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Foto: Cacá Bernardes
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Tuca Andrada e Denise Fraga |
Denise Fraga e Tuca Andrada protagonizam ótima versão de um clássico sempre jovial
É sempre uma alegria rever “A visita da velha senhora”, uma tragicomédia espetacular escrita pelo teuto-suíço Friedrich Dürenmatt (1921-1990). Lançada em 1955, a obra continua viva, calando fundo na alma humana, porque evoca questões pertinentes à humanidade de todas as épocas: a ambição, a hipocrisia, a opressão, a vingança, mas também o amor, o patriotismo e a fidelidade. Com direção de Luiz Villaça, uma nova montagem esteve em cartaz no Rio de Janeiro durante o mês de março, no Teatro SESC Ginástico, no centro da capital fluminense. Com excelência, ela foi protanizada por Denise Graga e por Tuca Andrada, esses acompanhados de outras ótimas atuações das quais se destacam a de Fábio Herford e a de Maristela Chelala. Outro ponto relevante foram os figurinos de Ronaldo Fraga e a direção musical de Dimi Kireeff. Depois do Rio, a peça foi participar do 26º Festival de Curitiba e deverá cumprir temporada no Paraná no próximo mês de julho, seguindo viagens pelo Brasil.
A força e a atualidade do texto
Em geral, o grande público brasileiro conhece bem a história, porque ela foi adaptada, pelo menos, duas vezes para a televisão nas novelas “Tieta” (1989-1990, de Aguinaldo Silva com direção de Paulo Ubiratan) e “Chocolocate com Pimenta” (2003-2004, de Walcyr Carrasco com direção de Jorge Fernando). No original, a história se passa um Güllen, uma fictícia pequena cidade provavelmente suíça. Na abertura, os principais moradores estão excitados com a anunciada chegada de Claire Zahanassian, talvez a mulher mais rica do mundo. Tendo nascido em Güllen, ela abandonou seus conterrâneos há 45 anos, mas vem agora trazendo a esperança. Completamente falida, a cidade conta que conseguir algum favor de sua filha mais ilustre. Por causa da chegada de Claire, Alfred Krank, o dono da mercearia, se torna o homem mais popular da cidade. No passado, os dois tiveram um tórrido romance.
Para a desventura de Krank, as coisas não saem exatamente como o esperado. De fato, Claire oferece-se para ajudar financeiramente não só as contas públicas de Güllen, como também seus moradores em particular, acenando com uma gorda quantia de um bilhão (de francos suíços talvez). A graça, porém, está condicionada a um sacrifício. Décadas antes, Claire foi praticamente expulsa da cidade quando se viu grávida de Alfred. A questão da paternidade foi parar nos tribunais, que deram ganho de causa ao homem. Quando nasceu, a criança foi entregue à adoção, mas acabou morrendo. Claire se tornou prostituta e, como tal, galgou seu sucesso das ruas até os maiores palácios do mundo. Sua volta agora é nada menos que sua vingança.
Enquanto acompanha a história, a audiência é convidada para experimentar as várias matizes da narrativa. De início, se compadece das dificuldades dos moradores: fecharam as indústrias, o trem já não passa mais na cidade, todo o brilho da Güllen de outrora sumiu. Depois, se aproxima da mágoa de Claire Zahanassian: ela é vítima de uma sociedade moralista, misógina, hipócrita e cruel. Passa ainda por um sentimento bom de fidelidade, de insurgência, de união, que logo se desfaz pelo predomínio da ambição, da corrupção, da luxúria, do mal. De degrau em degrau, esse belíssimo texto envolve e faz pensar, diverte e lança ao público uma imagem degradada de si mesma que ele denuncia e critica. Há 63 anos, é uma texto essencial.
“A visita da velha senhora” chegou ao palco com tradução de Christiane Röhrig e adaptação dela, de Denise Fraga e de Maristela Chelala. A versão mantém os méritos do original, flertanto sutil e elegantemente com a contemporaneidade sem negativas concessões comercialescas felizmente.
Firme direção de Luiz Villaça
A direção de Luiz Villaça é brilhante em todos os aspectos sobretudo porque não se vende às tentações do momento, mas impõe a glória do texto em um casamento igualitário com o palco. Assistido por André Dib, Villaça viabiliza o texto, servindo a ele sem aquele medo adolescente de não estar fazendo teatro, mas uma homenagem à literatura. Com coragem, sua criatividade constrói o jogo em meio ao qual as palavras ganham corpo, ganham voz, ganham expressões cênicas que se celebram no encontro entre os atores e o público. Em resposta, Dürrenmatt serve também a Villaça no oferecimento de várias oportunidades para o talento do elenco. Assim, os artistas encontram o aplauso do público quando concretizam as imagens mentais que a audiência está produzindo ao ouvir a história.
Nesta versão de “A visita da velha senhora”, a opção por um centro de palco quase que inteiramente livre pode ser metáfora para a praça grega onde tudo acontecia. É ali que os cidadãos se veem confrontados pela esfinge, pela peste, pela maldição que eles mesmos trouxeram a si. Os cenários, os atores que não estão em cena e os objetos não-presentes ficam em volta da cena como participantes de um devir, de um mundo imanente do qual todo nós, também personagens desse quadro, somos cidadãos. Desde o início e até o fim, Villaça inclui o público, propondo um espelho de vários lados, um calidoscópio de microenredos a girar, explodindo insights, considerações e reflexões.
O ritmo se mantém instável positivamente, com altos e baixos, uns valorizando os outros na tomada de respiro e na consolidação de ápices. “A visita da velha da senhora” não é uma dramaturgia compromissada com a internet e com sua velocidade tão líquida quanto superficial. Ao contrário, ela exige um empenho responsável, a manutenção de um acordo produtivo, o esforço no convívio como em qualquer casamento que se quer duradouro. É bonito ver algo assim montado, em 2018, com tanta qualidade e carinho.
Ótimas atuações de todo o elenco
Quanto ao conjunto de interpretações, em “A visita da velha senhora”, há um todo bastante positivo no qual colaboram os treze atores do elenco. São eles: Rafael Faustino, Fábio Nassar, Fernando Neves, Luiz Ramalho, David Taiyd, Beto Matos, Renato Caldas, Eduardo Estrela, Romis Ferreira, Maristela Chelala, Fábio Herford, Maristela Chelala, Tuca Andrada e Denise Fraga. Com oportunidades maiores e menores, todos aparentemente conseguem empregar largo repertório expressivo, contribuindo, desde os detalhes até às presenças mais protagonistas, de modo íntegro, interessante, carismático e útil à narrativa.
São destáveis as maneiras como Herford e Chelala brilham no gesto de dar vida aos seus Prefeito e Sra. Krank/Moradora. Em ambos lugares discursivos, os atores se aproveitam bastante bem das alterações de tom do texto para dar a ver interessantes jogos internos de expressões. Eles garantem ao público contemplar suas possibilidades, o que aumenta o número de méritos do espetáculo.
Tuca Andrada, o Sr. Alfred Krank, não sugere qualquer contraponto entre o bad boy sedutor e irresponsável que Claire conheceu quase cinquenta anos antes. No entanto, ele investe bem na construção de uma figura derrotada e simples que se espanta com a responsabilidade que recebe das mãos dos seus concidadãos e, mais ainda, acredita neles e em suas fidelidades. O feito é interessante porque Andrada convida o público, através disso, a sentir pena de seu personagem e consequentente é argumento para que se entenda Claire como vilã. Em outras palavras, sua interpretação é definitiva para o desequilíbrio positivo da balança de valores do texto, o que o deixa mais rico.
Denise Fraga, na pele da personagem título, renova a possibilidade de elogios aos seus méritos como atriz. Sua Claire Zahanassian é o ponto chave para o conceito de tragicomédia com o qual melhor se analisa o texto de Dürrenmatt. A figura bizarra que beira ao grotesco parece, nessa versão, uma interessante consequência dos (des)valores sociais do mundo em que vivemos. O luxo exagerado parece ter tornado a pobre menina ultrajada em produto consumível e que, por sua vez, também consome. Esse aspecto dúbio, que não concilia pureza e podridão, mas apresenta ambos como duas pontas coexistentes da mesma faca, é o que mantém a função calidoscópica da peça. Trata-se de um belíssimo trabalho de interpretação que defende a complexidade do mundo que o texto discute.
Espelho da sociedade
A direção de arte de Ronaldo Fragas apresenta bom trabalho na criação de um espaço cênico-narrativo imparcial que une palco e camarins e oferece um nível superior interessante à encenação. No entanto, seu maior mérito está, ao lado do visagismo de Simone Batata, nos figurinos. Com destaque para o guarda-roupa de Denise Fraga, todos os personagens são caracterizados de modo excelente, valorizando o realismo através do qual a peça pode ser espelho da sociedade, mas também o fantástico pelo qual a crítica fica clara. A luz de Nadja Naira reforça a beleza de vários momentos da arte positivamente. Há ainda a trilha sonora original de Rafael Faustino e de Dimi Kireeff, com direção musical desse segundo, que, além de definir a participação do público na narrativa, pontua os ápices e os momentos de respiro qualificadamente.
Nosso mundo é um lugar muito complexo. Ao mesmo tempo em que os debates são intensos, a maior parte deles parece ser pautada sobre fontes excusas e terem funções e objetivos mais ainda. Mentes críticas se constituem sobre base superficial. É nessa seara de vazios que um projeto com substância, como “A visita da velha senhora”, merece ser aplaudido e visto muitas vezes. Oxalá volte ao Rio, oxalá viaje bem pelo Brasil. Evoé!
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Ficha Técnica:
Autor: Friedrich Dürrenmatt
Stage rights by Diogenes Verlag AG Zürich
Tradução: Christine Röhrig
Adaptação: Christine Röhrig, Denise Fraga e Maristela Chelala
Direção Geral: Luiz Villaça
Direção de Produção: José Maria
Elenco: Denise Fraga, Tuca Andrada, Fábio Herford, Romis Ferreira, Eduardo Estrela, Maristela Chelala, Renato Caldas, Beto Matos, David Taiyu, Luiz Ramalho, Fernando Neves, Fábio Nassar e Rafael Faustino
Direção Musical: Dimi Kireeff
Trilha Sonora Original: Dimi Kireeff e Rafael Faustino
Desenho de Luz: Nadja Naira
Preparação Corporal e Coreografias Keila Bueno
Direção Vocal: Lucia Gayotto
Direção de arte: Ronaldo Fraga
Preparação Vocal: Andrea Drigo
Visagismo: Simone Batata
Fotografia: Cacá Bernardes
Assessoria de Imprensa RIO: Barata Comunicações | Eduardo Barata
Assessoria de Imprensa SP: Morente Forte Comunicações
Projeto realizado através da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
Produção Original: SESI-SP | FIESP
Patrocínio Exclusivo: Bradesco
Realização: Sesc Rio de Janeiro, NIA Teatro, Ministério da Cultura e Governo Federal
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