativas, estando ela com numeroso, mas aparentemente ausente, suporte.
“A exceção e a regra” hoje
O modo como se analisa a relação entre as classes e os papeis sociais hoje, no Brasil e no mundo, não é o mesmo como se via há quase cem anos na Europa. Enquanto de um lado se discute a escala de trabalho 6x1, de outro estamos diante de uma franca uberização horrendamente orgulhosa. Se, por uma parte, há quem reconheça a importância da CLT, os benefícios das convenções coletivas de trabalho, dos sindicatos e da manutenção da previdência social, há uma parcela importante da população que, sendo não mais que um camelô, se entende tão empreendedor como um CEO de uma holding internacional. Brecht nunca se fez tão necessário e ao mesmo tempo tão obsoleto paradoxalmente. No entanto, “A exceção e a regra” ainda propõe uma mensagem importante: nem sempre a regra é a verdade apesar de suas máscaras. Os verdadeiros e piores ladrões não estão nos morros, nas favelas, nas escuras, roubando celulares. Os mais temíveis malfeitores estão nos restaurantes mais caros, fazendo o dólar subir para obrigar o governo a manter, por exemplo, quem ganha menos de cinco mil reais por mês pagando impostos enquanto os superricos nada devem. Sim, no Brasil de dezembro de 2024, o dono de um Pálio 2017 paga IPVA enquanto o dono do jato mais caro já fabricado no mundo, um brasileiro, não paga um centavo de imposto. “No que parece normal, vejam o que há de anormal! No que parece explicado, vejam quanto não se explica!”
O espetáculo fica em cartaz ainda hoje e amanhã às 20h. É correr para garantir o seu lugar em parallela.art.br.
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Ficha técnica:
Texto: Bertolt Brecht
Direção: Maia Piva
Maquiagem e Figurino: Mateus Espíndula
Expressão Vocal: Regina
Expressão Corporal e Improvisação: Virgínia Tosta
Interpretação: Cleci Pagnussatti
Elenco:
Cessi Dassi
Sol Cozzatti
Léo Aguiar
Gi Mazzotti
Vitor Deuner
Lucas Wengrat
Produção: Lair Júnior e CoolHall Cine-Teatro e Escola