domingo, 15 de abril de 2018

LTDA (RJ)

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Foto: Ricardo Borges

Brunna Scavuzzi e Lucas Lacerda


Uma direção criativa de Debora Lamm

“LTDA” é o mais novo espetáculo do Coletivo Ponto Zero, uma companhia de atores baianos radicada no Rio de Janeiro que assinou o ótimo “Curral Grande” há dois anos. Com um texto interessante de Diogo Liberano, mas que peca pelo excesso de linearidade, a projeto investe meritosamente no tema das “fake news” (notícias falsas), essa uma das pautas mais essenciais dos dias que vivemos no Brasil. A direção de Debora Lamm, pela criatividade, é o ponto alto da montagem que tem, no elenco, as interpretações de Brisa Rodrigues, Brunna Scavuzzi, Leandro Soares, Lucas Lacerda e de Orlando Caldeira com destaque para a primeira. A peça, que recém estreou, fica em cartaz no absurdamente congelante Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura, na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, até o dia 26 de maio. 

Dramaturgia linear demais 
Embora deva ser aplaudida em função do trato com o tema das “fake news”, a dramaturgia de Diogo Liberano não é boa porque é linear demais. Desde o começo da peça, sabe-se indubitavelmente quem é o herói – o jovem Edimilson – e quem são os vilões – os sócios Lydio e Lenise. Eles se reconhecem, inclusive entre si, como nessas funções narrativas e a estrutura dramática inicial se mantém intacta até o final da história sem alterações. Nos trechos finais, é possível notar a falência das forças dramatúrgicas até o apelo a algo emotivo que possa trazer algum brilho à narrativa. É quando dados estatísticos sobre a mortandade de afrodescendentes no Brasil e, em especial, o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco são citados. Esses dois aspectos, de um modo geral, nada têm a ver com o tema central de “LTDA” a menos que, em um esforço reflexivo, consideremos que tudo tem a ver com “fake news” no Brasil, o que não é de todo uma inverdade. 

A narrativa começa quando Edimilson (Leandro Soares), recém saído de uma graduação em jornalismo, faz uma entrevista para ser admitido como funcionário em uma empresa de comunicação. Na antessala da entrevista, os sócios Lydio (Lucas Lacerda) e Lenise (Brunna Scavuzzi) têm um diálogo acirrado que demonstra as divergências entre os colegas acumuladas desde muitos anos. O candidato descobre - sem muito esforço e inclusive com a ajuda dos entrevistadores - que a empresa, na verdade, se trata de uma célula criadora e multiplicadora de notícias falsas. Elas visam criar uma realidade a partir da qual o interesse da massa consumidora se assanhe, aumentando as vendas do produto do cliente contratante. Na boca dos personagens, de modo claro e direto, há a certeza de que essa é uma atividade antiética (e perigosa!) em todos os termos, desde os profissionais até os sociais. Motivado pela sua falta de dinheiro e pela necessidade de sobrevivência, Edimilson se deixa contratar [e não fica exatamente claro porque ele não foi preterido por outros candidatos menos questionadores]. 

Nessa dramaturgia de Liberano, há três investidas interessantes às quais se espera algum desenvolvimento que infelizmente não chega, o que é frustrante. Como já se disse, há duas forças opostas no texto, cada uma delas representada por algum personagem. Edimilson, ao ser contratado pela empresa, corre o risco de sucumbir aos seus ideais, mas em nenhum momento isso acontece. Até o final de “LTDA”, ele será o herói puro e incorruptível que se conheceu no início. Do outro lado, sobretudo por parte de Lenise, há dissidência iminente na empresa. É possível que a “força do mal” possa se corromper com a entrada do mocinho, mas, em qualquer lugar da narrativa, não há qualquer desenvolvimento dessa possível transformação também. 

Por tudo isso, o personagem mais interessante de “LTDA” é o de Luana (Brisa Rodrigues). Ela já era uma funcionária da empresa antes da chegada de Edimilson. Não se sabe se ela faz parte da equipe criativa ou se é só integrante do corpo burocrático, mas se percebe que ela nem é do mal, nem é do bem. Habitando em um lugar para além da ética, ela está, durante todo o recorte que se vê no texto, absorta em seus próprios dilemas sem participar nem de um momento, nem de outro. O problema disso, voltando à questão inicial do excesso de linearidade, é que, mesmo com ela, o equilíbrio se mantém inabalável. 

Um ponto, a princípio, enigmático de “LTDA” é a figura do Narrador (Orlando Caldeira). Ele descreve as cenas, apresenta os personagens e as situações e tem poder de comando do que acontece na narrativa sem nunca exatamente se apresentar. Lá pelas tantas, descobre-se que ele é o dramaturgo, escrevendo – com má vontade - a história de Edimilson, mas que preferiria estar trabalhando sobre sua própria história. Em linhas gerais, nessa peça, o Narrador é um alter ego de Diogo Liberano que, por algum motivo, preferiu não estar ele próprio no palco como fez em “Sinfonia sonho”, espetáculo da sua companhia Teatro Inominável que estreou em 2012. A falta de função dramatúrgica do personagem não lhe traz qualquer mérito infelizmente. 

Sendo assim, os méritos da dramaturgia de “LTDA” se reduzem a dois aspectos: o primeiro diz respeito ao modo como Liberano sustenta o interesse da audiência, criando zonas de possíveis conflitos que infelizmente não acontecem. O segundo, e mais importante, se refere à atualidade do tema da dramaturgia. O problema desse aspecto, porém, é que o texto faz a reflexão pelo público: ele próprio diz como o tema deve ser encarado, ele mesmo trata a audiência como uma massa acéfala incapaz de tomar partido, quase recaindo sobre os pontos que critica na sociedade além da narrativa. Enfim, não é bom. 

Ticiana Passos e Ana Luzia de Simoni ao lado de Debora Lamm 
O bom é que “LTDA” recebeu de Debora Lamm uma direção bastante criativa. Cada novo quadro surge em cena de um jeito diferente e interessante em que se exploram positivamente possibilidades cênicas bastante valiosas. Os Sócios, diferente dos demais personagens, usam um microfone para se comunicar em talvez uma referência sobre o poder de sua voz na mídia. O núcleo principal da narrativa acontece em um pequeno tablado no centro do palco, que divide o espaço cênico em zonas mais e menos privilegiadas. Em um determinado momento, quando CC está conversando com Luana, o Narrador vai substituindo os objetos da mão da primeira e, assim, alargando o campo semântico do diálogo ao infinito. E, assim, poder-se-iam citar vários pequenos detalhes do espetáculo que reforçam os elogios à Lamm, assistida por Junior Dantas, nesse seu trabalho de direção. 

Há ainda em “LTDA” ótima colaboração dos figurinos de Ticiana Passos. Como sempre, ela age em favor do quadro, compondo-o em uma divisão de cores que é muito interessante. O guarda-roupa, que já é uma marca de Passos como artista visual, é composto por um vestuário quase realista com o qual o público se identifica e, melhor ainda, se localiza na história, essa trazida para perto de si. Pode-se destacar o casaco usado por Lenise como elemento que, saindo fora da curva, chama a atenção para si e auxilia na valorização de todo o resto positivamente. O visagismo é assinado por Josef Chasilew 

O desenho de luz de Ana Luzia de Simoni participa ativamente do empenho de Lamm em melhorar o ritmo do espetáculo apesar do marasmo do texto. Com colaborações bastante específicas e pontuais, o feito traz grandes méritos ao quadro desde a cena de abertura, às paisagens de conflito e até aos trechos de quebra de quarta parede. A direção musical de Marcello H., em alguns momentos, concorre com a voz dos atores e com o ar condicionado do teatro, mas sobrevive aos problemas e faz boa participação. 

Bom conjunto de atuações 
No que se refere às interpretações, Brunna Scavuzzi (Lenise) e Orlando Caldeira (Narrador) apresentam bons trabalhos, mas sem grandes destaques, atuando em zonas confortáveis, justas, honestas, mas sem brilho. Lucas Lacerda (Lídio) é quem mais se esforça para criar quadros mais complexos em sua composição, mas provavelmente o ator sofra pela falta de conflito no modo como seu personagem foi criado pela dramaturgia. É interessante notar como ele saboreia as palavras, como usa bem o corpo, as pausas e as intenções, mas também é desanimador reparar como tudo isso parece se esgotar quando se percebe que nada diferente acontecerá com ele na narrativa. 

Leandro Soares (Edimilson) passa dois terços da peça apresentando uma atuação inexpressiva através de um uso da voz sem movimentos e feições sem qualquer transformação. No trecho final, porém, há uma considerável modificação em todos os aspectos, o que faz com que a peça termine com melhores luzes sobre seu trabalho felizmente. Brisa Rodrigues, o maior destaque do elenco, se serve bastante bem de uma personagem relativamente isolada da narrativa, trazendo uma composição bastante bem defendida por meio de sua postura, do seu tom de voz e de suas expressões. Ao longo da sessão, ela se modifica exibindo ótimo repertório expressivo que conquista o público e traz mais aplausos ao conjunto. 

O mérito da pauta das “fake news” 
O bom espetáculo “LTDA” dá importante contribuição à grade de programação teatral carioca por pautar as “fake news” no debate, mas também por se viabilizar a partir da ótima direção de Debora Lamm e também de meritosas colaborações de Ticiana Passos, Ana Luzia de Simoni e de Brisa Rodrigues. Que faça uma bonita carreira! 

*

Ficha técnica:

Dramaturgia: Diogo Liberano
Direção: Debora Lamm
Direção de Produção: Lucas Lacerda
Direção de Movimento: Denise Stutz
Criação Sonora: Marcelo H
Figurino: Ticiana Passos
Visagismo: Josef Chasilew
Iluminação: Ana Luzia de Simoni
Cenário: Debora Lamm
Assistente de Direção: Junior Dantas
Assistente de Figurino: Brisa Rodrigues
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Programação Visual: Daniel de Jesus
Fotos de Divulgação: Ricardo Borges
Making Off: Mika Makino e Tatiana Delgado
Marketing Digital: Eddesign - Maria Alice Edde
Produção Executiva: Geovana Araujo Marques
Assistente de Produção: Julia Kruger e Naomi Savage
Gestão Fnanceira: Carlos Darzé e Lucas Lacerda
Realização: Coletivo Ponto Zero

Personagens e elenco:
Lydio, o sócio - Lucas Lacerda
Lenise, a sócia - Brunna Scavuzzi
Luana, a antiga funcionária - Brisa Rodrigues
Edimilson, o novo funcionário - Leandro Soares
O leitor - Orlando Caldeira

sábado, 14 de abril de 2018

Nascituros (RJ)

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Foto: divulgação

Bruno Marques e John Marcatto


Boas intenções em uma peça ruim

“Nascituros” é a mais nova montagem do jovem Tríptico Coletivo. O espetáculo ganhou notoriedade quando teve sua estreia, no Castelinho do Flamengo em outubro do ano passado, adiada por uma pouco esclarecida “pane elétrica”. Na ocasião, o Brasil discutia sobre arte erótica nos museus. Desde o fim de março, a produção está em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, onde ficará disponível ao público até o próximo dia 6 de maio. Infelizmente, porém, ainda que tenha boas intenções, é difícil encontrar, em sua estrutura, muitos méritos estéticos. Tanto o texto, como a direção e sobretudo as atuações têm vários problemas que merecem a atenção nessa análise. Além de Marcatto, também estão no elenco Bruno Marques, Mariana Bridi e Marilha Galla. 

Uma dramaturgia muito confusa 
Ficará difícil explorar a dramaturgia de “Nascituros” sem revelar da peça alguns segredos. É bom parar aqui a leitura dessa análise se a montagem ainda não foi vista ou se as surpresas são consideradas relevantes. Vale dizer, de início, que o primeiro problema do conjunto é que o texto de John Marcatto e a encenação de Victor Fontoura aparentemente partem da pretensão de abordar muitas questões, mas infelizmente não chegam a aprofundar qualquer uma delas. Durante boa parte da sessão, o público fica perdido, tentando reconhecer os argumentos do debate ou ao menos identificar os pontos mais sólidos da narrativa sem sucesso. No último terço, enfim, é possível que as coisas comecem a ficar mais claras, mas o que sobra parece destruir o que de melhor havia sido encontrado anteriormente. Antes de se tratar propriamente desses problemas, note-se que texto e encenação, aqui, serão observados conjuntamente. Da plateia, a crítica não consegue exatamente saber, nesse caso, o que é de um e o que é de outro. 

A peça, cujo título é sinônimo de “feto” e significa “ser humano que está para nascer”, começa com um monólogo sobre trauma. Em seguida, dois atores (homens cis) surgem em cena, em um diálogo truncado – muito pouco realista pelo excesso de palavras difíceis e de um discurso límpido -, discutindo uma relação. Um se chama Cris (Bruno Marques) e o outro se chama Francis (John Marcatto). Eles tiveram uma relação muitos anos antes, o primeiro partiu para várias viagens pela Europa, o segundo ficou e escreveu uma peça de teatro em que o ex-namorado é um dos personagens. 

A cena dá lugar a uma outra com um diálogo parecido, mas que é defendido por duas atrizes (mulheres cis). Quando lá pelas tantas, elas também se chamam de Francis (Marilha Galla) e de Cris (Mariana Bridi), fica claro que, possivelmente, tem-se apenas uma história cuja interpretação é compartilhada por atores de quaisquer gêneros. (Os nomes Cris e Francis, aliás, são palavras cujos gêneros não são revelados.) Nesse momento, em termos de análise de fruição, passam a duelar, de um lado, a narrativa e, de outro, a forma como ela ganha corpo. Ou seja, o teatro (a história de Cris e de Francis) e o metateatro (quem interpreta esses personagens, quem escreve a história que eles estão vivendo e com quais intenções e consequências). 

[Duelos como esse são muito interessantes dentro dos estudos de teatro contemporâneo. O problema desse caso em particular é que, nesse início de espetáculo, não está clara qual é realmente a grande questão de “Nascituro”: um feto, um trauma, questões de relacionamento amoroso, problemas relativos a preconceito de orientação sexual (são dois homens ou duas mulheres), etc. Com essas dúvidas na cabeça, avança-se para a segunda parte do espetáculo.] 

Na segunda parte de “Nascituros”, há uma revelação. No passado, quando Cris e Francis eram crianças e estavam descobrindo juntos a sexualidade, Cris foi assediado pelo pai de Francis. Mais do que isso, houve a manutenção de um relacionamento pedófilo que permaneceu às escondidas. Durante um certo tempo, Cris se relacionou sexualmente tanto com Francis quanto com seu pai. A história, então, vem à tona. Francis enfrenta o pai em defesa do namorado, mas Cris surpreendentemente defende seu agressor. Cris é expulso de casa e, ao questionar o namorado sobre seu comportamento, ouve dele que preferia o sexo com o pai ao com o filho. E obviamente o namoro termina. 

Dominando os códigos do teatro contemporâneo, não é tão difícil identificar o jogo proposto pela dramaturgia e pela encenação. Mesmo sem trocas de figurino e sem cenário, entende-se que os quatro atores se revezam na viabilização de todos os personagens envolvidos. A percepção, porém, nesse espetáculo, nunca é tranquila, a fruição é muito racional, pois “Nascituros” exige muito e não devolve em igual medida. Suspeita-se de que o trauma anunciado na abertura seja o do assédio sexual que Cris sofreu enquanto vítima do pai de seu amigo. Essa teoria, porém, não é sólida diante da defesa que o agredido empreende em relação ao seu agressor. Fica a pergunta: o trauma diz respeito ao drama de Francis ao descobrir-se filho de um pedófilo e ainda por cima preterido em favor dele? Ou à pedofilia? Os dois traumas são equiparáveis na opinião da de “Nascituros”? 

Na terceira parte da dramaturgia, ganha notoriedade a aventura de Cris como dramaturgo de sua própria história. Dez anos depois do fim do seu namoro, ele é dignosticado como um portador de um transtorno dissociativo. E escrever uma peça com seus dramas é uma recomendação médica em favor de sua cura (?). Francis é contra, não aceita que só um ponto de vista dos fatos se torne público. O diálogo entre eles acontece próximo a uma praça em que um casal homossexual está namorando. Em meio à guerra entre os dois pela posse da verdade, esse casal – que só os personagens veem – é agredido supostamente por homofobia. 

No trecho final, o público de “Nascituros” descobre que toda a narrativa corre o sério risco de ser só uma alucinação de alguém hospitalizado: Francis. Sendo assim, portanto, tudo poderia ter sido real ou não. E, nesse sentido, faleceriam as esperanças de algum prêmio pelo sacrifício de ter tentado entender a peça ao longo de noventa minutos de apresentação. 

Muitos problemas nas interpretações 
Para além da dramaturgia, a montagem tem outros problemas. O grupo formado por trauma, homofobia, pedofilia, conflitos entre pais e filhos, conflitos entre namorados e direitos de narrativa já é tenso, mas isso tudo ainda se inviabiliza por outras explorações. Lá pelas tantas, há a apresentação de um programa sensacionalista em cena, talvez criticando a banalidade da internet. Há também uma peça sobre vacas e bois. E tudo isso surge através de quatro atores essencialmente vestindo preto, em palco liso, dividindo-se sem partitura entre todos os personagens. 

O jogo proposto pela direção de Victor Fontoura é tão exigente quanto o de um adolescente que quer o mundo sem saber exatamente o que fará nele. Ao mesmo tempo que quer ser compreendida, “Nascituros” mantém sua fruição dentro de uma racionalidade pesada através somente da qual poderá ser ouvida. Com isso, a peça impede que a experiência entre no campo do sensorial e do saboroso infelizmente. 

As quatro atuações são ruins. O texto é duro de dizer para John Marcatto, Mariana Bridi e para Marilha Gala, esses visivelmente se esforçando em oferecer às palavras algumas marcas de realidade. Com péssima dicção, Bruno Marques nem esse esforço consegue oferecer. Bridi e Galla, explorando ao exagero o histrionismo, fazem uso de gritos, gestos largos e de tom grandiloquente em momentos descabidos talvez no interesse de dar movimento e sal para o conjunto. Marques descansa na figura de jovem alto, loiro e convencionalmente bonito e consolida nisso seus méritos inexistentes. Marcatto, que escreveu o texto, tira proveito do personagem central, investindo nas dores do trauma que seu personagem viveu com alguns bons momentos. 

A iluminação de Poliana Pinheiro deixa os atores no escuro em vários momentos desnecessária e negtivamente. Sátiro Nunes assina um cenário que inexiste. O figurino de Cristina França tem alguma qualidade dentro do que apresenta, mas crê-se que sofreu pela concepção vinda da direção que não lhe deu melhores chances. A sonoplastia de Marcatto e de Fontoura ajudam a apresentar a peça como uma narrativa jovem, pós-romântica e obscura, mas melhor ainda carismática, o que é ótimo.

As boas intenções 
Não é nada divertido produzir uma crítica tão negativa quanto essa a um grupo jovem que começa a sua trajetória profissional. Essa, porém, é uma carreira séria, que exige não apenas o calor das boas intenções, mas também a frieza da reflexão sobre como organizar a criação. “Nascituros”, como já se disse, se perde no aparente afã de dar positivamente a sua contribuição nas discussões sobre o prenconceito de orientação sexual, porque se envolve em outras questões igualmente meritosas tanto do campo social como do estético. Ao final, nem se sabe se Francis e se Cris eram mesmo um casal homossexual ou se, de fato, eles viveram o que podem ter vivido. 

Fica-se na espera de outros espetáculos do Tríptico Coletivo e no desejo de que essa não tenha sido uma experiência traumática para ninguém. 

*

Ficha Técnica

Texto: John Marcatto | direção Victor Fontoura
Elenco: Bruno Marques | John Marcatto | Mari Bridi | Marilha Galla
Orientação: Ricardo Kosovski | Iluminação: Poliana Pinheiro | Cenário: Sátiro Nunes | Figurino: Cristina França| Arte: Nikko | Mixagem: DJ Scardua | Marketing cultural: Gloria Dinniz| Produção executiva: Ale Riquena |Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação| Realização: Tríptico Coletivo

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Cauby! Cauby! – Uma lembrança (RJ)

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Foto: Dalton Valério

No centro,Diogo Vilela

Diogo Vilela em excelente trabalho


O ótimo “Cauby! Cauby! – Uma lembrança” é o novo musical de Flávio Marinho e de Diogo Vilela sobre o cantor niteroiense Cauby Peixoto (1931-2016). A peça estreeou nesse verão no Teatro Carlos Gomes e recentemente fez excelente temporada no Centro Cultural João Nogueira – Teatro Imperator, no Méier, na zona norte do Rio de Janeiro. Além de Diogo Vilela, que interpreta com sensibilidade o protagonista, o elenco é também formado por Paulo Trajano, Aurora Dias e, em especial, Sabrina Korgut e Sylvia Massari além de outros atores. Com direção musical de Liliane Secco, o espetáculo narra a vida daquele que foi considerado o maior cantor da história da música brasileira. Felizmente, a peça dá privilégio ao aspecto da solidão mais do que aos fatos biográficos. Nesse momento, a produção, que também lindos figurinos de Ronald Teixeira, está fora de cartaz, mas espera-se que retorne tão logo quando possível. 

Ótimo musical faz da vida uma metáfora 
“Cauby! Cauby! – Uma lembrança” é muito mais uma peça sobre a solidão de um cantor que foi famoso do que mais um musical biográfico felizmente. No texto de Flávio Marinho, os fatos principais de sua vida aparecem, mas surgem não tanto para informar o público sobre o que já consta em seu wikipedia. Ao contrário disso, em privilégio, está a construção da imagem de um homem que foi um grande popstar, tido como símbolo sexual de sua geração e considerado o maior cantor entre todos os cantores do Brasil, mas que, nas últimas décadas de sua vida, está completamente só. Em outras palavras, é uma reflexão sobre a tese de que os momentos de glória, de sucesso e de esplendor não são garantias de um futuro tão pleno. Ou seja, é preciso valorizar ao máximo os bons momentos, porque, se eles passarem, ficarão as boas lembranças. 

A dramaturgia começa após a morte do homenageado quando dois jovens estudantes de jornalismo – Alex (Luiz Gofman) e Mara (Ryene Chermon) – procuram Dona Nancy, uma fã de Cauby Peixoto que ganhou notoriedade por sua fidelidade ao ídolo. Foi ela quem acompanhou o cantor nos últimos anos de sua vida, e essa história está contada no documentário “Cauby – Começaria tudo outra vez”, dirigido por Nelson Hoineff, de 2013. Nancy ajuda os jovens com seu trabalho e, a partir disso, os personagens vão surgindo em cena. No entanto, talvez por ela não ser testemunha ocular dos fatos narrados, esses aparecem com vida própria, fugindo de Nancy e investindo no imaginário da plateia que se identifica com a história como se ela fosse sua. 

Como não poderia deixar de ser, o texto é também oportunidade para vários números musicais através dos quais o público mais velho pode se lembrar e o mais jovem pode conhecer canções que fizeram parte da vida de quem estava aqui dos anos 40 aos 60 dos século passado principalmente. Representações de Emilinha Borba, Ângela Maria, Lana Bittencourt, Maysa Matarazzo ganham lugar enquando dezenas de outros nomes nacionais e internacionais são citados. Com habilidade, tudo isso constrói um quadro que terá suas forças testadas ao limite. O mais bonito é reparar que boa parte dos artistas pré-bossa nova, com exceções bem pontuais, não reagiram às transformações, mas prefeririam continuar tocando seus violinos enquanto o Titanic da música romântica afundava. Ouvi-los hoje é entrar em contato com uma sonoridade completamente diferente, mas de inegável enorme valor. 

Assim, a organização dramatúrgica está eficientemente desenvolvida sob um tripé composto de informações biográficas do homenageado, sobre os números musicais, mas há um terceiro, que une os dois: o carisma do personagem (e de seu intérprete). Prende o público a esperança humana de que o protagonista seja feliz de novo ao final. E há que se assistir à peça para saber se ele será. 

A produção atual sucede a de “Cauby! Cauby! - O menino pobre que queria ser príncipe”. Lançada em 2006, a peça tinha também Diogo Vilela interpretando o papel título, trabalho que lhe conferiu o Prêmio Shell de Melhor Ator do ano, e Sylvia Massari. Além deles, integrava o elenco Stella Maria Rodrigues,Arlindo Lopes, Marya Bravo e grande elenco também, como essa, com coreografias de Tânia Nardini, figurinos de Ronald Teixeira e direção musical de Liliane Secco. 

Diogo Vilela brilha como Cauby Peixoto 
A direção de Flávio Marinho e de Diogo Vilela, nessa versão, assistidos por Juliana Medella, impõe o ritmo relativamente ágil dentro do possível em uma dramaturgia memorialista que tem a palavra “lembrança” em seu título. Diferente da versão anterior, o cenário de Ronald Teixeira de Guilherme Reis traz uma enorme quantidade de objetos para ver, o que reduz o palco e consequentemente torna as distâncias mais curtas. A opção traz resultado positivo na articulação das cenas, essas com divisões bem marcadas entre diálogos e números musicais. De modo constante e seguro, o espetáculo atravessa o tempo e ocupa o espaço sem percalços embora sem também, em termos de direção, grandes momentos. 

Como já se disse, os figurinos de Ronald Teixeira, o cenário dele e de Reis e a direção musical de Liliane Secco colaboram bastante bem para os méritos do todo pela alta qualidade de todos os seus empenhos. O guarda-roupa de Cauby Peixoto na peça é feito com o maior cuidado e capricho, sem aproximar o personagem de uma caricatura possível e nem levá-lo a ser descrito como alguém que ele não foi. Essa sensibilidade há que ser destacada elogiosamente. Tânia Nardini, assinando as coreografias, e Maneco Quinderé, assinando o desenho de luz, fazem boas participações, mas sem destaques. 

Do elenco de “Cauby! Cauby! – Uma lembrança”, vale dar atenção aos trabalhos de Paulo Trajano (Di Veras) e o de Sylvia Massari (Dona Nancy). Com ótimos desempenhos, eles trazem vida ao texto, chamando positivamente a atenção e conseguindo oferecer ao todo alguma irregularidade positiva. Sabrina Korgut (Angela Maria) e Aurora Dias (Lana Bittencourt) são as melhores vozes do conjunto e, por isso, também participam bem ao lado de Luiz Menezes, como excelente bailarino. Também integrado por Luiz Gofman, Ryene Chermon e por Rafael de Castro, o elenco desprovido de más interpretações. 

Diogo Vilela está excelente como Cauby Peixoto. Com galhardia, ele toma emprestado a postura, a voz, as respirações, o tom do homenageado para oferecer ao público uma grande interpretação. Esse é, sem dúvida, o melhor trabalho de sua carreira desde 1998, com “O diário de um louco”, de Nikolai Gogol. É uma honra contemplá-lo em tão magnífica atuação. 

Uma saudade 
“Cauby! Cauby! – Uma lembrança” dá uma saudade enorme dos tempos em que fomos felizes, sejam eles quais ou quando foram. Melhor que isso, a peça lança a esperança de que é possível que estejamos justamente vivendo esse período agora e é preciso, por isso, fazer algo que para que, no futuro, se possa ter saudades de hoje. Cauby Peixoto, pelo musical, soube viver a vida em máxima potência. Que tenhamos todos nós também essa sabedoria (e sorte). Aplausos! 

*

Ficha técnica:
de: Flávio Marinho
Direção: Diogo Vilela

Elenco:
Paulo Trajano
Aurora Dias
Luiz Gofman
Luiz Menezes
Ryene Chermon
Rafael de Castro
Sabrina Korgut
Sylvia Massari

Músicos:
Liliane Secco
André Amaral
Fernando Trocado
Charles Rock
Tássio Ramos

Direção de Produção: Marília Milanez
Produção Executiva: Marco Aurélio Monteiro
Assistente de Produção: Letícia Ponzi
Direção Musical: Liliane Secco
Desenho de som: Murilo Corrêa e Cia.
Coreografias: Tânia Nardini
Assistente de Direção: Juliana Medella
Cenário: Ronald Teixeira e Guilherme Reis
Adereços: George Bravo
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: Ronald Teixeira
Visagismo: Mona Magalhães

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Um dia como os outros (RJ)

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Analu Prestes, Bianca Byington e Flávio Pardal


Uma ótima comédia inteligente
A comédia “Um dia como os outros”, que fez enorme sucesso nos palcos cariocas em 2011, fez nova temporada durante o mês de março no teatro do Espaço Cultural Sérgio Porto, no Humaitá, zona sul do Rio de Janeiro. Dirigida por Byington e por Leonardo Netto, o espetáculo é a primeira versão brasileira de texto original francês escrito por Agnès Jaoui e por Jean-Pierre Bacri em 1994. Na história, a família Ménard se encontra toda semana no bistrô do falecido pai, mas, dessa vez, os conflitos internos de seus integrantes parecem estar em vias de explodir. O resultado é uma comédia hilariante que é metáfora para as relações humanas, se tornando, além de ótimo entretenimento, também objeto de reflexão. No elenco, estão Analu Prestes, Flávio Pardal, Leandro Castilho, Márcio Vito, Silvia Buarque além de Byington em ótimos e muito elogiados trabalhos. Valeu a pena assistir e torce-se para que esse retorno se estenda para todo o país. 

Um texto internacionalmente reconhecido
“Un air de famille” fez enorme sucesso em Paris quando estreou em setembro de 1994. Seus autores, Agnès Jaoui e por Jean-Pierre Bacri, parceiros desde 1987, estavam no elenco na montagem dirigida por Stéphan Meldegg. Dois anos depois, Cédric Klapisch levou o roteiro para o cinema, vencendo vários prêmios, inclusive os César de Melhor Roteiro. No Brasil, a versão cinematográfica ganhou nome de “Odeio te amar”, mas não foi lançada comercialmente. No ano passado, Jaoui dirigiu e atuou em nova montagem que segue cumprindo apresentações internacionais. 

Na história, está-se em uma sexta-feira como qualquer outra, já no fim do expediente, dentro do antiquado bistrô “Au Pére tranquillle”, nome que faz referência a um filme francês dos anos 40 sobre família. O estabelecimento, que ainda conserva um ar de meio de século XX, pertenceu ao patriarca da família Ménard, que já faleceu há alguns anos quando a peça começa. Nesse dia, comemora-se o aniversário de Yollande, a esposa de Philippe Ménard, mas também a aparição dele em um programa de televisão, oportunidade em que ele tenta falar bem da empresa onde trabalha e conseguir, assim, maior reconhecimento de seu chefe. 

O bistrô é dirigido por Henri Ménard, o filho mais velho, que é casado com Arlette. De maneira incomum, ela está atrasada para o rotineiro encontro familiar do marido, o que obriga os Ménard a esperar por ela, despediçando o tédio em acender as fogueiras individuais. Assiste a tudo o funcionário Denis, esse cada vez mais íntimo de Betty Ménard, a única filha da família. Para o público, fica óbvio a dramaturgia é oportunidade para os autores tratarem dos fantasmas individuais, fazendo os personagens confrontarem-se consigo através dos reflexos com seus opostos e/ou pares. 

Uma das questões é reconhecimento, pois os Ménard reagem bastante mal ao comportamento do funcionário Denis, mas têm reações adversas no convívio com o chefe de Philippe (que é também chefe de Betty). Outro ponto de vista é o estado civil. Betty, que já passou dos trinta mas conserva um espírito adolescente bem arraigado, não é bem vista pela Mãe, que mal sabe que outro de seus filhos está prestes a ficar solteiro também. De pauta em pauta, a peça – de um ato e de uma cena só – vai deixando ver uma luta interna em que os egos duelam pela sobrevivência e em que Denis e principalmente Yollande são os juízes. 

Em 2011, quando a versão brasileira estreou, a montagem recebeu várias críticas positivas. Ela fazia, juntamente com a produção de “Cozinhas e dependências” dos mesmos autores, parte do projeto “Duas Peças, apresentando-se ambas em conjunto. Analu Prestes (Mãe) ganhou o Prêmio APTR de Melhor Atriz Coadjuvante, Bianca Byington (Yollande) venceu o Prêmio Arte Qualidade Brasil de Melhor Atriz de Comédia e o espetáculo ainda levou o Prêmio Shell de Melhor Cenário e o Questão de Crítica de Melhor Elenco. Tudo isso além de várias outras indicações. A tradução, bastante qualificada, é assinada por Angela Leite Lopes, Bárbara Duvivier e Bianca Byington. 

Excelente conjunto de atuações
A encenação dirigida por Byington e por Leonardo Netto, assistidos por Pedro Pedruzzi, tem o maior mérito de sugerir o quadro como um tabuleiro onde as peças vão se mexer. Não há trocas de cenário – um bar realista sem assinatura, mas provavelmente da dupla de diretores – e nem de figurinos. Ou seja, a entrada e a saída dos atores são o único recurso, além do texto e das interpretações, capaz de dar movimento à narrativa. Sem marcações muito complicadas, todo o jogo parece ficar ao cargo da interpretação, o que, sem dúvida, é um opção corajosa da direção em favor da viabilização de sua concepção estética. 

Silvia Buarque e Leandro Castilho
O excelente ritmo do espetáculo, além de se apoiar no ótimo texto, está pautado na alta qualidade dos trabalhos de interpretação. No elenco, todos – sem exceção – apresentam ótimos trabalhos em todos os aspectos: voz, corpo, pausas, expressões faciais, movimentação. Tudo é claro, cheio de inteligência, com segundos níveis passíveis de interpretações múltiplas. Há verdade, há graça, há carisma, há energia em todo o conjunto. 

“Um dia como os outros” também conta com a colaboração dos figurinos de Emília Duncan, do desenho de luz de Paulo César de Medeiros e com a trilha sonora de Leonardo Netto. Com destaque para os primeiros, todos esses elementos participam ativamente dos méritos do todo, concedendo ao quadro ótimos respiros onde pode o espectador se apoiar na hora solitária de fruir a profundidade dessa comédia inteligente. 

Eis mais um ótimo espetáculo que Maria Siman produziu e produz na programação cultural brasileira. 

*

Ficha Técnica:

Autores: Agnés Jaoui e Jean-Pierre Bacri.

Direção: Bianca Byington e Leonardo Netto.

Direção de Produção: Maria Siman.

Elenco: Analu Prestes, Bianca Byington, Flávio Pardal, Leandro Castilho, Marcio Vito/Alexandre Dantas e Silvia Buarque.

Tradução: Angela Leite Lopes, Barbara Duvivier e Bianca Byington.

Iluminação: Paulo Cesar Medeiros.

Figurino: Emília Duncan.

Trilha Sonora: Leonardo Netto.

Realização: Bianca Byington e Maria Siman

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Isso vai funcionar de alguma forma (RJ)

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Foto: divulgação

No centro, em destaque, Larissa Siqueira


Merece mais tempo na sala de ensaios

A peça “Isso vai funcionar de alguma forma”, em uma alusão ao próprio título, funciona bem em três aspectos. O primeiro deles é como intenção, considerando a importância de se debater cada vez mais questões relativas a gênero e a sexualidade com vistas à construção de um mundo mais humano, respeitoso e democrático. O segundo deles é como experimentação cênica, isso no sentido de dizer que buscar novas formas de expressão artística é sempre um compromisso assumido por bons realizadores e que merece ser aplaudido. O terceiro deles é enquanto realização pessoal, pois deve ter sido interessante para seus responsáveis ver-se em cena, ocupando uma pauta nobre na programação de teatro carioca. Fora esses três aspectos, no entanto, o espetáculo é muto ruim. Os méritos estariam garantidos em uma sala de ensaio, na casa das atrizes, diretoras e dramaturgas, mas estão insuficientes ao público carioca, que merece, no mínimo, uma montagem que vá além das intenções e do ego e consiga oferecer algum apuro estético relevante. No elenco, estão Amanda Mirásci, Dominique Arantes, Larissa Siqueira e Vilma Melo, além de Mariana Nunes, que nem precisou vir à sessão (aqui analisada) para o espetáculo acontecer. Com direção de quatro mulheres e dramaturgia de outras quatro, a péssima montagem multiplamente assinada está em cartaz no Teatro Oi Futuro do Flamengo até 29 de abril. Não vale a pena ver. 

Pretensamente tudo, realmente nada 
Os textos “Licença”, de Renata Mizrahi; “Movimento plantar”, de Dominique Arantes; “Silência”, de Keli Freitas; e “Você tem medo de quê? / Não pode”, de Daniele Ávila Small, fazem parte da dramaturgia do espetáculo “Isso vai funcionar de alguma forma”. Para quem está sentado na plateia, em termos de organização dramatúrgica, o que se vê é uma justaposição de composições verbais ou somente cinéticas que podem querer dizer zilhares de coisas como também não dizem nada. No todo, exigem demais a boa vontade da audiência em dar sentido para o que se oferece, funcionando como uma garatuja que precisa do amor de mãe para ser vista como obra de arte. 

Sobram gritos, palavras soltas, trechos desconexos em meio a algunas exceções positivas cujo mérito aumenta com a interpretação, mas já existiria sem ela. Encontrar, como tema, as questões de gênero (e da luta das mulheres contra uma sociedade misógina e demais pautas relativas à identidade, ao respeito às diferenças e ao fim do preconceito) é um desafio estimulado pela composição da ficha técnica e pelos textos do programa, mas definitivamente não pela dramaturgia do espetáculo em si. Ou seja, ainda que esteja pintado e seja vendido como peça contemporânea, a obra está absolutamente dependente de materiais exteriores a ela. Esses materiais estão à produção como as bulas ao remédio. E isso não é contemporâneo, é só ruim mesmo. 

Cristina Moura, Denise Stutz, Inez Viana e Rúbia Rodrigues assinam a direção, mas o problema é que o espetáculo não tem direção. Isto é, como uma estrutura única, ele não tem forma, não se dirige a lugar algum, cabendo, ao invés disso, em qualquer lugar de qualquer mapa semântico. Em uma cena inicial, quatro atrizes mudam de posição em relação a uma cadeira e algumas cadeiras. Em outras, se dedicam a construir um círculo de terra. Para exemplificar, essas imagens são imagens, mas, excetuando suas existências no mundo, não marcam posição alguma. 

Em termos de encenação, tudo o que se vê em “Isso vai funcionar de alguma forma” parece ser um embrião recém concebido em uma sala de ensaio e que, inadvertidamente, ganhou uma pauta, um programa e um letreiro e foi parar na grade de programação oficial do teatro carioca. Nem as quatro dramaturgas, nem as quatro diretoras parecem ter assistido ao espetáculo assinado por elas e, de fato, se responsabilizado pelo “filho” que carrega seus sobrenomes juntos aos das atrizes e das demais membros da equipe criativa. 

Não está pronto 
Amanda Mirásci, Dominique Arantes, Larissa Siqueira e Vilma Melo desperdiçam seus repertórios expressivos na composição de paisagens abstratas demais (se se considerar o espetáculo em cartaz como uma produção cuja etapa de criação já terminou). É possível identificar grande força nas presenças cênicas de Melo e de Siqueira, mas essas, assim como a sensibilidade de Mirásci, são características que fazem parte das idiossincrazias das intérpretes e não propriamente são explorações de alguma possibilidade estética de seus repertórios como artistas. O trabalho de Mariana Nunes como atriz nem pôde ser considerado, pois, no dia de análise da sessão, a atriz teve um problema e faltou sem que isso impedisse a apresentação da peça. 

A cenografia de Mina Quental (Ateliê na Glória), a luz de Daniela Sanchez e a direção de trilha sonora de Letícia Novaes servem para tudo e para nada. A maior metáfora disso, no entanto, se vê no figurino de Luiza Fardim: uma colagem de vários tecidos em modelagem esquisita que pouco faz além de enfeiar as atrizes. 

Ao público de “Isso vai funcionar de alguma forma”, cuja ficha técnica é imensa!, cabem dois caminhos: ou produzir gritos sonoros de quem finge que entendeu alguma coisa, mas, na verdade, está só afetivamente torcendo para que as meninas se deem bem em seus intentos; ou assumir que o que está em cartaz não está pronto e, portanto, não deveria estar ali, mas ainda em preparação. 

*

FICHA TÉCNICA

Idealização e Coordenação artística: Dominique Arantes e Rúbia Rodrigues – Grupo BARKA

A partir das dramaturgias: “Licença” de Renata Mizrahi; “Movimento Plantar” de Dominique Arantes; “Silência” de Keli Freitas e “Você tem medo de quê?/Não pode” de Daniele Ávila Small

Direção Cristina Moura, Denise Stutz, Inez Viana e Rúbia Rodrigues

Elenco: Amanda Mirásci, Dominique Arantes, Mariana Nunes, Larissa Siqueira e Vilma Melo

Direção de trilha sonora: Letícia Novaes

Iluminação: Daniela Sanchez

Figurino: Luiza Fardin

Cenografia: Mina Quental – Ateliê na Gloria

Assistente de Figurino: Julie Mateus

Assistente de cenografia: Ana Clara Albuquerque

Assistente de fotografia: Daniela Paoliello

Direção de Palco: Ana Paula Gomes e Mariah Valerias

Operação e técnico de Luz: Rodrigo Lopes

Operação de Som: Camila Costa

Cenotécnico: André Salles

Tradução em libras: JDL Traduções

Programação Visual: Elisa Riemer

Fotos e registros videográficos: Elisa Mendes

Assessoria de Imprensa: Bianca Senna – Astrolábio Comunicação

Mídias Sociais: Rafael Teixeira

Direção de Produção: Davi de Carvalho – Travessia Produções.

Produção executiva: Ártemis Amarantha, Jefferson Almeida e Tamires Nascimento - Tem Dendê! Produções

Assistente de Produção: Lucas Lins

Coordenação Administrativa: Davi de Carvalho

Assessoria Contábil: Jorge Chenkel – CVR Contabilidade

Assessoria Jurídica: Colen Advogados e Assistentes

Patrocínio: OI, Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Lei de Incentivo à Cultura

Produção: Travessia Produções

Realização: Grupo Barka e Travessia Produções

Apoio Cultural: Oi Futuro

A visita da velha senhora (SP)

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Foto: Cacá Bernardes

Tuca Andrada e Denise Fraga


Denise Fraga e Tuca Andrada protagonizam ótima versão de um clássico sempre jovial

É sempre uma alegria rever “A visita da velha senhora”, uma tragicomédia espetacular escrita pelo teuto-suíço Friedrich Dürenmatt (1921-1990). Lançada em 1955, a obra continua viva, calando fundo na alma humana, porque evoca questões pertinentes à humanidade de todas as épocas: a ambição, a hipocrisia, a opressão, a vingança, mas também o amor, o patriotismo e a fidelidade. Com direção de Luiz Villaça, uma nova montagem esteve em cartaz no Rio de Janeiro durante o mês de março, no Teatro SESC Ginástico, no centro da capital fluminense. Com excelência, ela foi protanizada por Denise Graga e por Tuca Andrada, esses acompanhados de outras ótimas atuações das quais se destacam a de Fábio Herford e a de Maristela Chelala. Outro ponto relevante foram os figurinos de Ronaldo Fraga e a direção musical de Dimi Kireeff. Depois do Rio, a peça foi participar do 26º Festival de Curitiba e deverá cumprir temporada no Paraná no próximo mês de julho, seguindo viagens pelo Brasil. 

A força e a atualidade do texto 
Em geral, o grande público brasileiro conhece bem a história, porque ela foi adaptada, pelo menos, duas vezes para a televisão nas novelas “Tieta” (1989-1990, de Aguinaldo Silva com direção de Paulo Ubiratan) e “Chocolocate com Pimenta” (2003-2004, de Walcyr Carrasco com direção de Jorge Fernando). No original, a história se passa um Güllen, uma fictícia pequena cidade provavelmente suíça. Na abertura, os principais moradores estão excitados com a anunciada chegada de Claire Zahanassian, talvez a mulher mais rica do mundo. Tendo nascido em Güllen, ela abandonou seus conterrâneos há 45 anos, mas vem agora trazendo a esperança. Completamente falida, a cidade conta que conseguir algum favor de sua filha mais ilustre. Por causa da chegada de Claire, Alfred Krank, o dono da mercearia, se torna o homem mais popular da cidade. No passado, os dois tiveram um tórrido romance. 

Para a desventura de Krank, as coisas não saem exatamente como o esperado. De fato, Claire oferece-se para ajudar financeiramente não só as contas públicas de Güllen, como também seus moradores em particular, acenando com uma gorda quantia de um bilhão (de francos suíços talvez). A graça, porém, está condicionada a um sacrifício. Décadas antes, Claire foi praticamente expulsa da cidade quando se viu grávida de Alfred. A questão da paternidade foi parar nos tribunais, que deram ganho de causa ao homem. Quando nasceu, a criança foi entregue à adoção, mas acabou morrendo. Claire se tornou prostituta e, como tal, galgou seu sucesso das ruas até os maiores palácios do mundo. Sua volta agora é nada menos que sua vingança. 

Enquanto acompanha a história, a audiência é convidada para experimentar as várias matizes da narrativa. De início, se compadece das dificuldades dos moradores: fecharam as indústrias, o trem já não passa mais na cidade, todo o brilho da Güllen de outrora sumiu. Depois, se aproxima da mágoa de Claire Zahanassian: ela é vítima de uma sociedade moralista, misógina, hipócrita e cruel. Passa ainda por um sentimento bom de fidelidade, de insurgência, de união, que logo se desfaz pelo predomínio da ambição, da corrupção, da luxúria, do mal. De degrau em degrau, esse belíssimo texto envolve e faz pensar, diverte e lança ao público uma imagem degradada de si mesma que ele denuncia e critica. Há 63 anos, é uma texto essencial. 

“A visita da velha senhora” chegou ao palco com tradução de Christiane Röhrig e adaptação dela, de Denise Fraga e de Maristela Chelala. A versão mantém os méritos do original, flertanto sutil e elegantemente com a contemporaneidade sem negativas concessões comercialescas felizmente. 

Firme direção de Luiz Villaça 
A direção de Luiz Villaça é brilhante em todos os aspectos sobretudo porque não se vende às tentações do momento, mas impõe a glória do texto em um casamento igualitário com o palco. Assistido por André Dib, Villaça viabiliza o texto, servindo a ele sem aquele medo adolescente de não estar fazendo teatro, mas uma homenagem à literatura. Com coragem, sua criatividade constrói o jogo em meio ao qual as palavras ganham corpo, ganham voz, ganham expressões cênicas que se celebram no encontro entre os atores e o público. Em resposta, Dürrenmatt serve também a Villaça no oferecimento de várias oportunidades para o talento do elenco. Assim, os artistas encontram o aplauso do público quando concretizam as imagens mentais que a audiência está produzindo ao ouvir a história. 

Nesta versão de “A visita da velha senhora”, a opção por um centro de palco quase que inteiramente livre pode ser metáfora para a praça grega onde tudo acontecia. É ali que os cidadãos se veem confrontados pela esfinge, pela peste, pela maldição que eles mesmos trouxeram a si. Os cenários, os atores que não estão em cena e os objetos não-presentes ficam em volta da cena como participantes de um devir, de um mundo imanente do qual todo nós, também personagens desse quadro, somos cidadãos. Desde o início e até o fim, Villaça inclui o público, propondo um espelho de vários lados, um calidoscópio de microenredos a girar, explodindo insights, considerações e reflexões. 

O ritmo se mantém instável positivamente, com altos e baixos, uns valorizando os outros na tomada de respiro e na consolidação de ápices. “A visita da velha da senhora” não é uma dramaturgia compromissada com a internet e com sua velocidade tão líquida quanto superficial. Ao contrário, ela exige um empenho responsável, a manutenção de um acordo produtivo, o esforço no convívio como em qualquer casamento que se quer duradouro. É bonito ver algo assim montado, em 2018, com tanta qualidade e carinho. 

Ótimas atuações de todo o elenco 
Quanto ao conjunto de interpretações, em “A visita da velha senhora”, há um todo bastante positivo no qual colaboram os treze atores do elenco. São eles: Rafael Faustino, Fábio Nassar, Fernando Neves, Luiz Ramalho, David Taiyd, Beto Matos, Renato Caldas, Eduardo Estrela, Romis Ferreira, Maristela Chelala, Fábio Herford, Maristela Chelala, Tuca Andrada e Denise Fraga. Com oportunidades maiores e menores, todos aparentemente conseguem empregar largo repertório expressivo, contribuindo, desde os detalhes até às presenças mais protagonistas, de modo íntegro, interessante, carismático e útil à narrativa. 

São destáveis as maneiras como Herford e Chelala brilham no gesto de dar vida aos seus Prefeito e Sra. Krank/Moradora. Em ambos lugares discursivos, os atores se aproveitam bastante bem das alterações de tom do texto para dar a ver interessantes jogos internos de expressões. Eles garantem ao público contemplar suas possibilidades, o que aumenta o número de méritos do espetáculo. 

Tuca Andrada, o Sr. Alfred Krank, não sugere qualquer contraponto entre o bad boy sedutor e irresponsável que Claire conheceu quase cinquenta anos antes. No entanto, ele investe bem na construção de uma figura derrotada e simples que se espanta com a responsabilidade que recebe das mãos dos seus concidadãos e, mais ainda, acredita neles e em suas fidelidades. O feito é interessante porque Andrada convida o público, através disso, a sentir pena de seu personagem e consequentente é argumento para que se entenda Claire como vilã. Em outras palavras, sua interpretação é definitiva para o desequilíbrio positivo da balança de valores do texto, o que o deixa mais rico. 

Denise Fraga, na pele da personagem título, renova a possibilidade de elogios aos seus méritos como atriz. Sua Claire Zahanassian é o ponto chave para o conceito de tragicomédia com o qual melhor se analisa o texto de Dürrenmatt. A figura bizarra que beira ao grotesco parece, nessa versão, uma interessante consequência dos (des)valores sociais do mundo em que vivemos. O luxo exagerado parece ter tornado a pobre menina ultrajada em produto consumível e que, por sua vez, também consome. Esse aspecto dúbio, que não concilia pureza e podridão, mas apresenta ambos como duas pontas coexistentes da mesma faca, é o que mantém a função calidoscópica da peça. Trata-se de um belíssimo trabalho de interpretação que defende a complexidade do mundo que o texto discute. 

Espelho da sociedade 
A direção de arte de Ronaldo Fragas apresenta bom trabalho na criação de um espaço cênico-narrativo imparcial que une palco e camarins e oferece um nível superior interessante à encenação. No entanto, seu maior mérito está, ao lado do visagismo de Simone Batata, nos figurinos. Com destaque para o guarda-roupa de Denise Fraga, todos os personagens são caracterizados de modo excelente, valorizando o realismo através do qual a peça pode ser espelho da sociedade, mas também o fantástico pelo qual a crítica fica clara. A luz de Nadja Naira reforça a beleza de vários momentos da arte positivamente. Há ainda a trilha sonora original de Rafael Faustino e de Dimi Kireeff, com direção musical desse segundo, que, além de definir a participação do público na narrativa, pontua os ápices e os momentos de respiro qualificadamente. 

Nosso mundo é um lugar muito complexo. Ao mesmo tempo em que os debates são intensos, a maior parte deles parece ser pautada sobre fontes excusas e terem funções e objetivos mais ainda. Mentes críticas se constituem sobre base superficial. É nessa seara de vazios que um projeto com substância, como “A visita da velha senhora”, merece ser aplaudido e visto muitas vezes. Oxalá volte ao Rio, oxalá viaje bem pelo Brasil. Evoé! 

*

Ficha Técnica:

Autor: Friedrich Dürrenmatt

Stage rights by Diogenes Verlag AG Zürich

Tradução: Christine Röhrig

Adaptação: Christine Röhrig, Denise Fraga e Maristela Chelala

Direção Geral: Luiz Villaça

Direção de Produção: José Maria

Elenco: Denise Fraga, Tuca Andrada, Fábio Herford, Romis Ferreira, Eduardo Estrela, Maristela Chelala, Renato Caldas, Beto Matos, David Taiyu, Luiz Ramalho, Fernando Neves, Fábio Nassar e Rafael Faustino

Direção Musical: Dimi Kireeff

Trilha Sonora Original: Dimi Kireeff e Rafael Faustino

Desenho de Luz: Nadja Naira

Preparação Corporal e Coreografias Keila Bueno

Direção Vocal: Lucia Gayotto

Direção de arte: Ronaldo Fraga

Preparação Vocal: Andrea Drigo

Visagismo: Simone Batata

Fotografia: Cacá Bernardes

Assessoria de Imprensa RIO: Barata Comunicações | Eduardo Barata

Assessoria de Imprensa SP: Morente Forte Comunicações

Projeto realizado através da Lei Federal de Incentivo à Cultura.

Produção Original: SESI-SP | FIESP

Patrocínio Exclusivo: Bradesco

Realização: Sesc Rio de Janeiro, NIA Teatro, Ministério da Cultura e Governo Federal

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Romeu + Julieta – Ao som de Marisa Monte (RJ)

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Foto: Fábio Motta

Acima, Claudio Galvão; abaixo, Bárbara Sut e Thiago Machado

Aventura Entretenimento completa 10 anos com ótimo espetáculo


O ótimo “Romeu + Julieta – Ao som de Marisa Monte” é o mais novo musical produzido pela Aventura Entretenimento. Com texto de William Shakespeare adaptado por Eduardo Rieche e por Gustavo Gasparani, a montagem tem direção assinada por Guilherme Leme Garcia e direção musical por Apollo Nove. Nos papeis títulos, têm ótimas interpretações de Bárbara Sut e de Thiago Machado, mas, no palco, também se destacam positivamente Kakau Gomes como Sra. Capuleto, Claudio Galvan como Frei Lourenço e, em especial, Stella Maria Rodrigues como Ama e Ícaro Silva como Mercuccio. Toda a estética do espetáculo apresenta resultado bastante valoroso, mas os figurinos de João Pimenta protagonizam os méritos. Esse clássico da literatura mundial, cujas apresentação se dispensa, ganhou, nessa versão, a poética das músicas da cantora e compositora carioca Marisa Monte. Para além de toda a beleza de um e de outro, é ainda mais lindo estar na plateia cantando canções tão especiais enquanto se celebra tão especial  história amor em obra tão qualificada. A peça fica em cartaz até dia 27 de maio no Teatro Riachuelo, na Cinelândia, com ingressos cujos preços agora variam entre R$25 e R$140 reais.Vale a pena! 

Romeu e Julieta reais? 
Escrita entre 1594 e 1596, ninguém sabe ao certo os detalhes da elaboração de “Romeu e Julieta” e nem tampouco de suas primeiras encenações. Há, porém, várias teorias sobre as inspirações de William Shakespeare (1562-1616) para lançá-la. Uma delas, célebre pelas pesquisas de Peter Ackroyd e de Clare Asquith, traz a perspectiva histórico-biográfica, que vale a pena ser conhecida. 

Essa teoria começa na amizade entre os jovens Shakespeare e Henry Wriothesley (1573-1624), o 3º conde de Southampton, a quem o dramaturgo dedicou os poemas “Venus e Adonis” e “O estupro de Lucrécia”. Wriothesley era filho de Mary Browne (1552-1607), que por sua vez era filha do Visconde de Montagu (1528-1592), um nobre católico que havia sido banido da Inglaterra, em 1558, na época da ascenção da Rainha Elisabeth I ao trono. Ele havia apoiado os governos dos irmãos Edward VI e Mary I, que reinaram no intervalo entre Henrique VIII e Elisabeth I. Além disso, em uma época de intensos conflitos religiosos na Inglaterra entre católicos e protestantes, o avô católico de Wriothesley liderou uma expedição a Roma a fim de reestabelecer o catolicismo no país perigosamente. 

Consta que uma primeira versão de “Romeu e Julieta” se apresentou na festa do segundo casamento do Visconde de Montagu (ou Montéquio?), quando ele se uniu a Magdalena Dacre (1538-1608). A festa aconteceu em 15 de julho de 1558, quatro meses antes do início do reinado de Elizabeth I (e quatro anos antes do nascimento de Shakespeare). Essa lembrança, na família de Wriothesley, era um fato marcante. 

Essa versão imemorial de “Romeu e Julieta” teria sido escrita pelo célebre dramaturgo George Gascoigne (1535-1577) com base em uma novela do italiano Matteo Bandello (1485-1561), que havia sido publicada em 1554. Bandello teria se baseado em Xenofonte de Éfeso (séc. II e III a. C.), Ovídio (43 a.C–17 d. C.), Dante Alighieri (1265-1321), Masuccio Salernitano (1410-1475) e em Luigi da Porto (1485-1529) para criar a história. Além da versão de Gascoigne, é possível que Shakespeare conhecesse a novela de Bandello por uma tradução dela para o francês, escrita por Pierre Boaistuau (1517-1566) e que se chamava “Histórias trágicas”, de 1559; ou por uma edição inglesa chamada “A trágica história de Romeu e Julieta”, publicada em 1562 e assinada por Arthur Brooke (? – 1563). (Vale lembrar que “A megera domada” foi inspirada em “The supposes”, de 1566, escrita por Gascoigne.) 

Muitos teóricos dessa perspectiva comentam que a versão shakespeareana de “Romeu e Julieta” é uma homenagem do bardo ao seu amigo Wriothesley, mas não apenas como uma referência ao seu avô. Há mais história envolvida. 

Com a morte de seu pai, o 2º conde de Southampton (1545-1581), Wriothesley passou a ser bastante favorecido na corte elisabetana por William Cecil, o Barão Burghley (1520-1598), um dos homens mais poderosos da Inglaterra no período. No entanto, por volta de 1591, o relacionamento entre Burghley e Wriothesley degringolou. O velho Burghley, muito próximo da Rainha, havia acertado o casamento entre Wriothesley com sua neta Elizabeth de Vere (1575-1627), também parenta do 7º conde de Oxford. O dote de 5 mil libras já havia sido pago, mas o jovem Wriothesley estava apaixonado por outra mulher e recusou a pretendente.

Prima do 2º conde de Essex, Elizabeth Vernon (1572-1655) era uma dama de honra de Elisabeth I. Essex também era amigo de Wriothesley e de Shakespeare e apoiava a união contra o acordo entre Burghley e Oxford. O casamento aconteceu em 30 de agosto de 1598, 26 dias após a morte do Barão Burghley, quando Vernon já estava grávida. Elizabeth I, em favor do falecido Burghley e de Oxford, mandou o jovem casal católico para a prisão de Fleet. Lá provavelmente nasceu a Lady Penélope Wriothesley, no mês de novembro. Ao ganhar a liberdade, Wriothesley e Essex participaram de uma rebelião contra a já idosa rainha em favor de seu tio Jaime VI da Escócia, esse que viria a se tornar, em 1603, Jaime I, novo rei da Inglaterra. Shakespeare acompanhou toda essa aventura. 

“Romeu e Julieta”, nessa leitura, está coberto de referências ao relacionamento entre Wriothesley e Vernon. Na história, o jovem Romeu da casa dos Montéquio (uma referência ao avô de Wriothesley) se apaixona por Julieta Capuleto, mas as duas famílias são históricas rivais na cidade medieval de Verona, na Itália. Frei Lourenço, confessor de ambos, planejando colaborar com a paz na cidade, os casa em segredo. Logo depois da cerimônia, porém, Romeu se envolve em uma briga e mata Teobaldo, primo de Julieta. (Elizabeth de Vere, que foi rejeitada por Wriothesley, nasceu no Castelo Theobalds, palácio do século XV que, no reinado de Elizabeth I, passou a ser de Burghley.) Por isso, ele é banido, partindo para Mântua. 

Em Verona, os Capuleto decidem pelo casamento de Julieta com o nobre Conde Páris, sem saber que ela já estava casada. Frei Lourenço, para resolver a situação, sugere que, na véspera do casamento, a jovem beba uma poção que lhe dará aparência de morta por 48 horas. E manda um mensageiro a Mântua para explicar tudo a Romeu. Uma peste impede que a verdade chegue ao jovem Montéquio que, desesperado com a notícia da morte de Julieta, compra um veneno e volta para visitar o túmulo de Julieta. Lá ele se mata e, quando Julieta acorda, ao ver o corpo do marido, apunhala-se, morrendo também. 

A enorme beleza dos versos de Shakespeare fez dessa história uma das mais famosas na cultura ocidental. Mesmo quem já a conhece muito bem se encanta com sua força. As referências históricas que essa perspectiva trazida aqui oferece, porém, podem deixar tudo ainda mais interessante. Vale lembrar, nesse sentido, de que a Lady Penélope Wriothesley (1598-1667), a primeira filha de Wriothesley e de Vernon, se casou com o 2º Barão Spencer (1591-1636), antigo antepassado da Lady Diana Spencer (1961-1997), a princesa de Gales. Ou seja, por que não pensar que o atual Príncipe William e seus herdeiros são descendentes diretos dos reais Romeu e Julieta? 

A cuidadosa versão de Guilherme Leme Garcia 
A versão dirigida por Guilherme Leme Garcia conserva a beleza poética do clássico shakespereano. Diferente de “Hamlet”, cuja mania de cortar precisa ser abolida, “Romeu e Julieta”, como outras peças do bardo, teria seu ritmo muito prejudicado sem adaptações para o palco. No original, cada fala dos protagonistas é longuíssima, capaz de deleitar o leitor pelo enorme lirismo, mas de também cansar o público de teatro mais ávido por ação. 

Em “Romeu e Julieta”, toda a narrativa acontece, essencialmente, em 3 três dias, sendo que a última cena tem lugar em torno de quarenta e oito horas depois do terceiro. Em termos do ótimo ritmo da encenação, há um acumular de ações nos primeiros três dias e um arrastar sutil nos últimos dois. Shakespeare faz o trem correr para deixá-lo cair do despenhadeiro muito lentamente, tornando a dor da queda ainda mais atroz. E Guilherme Leme Garcia compreendeu esse jogo muito bem. Há uma pulsação intensa nos personagens na primeira parte que sede lugar para um horror em suas faces no segundo turno. Não há invenção da roda, mas a celebração da beleza com toda a sua galhardia. 

As coreografias de Toni Rodrigues e os jogos de esgrima de Renato Rocha ocupam lugares discretos, mas significativos nessa montagem. Apesar da presença das músicas, “Romeu e Julieta” não se torna um musical a la Broadway, o que pasteurizaria demais sua profundidade trágica. Tudo parece servir para compor o quadro, preencher a paisagem desenhada por Shakespeare, sem qualquer esforço tolo em tomar-lhe o lugar. E nisso tudo é muito valoroso, distinto e positivo. 

Marcam presença os figurinos de João Pimenta com visagismo de Fernando Torquatto. A montagem mostra-se distante das versões cinematográfias de George Cukor e de Franco Zeffirelli, mas também também longe da de Baz Lhurmann. A referência mais possível é o universo semântico de Marisa Monte de modo que se pode dizer que é no guarda-roupa em que a trilha sonora se encontra com a poesia. 

Nas letras das canções de Marisa Monte, o amor é uma força que sobrevive ao tempo e o tempo, por sua vez, é um ambiente maior que o lugar. A afetividade na escolha das cores (branco, doutorado, cinza) aproxima a peça da lembrança, da memória, do passado. “Romeu e Julieta”, de Pimenta, mas também de Apollo Nove, é uma fotografia antiga e apagada cuja imagem ainda vibra em nosso peito, atual e forte. O desenho de som de Carlos Esteves e a direção vocal de Jules Vandystadt devem ter seus méritos reconhecidos considerada a enorme dificuldade imposta pela sonoridade de Marisa Monte. O tom da cantora e sua afinação passam por lugares bastante específicos, muito particulares, que são bastante difíceis de reproduzir (ou de reconstruir) em beleza similar. O desafio foi vencido felizmente! 

Daniela Thomas, como de costume, participa pouco, mas eficientemente através de criações cenográficas inteligentes e que se casam muito bem com o desenho de luz, esse assinado aqui por Monique Gardenberg e por Adriana Ortiz. O palco está bem preenchido, quadros muito bonitos se dão a ver na oposição entre a luz morta da fronte e a escuridão do fundo. Em tudo, se vê uma concepção bem amarrada que traz a história, a memória, o sentimento para ferir, curar e ensinar. Guilherme Leme Garcia teve colaboração artística, nesse espetáculo, de Vera Holtz. 

Ícaro Silva
Ótimas atuações!
Tanto Romeu como Julieta são personagens pouco interessantes para o trabalho de ator porque bastante limitados pelo texto que os têm como protagonistas. Dar-lhes vida é praticamente cumprir um roteiro de ações já cristalizadas que é atravessado pelas inúmeras montagens anteriores e por toda a expectativa natural que se criou em seus entornos. Bárbara Sut, com belíssima voz, e Thiago Machado vencem o desafio de manterem-se comportados dentro desse roteiro e de apenas servirem-se do carisma natural ao qual a plateia há de agradecer se se cumprir o combinado. Nem um, nem outro intérprete, nos personagens protagonistas, parece estar interessado em brilhar mais que Shakespeare e, por isso, ambos são iluminados pelo texto de modo muito elogiável. É gostoso, mesmo sabendo de toda a história de trás para a frente, torcer por eles, emocionar-se com eles, deixar-se tocar através deles. 

Há, no entanto, outros personagens mais generosos. E esses aqui têm ótimas chances. Stella Maria Rodrigues e Ícaro Silva trazem uma Ama e um Mercuccio deliciosos: afiados, libidinosos, corajosos, sensíveis, leais. Em excelentes interpretações, essas duas figuras brilham no todo da montagem com máxima potência graças ao empenho de seus realizadores talentosos. Outros dois trabalhos destacáveis são os de Claudio Galvan, que brilha no final do primeiro ato, e o de Kakau Gomes, respectivamente Frei Lourenço e Sra. Capuleto. Eles protagonizam belos números musicais com suas lindas vozes, mas também outras cenas com grande força e presença cênica. Bruno Narchi, Marcello Escorel e Kadu Veiga trazem Benvólio, Sr. Capuleto e Príncipe de modo ajustado e adequado sem grandes destaques. 

Os dez anos da Aventura Entretenimento
“Romeu + Julieta – Ao som de Marisa Monte” é a vigésima quinta produção da Aventura Entretenimento em seus dez anos de existência. É muito bonito vê-la encontrar sua vocação: a de produzir espetáculos de qualidade com profissionais competentes e em realizações dignas de seus currículos. Todos temos que comemorar essa data festiva! Esse espetáculo é ótimo! 

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Ficha Técnica

Concepção e Direção: Guilherme Leme Garcia

Adaptação e roteiro musical: Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche

Colaboração Artística: Vera Holtz

Direção Musical: Apollo Nove

Direção vocal: Jules Vandystadt

Coreografia: Toni Rodrigues

Lutas: Renato Rocha

Cenário: Daniela Thomas

Figurino: João Pimenta

Visagismo: Fernando Torquatto

Desenho de luz: Monique Gardenberg e Adriana Ortiz

Desenho de Som: Carlos Esteves

Desenho gráfico: Victor Hugo

Produção de Elenco: Marcela Altberg

Elenco: Bárbara Sut (Julieta), Thiago Machado (Romeu), Ícaro Silva (Mercuccio), Stella Maria Rodrigues (Ama), Claudio Galvan (Frei), Marcello Escorel (Sr. Capuleto), Kacau Gomes (Sra. Capuleto), Bruno Narchi (Benvoglio), Pedro Caetano (Teobaldo) Diego Luri, Kadu Veiga, Max Grácio, Neusa Romano, Franco Kuster, Gabriel Vicente, Laura Carolinah, Luci Salutes, Saulo Segreto, Thiago Lemmos, Vitor Moresco, Gabi Porto, Santiago Villalba, Daniel Haidar e Natália Glanz.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Hoje é dia de rock (PR)

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Foto: Vítor Dias
Elenco em cena


Excelente remontagem de clássico do teatro brasileiro

A belíssima montagem do Teatro de Comédia do Paraná para o célebre espetáculo “Hoje é dia de rock” merece ser aplaudida muitas vezes em todos os estados brasileiros. Eis um clássico revisitado de maneira sublime com direção de Gabriel Villela. A peça traz a doçura do saudosismo, a poética da dor e a afetividade da vida na qual se misturam realidade e fantasia. O elenco é formado por Arthur Faustino, Cesar Mathew, Evandro Santiago, Flávia Inirene, Helena Tezza, Kauê Persona, Luana Godin, Matheus Gonzáles, Nathan Milléo Gualda, Paulo Marques e Pedro Inoue. Vale citar, nessa introdução, o nome de todos porque compõem um destacável conjunto de excelentes vozes, além de algumas excelentes interpretações. O texto de José Vicente, que marcou o teatro brasileiro no início dos anos 70, ressurge com força e coragem nessa produção que estreou em novembro de 2017 na capital paranaense, passou por São Paulo e esteve, durante o mês de março, no Teatro Ipanema no Rio de Janeiro. No último dia 28 de março, ela passou pelo 26º Festival de Curitiba. 

O barroco de Gabriel Villela e a saudade de Pedro Fogueteiro
Lançado em 12 de outubro de 1971, com direção de Rubens Corrêa (1931-1996), “Hoje é dia de rock” foi a peça mais importante escrita pelo José Vicente (1945-2007), pela qual ele ganhou o Prêmio Molière de Melhor Autor. A montagem, que ficou em cartaz até 1973, fez história no Teatro Ipanema, esse aberto há cinquenta anos (em 1968) por Corrêa e por Ivan de Albuquerque (1932-2001). 17 atores faziam parte do primeiro elenco, entre eles, a Ivone Hoffmann, que tinha feito o musical “Hair”, em 1969-1970, e ainda hoje está bem viva e atuante em nossos palcos. Houve várias outras remontagens. Entre elas, a de 1976, em Porto Alegre, dirigida por Dilmar Messias e com Lourdes Eloy entre outros atores no elenco; e a de 1980, dirigida por Carlos Wilson, com Andréa Beltrão, Ernesto Piccolo e Ticiana Studart entre outros. 

No texto, Pedro Fogueteiro é um compositor musical que trabalha em cima da criação de uma clave de cinco notas com a qual poderá escrever a canção que imagina. Ele é casado com Adélia e, com a esposa, tem cinco filhos: Quincas, Rosário, Davi, Valente e Isabel. A família mora no interior de Minas Gerais, em uma cidade chamada Ventania. Esse, na verdade, é o antigo nome de Alpinópolis, cidade natal de José Vicente, autor do texto. A situação de miséria em que a família se encontra faz com que ela precise emigrar. “Hoje é dia de rock” começa com a partida para Fronteira, cidade que fica na divisa com o Estado de São Paulo. 

Em Fronteira, os filhos de Pedro Fogueteiro se desenvolvem com destinos diversos. Um está casado com uma descendente de ciganos, outro parte para o seminário, outro se estabelece como artista e outro se casa com um morador local. A família tira sua renda de um bar, talvez a única diversão da pequena cidade. O mais importante dessa dramaturgia de José Vicente não são seus contornos narrativos, suas reviravoltas, seus conflitos, mas, sim, o extremo lirismo através do qual a saudade se torna tema. É uma peça sobre pertença, sendo lugar não exatamente um ponto no espaço, mas um registro abstrato, um laço que dá sentido à existência, colaborando com uma noção de origem. Ser de um determinado lugar não é propriamente ter nascido nesse lugar, mas conservar dentro de si, para sempre, uma memória afetiva de onde se partiu. 

O diretor mineiro Gabriel Villela é conhecido por sua estética barroca imposta por ele a todos os muitos espetáculos que dirige. Seja Shakespeare, seja Arrabal, seja Schiller, Beckett, Heiner Miller ou Nelson Rodrigues, tudo sai com a mesma cara: a face de Gabriel Villela. Se nem sempre o encontro é frutífero, aqui o foi felizmente. O colorido exuberante formado por elementos de múltiplas texturas, origens, formas, estampas nos figurinos; as canções religiosas e o repertório popular; os arranjos polifônicos; a quase inexistência de cenário e a maquiagem clownesca oferecem à paisagem um tom melancólico que é muito próprio da cultura ibérica que herdamos. Trata-se um Portugal que sonha com a volta de um Rei Dom Sebastião e de uma Espanha que se pune por ter abrigado em si, durante tanto tempo, judeus e muçulmanos. Enfim, de um povo que viveu a maior glória da Idade Moderna e que, chorando ao acreditar que perdeu tudo por castigo divino, sente saudades. Eis o barroco, está aí o receio que a família de Pedro Fogueteiro guarda dentro de si ao dar as costas para sua Ventania. 

A antiga montagem de Rubens Corrêa, com cenário de Klauss Vianna em galeria (um corredor ladeado pelo público sentado nos dois lados do palco), era completamente adversa. Naquela produção, o tom político-social tinha mais importância em um período duro da ditadura brasileira, em uma época de luta pelo respeito às mulheres, pelo fim da segregação racial, pelas liberdades sexuais e religiosas. Diferente do que se pode pensar,  porém, esse “Hoje é dia de rock” não se alienou, mas aparentemente assumiu um compromisso maior com a missão de iluminar certas partes da alma humana. Sai-se do teatro com o coração apertado, cheio de saudades da família, dos amigos e da infância, e disposto a se tornar uma pessoa que saiba valorizar melhor o momento presente antes que ele vire passado. Ninguém há de dizer que esse é um objetivo menos nobre.

Belíssima direção musical de Marco França
Todo o jogo cênico proposto pela direção de Gabriel Villela, assistido por Ivan Andrade, é, como sempre, um magnífico trabalho de construção de memória. É através dela que o espetáculo estabelece, com o público, seus próprios códigos e também os desenvolve. É sobre essa relação que o palco e a audiência conversam intimamente, combinando suas regras, estabelecendo suas quebras, restabelecendo seus acordos. A atenção se mantém presa, o ritmo bem ajustado ao tempo necessário para a construção da poética. Os elementos cenográficos e o figurino, ambos assinados também por Villela, casam o sagrado e o profano mais uma vez, oferecendo a essa produção uma certa pureza divina coexistente com a humanidade pecaminosa de personagens comuns. Isso tudo é muito enternecedor e vale citar a luz de Wagner Corrêa como outro elemento colaborativo nesse mérito. 
Os filhos

A direção musical, os arranjos e a preparação vocal são assinados por Marco França. O resultado reconstitui um certo “teatro ritualístico”, expressão que o crítico Yan Michalski usou para tratar do espetáculo de 1971. O analista correlacionava o espetáculo de Rubens Corrêa com a obra de Zé Celso Martinez Corrêa, alertando para a força da afetividade na versão carioca do gênero. É possível que positivamente o mesmo se possa dizer dessa montagem, com outras canções – tanto modernas quanto antigas -, mas igualmente cheias de carinho. Milton Nascimento brilha com seis canções em repertório que tem também Beatles, Elvis e Heitor Villa-Lobos, parte de acordo com o texto, parte inserções originais. 

Rodrigo Ferrarini e Rosana Stavis brilham
Quanto às atuações, vale destacar a qualidade da voz de todos os atores, mas, em especial a de Arthur Faustino (Seu Guilherme) e a de Rosana Stavis (Adélia). Ambos são responsáveis por momentos belíssimos do espetáculo. Matheus González (Davi), Cesar Mathew (Valente), Pedro Inoue (Quincas) merecem tanto destaque quanto Flávia Imirene (Neusinha), Helena Tezza (Isabel) e Nathan Gualda (Rosário). Eles aproveitam com técnica e sabedoria as melhores oportunidades disponíveis, acentuando suas participações sem desfocar o todo, mas engraçá-lo. Sem dúvida, Rodrigo Ferrarini (Pedro) e Rosana Stavis (Adélia) são os dois pontos mais altos do todo por apresentarem contribuições sensíveis e potentes, cheias de dor e de carisma que aumentam as qualidades dos personagens já anteriormente escritos. 

Um afago na alma
“Hoje é dia de rock” , como escreveu Gilberto Bartholo, é um “afago no coração”. Que muitas plateias recebam esse carinho tão bonito. 

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Ficha técnica:
Texto | JOSÉ VICENTE
Direção, Cenografia e Figurinos | GABRIEL VILLELA

Elenco | Rosana Stavis, Arthur Faustino, Cesar Mathew, Evandro Santiago, Flávia Imirene, Helena Tezza, Kauê Persona, Luana Godin, Matheus Gonzáles, Nathan Milléo Gualda, Paulo Henrique dos Santos, Pedro Inoue, Rodrigo Ferrarini

Diretor Assistente | IVAN ANDRADE
Direção Musical, Arranjos e Preparação Vocal | MARCO FRANÇA
Aderecista e Assistente de Figurinos | JOSÉ ROSA
Iluminação | WAGNER CORRÊA
Fotografia Vitor Dias
Projeto Gráfico | JOSÉ VITOR CIT
Arranjo de Trenzinho Caipira/Desenredo | Ernani Maletta
Produção | Áldice Lopes, Daniel Militão e Diego Bertazzo