segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Sangue e pudins (RS)

Foto: divulgação

Elison Couto e Li Pereira

De um lado, belo texto. De outro, belo espetáculo


“Sangue e pudins” é a mais nova produção teatral dirigida por Luciano Alabarse, um dos diretores mais conhecidos e respeitados do sul do Brasil. Trata-se de uma releitura da peça teatral “Shopping and fucking”, do inglês Mark Ravenhill (1966), pincelada com trechos do romance semi autobiográfico do americano Brontez Purnell (1982) “Johnny, would you love me if my dick were bigger?”. Muito bom sob vários aspectos, o espetáculo pauta questões que envolvem consumismo, (homos)sexualidade, solidão e relações humanas, mas é principalmente uma homenagem aos anos 90. Angela Spiazzi (Lulu), Elison Couto (Gary), Jaques Machado (Robbie), Li Pereira (Mark) e Pingo Alabarce (Brian) estão no elenco apresentando boas interpretações, com destaque para os ótimos trabalhos de Spiazzi e sobretudo de Couto, esse último que, como normalmente, abrilhanta as peças nas quais atua. O trabalho estreou em janeiro de 2024 e pretende voltar à cena em abril ainda desse ano. É bem interessante conferir.


O ótimo casamento entre “Shopping and fucking” e “Johnny”: a adaptação de Alabarse.

O enredo de “Sangue e pudins” mantém quase que em sua integridade o de “Shopping and fucking”, peça escrita em 1995 e que foi um hit em Londres em 1996. No Brasil, houve uma primeira montagem em 1999 dirigida por Marco Ricca; uma segunda, em 2007, por Fernando Guerreiro; e uma terceira, em 2016, por Jopa Moraes.

Um dia, em um supermercado, o rico Mark (Li Pereira) compra dois jovens de sua idade: Lulu (Angela Spiazzi) e Robbie (Jaques Machado). Juntos, os três formam um certo de tipo de família, andando sempre juntos em festas, orgias, todo o tipo de experiência que envolve comida, drogas, sexo e música. Quando a história começa, Mark, recém diagnosticado como portador do HIV, não está bem de saúde, provavelmente em função de mais uma noitada de bebidas e heroína. Então, por sua própria conta, decide abandonar Lulu e Robbie (com quem tem uma relação afetiva um um pouco mais profunda) e ir para uma clínica de reabilitação. A partida do “provedor da casa”, deixa os dois em apuros: é preciso sustentarem-se. E, assim, comida congelada passa a fazer parte da rotina. Em busca de uma oportunidade, Lulu vai a uma agência de atores. Lá ela se encontra com Brian (Pingo Alabarce) e recita para ele um lindo trecho de “O canto do cisne” (1887), do russo Anton Tchekhov. Ele, porém, tem outro trabalho em mente para a desempregada. Sem outra opção, ela aceita, mas seu roommate Robbie (Jaques Machado) acaba estragando tudo e criando, para a dupla, um problemão fenomenal.

Do outro lado da narrativa, “Sangue e pudins” desenvolve uma trama paralela. Tendo sido sempre, desde muito criança, violado de todas as formas por parentes e pessoas estranhas, Gary (Elison Couto) hoje é um jovem michê (garoto de programa). Seu fantasma maior é seu padrasto, aquele que mais vezes o estuprou. Na adaptação de Alabarse de “Shopping and fucking”, o personagem Brian é o mesmo que “contrata” Lulu (no original de Ravenhill, não). Brian, uma espécie de “príncipe das trevas” no original, é apaixonado por “The lion king”, mas aqui ressalta a música como a maior criação de Deus. E, ainda na comparação com o original, Mark é expulso do centro de reabilitação, enquanto aqui, em “Sangue e pudins”, ele afirma mais de uma vez que saiu do lugar por sua própria vontade.

Ao voltar ao apartamento que dividia com Lulu e Robbie, Mark não é bem recebido. E suas novas decisões de vida o fazem encontrar-se com Gary, de modo que é, nesse momento, que as duas pontas de “Sangue e pudins” se unem. Ainda que Gary tenha cenas muito marcantes, é Robbie o personagem mais bem desenvolvido por Ravenhill mesmo na adaptação de Luciano Alabarse.

Contemporânea do musical “Rent”, de Jonathan Larson; e da peça “Closer”, de Patrick Marber, o texto “Shopping and fucking” envelheceu. Seus personagens são os jovens adultos frutos do neoliberalismo de Margareth Thatcher e Ronald Reagan que atormentaram suas infâncias. De um lado, a comida e o amor congelados; de outro, as drogas e o sexo como fantasmas assassinos. Essa dualidade já hoje em dia exige muita força para ser comparada com o mundo pós internet. Em outras palavras, é difícil trazer aquelas questões para o hoje sem muito esforço. E é aqui que entra o mérito do casamento de “Shopping and fucking”, de Ravenhill, com “Johnny, would you love me if my dick were bigger?”, de Purnell.

“Sangue e pudins” dosa bastante bem as cenas de ação com pequenos monólogos que exibem reflexões introspectivas dos personagens.  Escrito em 2015 e publicado um ano depois, o romance “Johnny…” participou, junto com outros textos do mesmo autor, de uma leitura dramática em Berlin, em setembro de 2023. Brontez Purnell, musicista, artista visual, bailarino e escritor, é um jovem conectado com o hoje e, como tal, reconhece as diferenças entre a contemporaneidade e os anos 90 no que se trata de consumismo, uso de drogas, práticas sexuais e solidão. São seus textos, em “Sangue e pudim”, que conectam o público ao espetáculo e aos personagens, promovendo reflexões bastante válidas que oxigenam a montagem. O título da peça vem de uma música de Fagner e Fausto Melo, interpretada por Simone e que faz parte de um disco lançado em 1976. Na letra, a frase: “Não quero saber quem sou, morro de medo” simboliza um vórtice de todas as questões abordadas no espetáculo. Lulu, Robbie, Brian e principalmente Mark e Gary só se reconhecem a partir de suas relações com as demais pessoas, pois não têm identidades próprias.


A direção boazinha com os personagens

A concepção de direção de Luciano Alabarse é bastante paradoxal. De um lado, “Sangue e pudins” é uma obra bonita de se ver porque esteticamente está muito vinculada aos anos 90: suas cores, estampas, modelagens, valores. Qualquer um que se lembre do apartamento da Mônica de “”Friends” vai achar visualmente bonito o que se vê em cena. Por outro lado, a beleza da produção atrapalha a violência, o escárnio, a acidez, a solidão, a desesperança da dramaturgia. A performance de “Help!”, dos Beatles, em que Jaques Machado dubla Miley Cyrus (?), é um desses momentos exemplares: belíssimo de um lado, mas pouco contribuinte de outro. E, encadeados a essa concepção, caminham o lindo desenho de luz de Maurício Moura e João Fraga, que tornam o espetáculo quase um musical adocicado da Broadway; os incríveis figurinos do grupo; o cenário assinado pelo diretor; e as ricas coreografias de Angela Spiazzi. Tudo isso parece ser de um espetáculo enquanto o texto é de outro. Um ponto de vista realmente negativo e sem contradições é a trilha sonora de Luciano Alabarse. É como se não houvesse um só instante de silêncio ao longo dos 120 minutos de duração da peça, o que alivia a dureza que os personagens deveriam sentir em suas extremas solidões e faltas de perspectiva. Em resumo, a direção parece ser muito “boazinha” com os personagens.


A brilhante interpretação de Elison Couto

Quanto às interpretações, a primeira coisa que deve ser dita é que Angela Spiazzi (Lulu), Pingo Alabarce (Brian) e principalmente Elison Couto (Gary) revelam ter técnica vocal bastante positiva para a defesa do espetáculo. Tudo o que eles dizem é compreensível: cada sílaba, cada entonação, o que nos faz recordar um tempo distante em que os atores, em geral, não precisavam de microfones de lapela para qualquer obra. O mesmo não se pode dizer infelizmente de Jaques Machado (Robbie) e sobretudo de Li Pereira (Mark). No caso deles, ouvem-se mais os gritos e as intenções bruscas do que o que realmente deve ser ouvido - as palavras. Pereira, em especial, praticamente diz todas as suas falas com a mesma entonação, sem nuances, sempre com muito esforço, nenhuma técnica, de maneira muito perigosa para suas cordas vocais e bastante monótona para a plateia.

Já foi dito, mas é possível repetir que Angela Spiazzi e Jaques Machado tem poucas oportunidades de mostrar variáveis de expressão, pois seus Lulu e Robbie respectivamente têm curvas muito limitadas já no roteiro. Lulu para na solução do problema do dinheiro que deve a Brian e Robbie tem toda a sua flexão nos ciúmes de Gary, e quase nada além disso. No entanto, ambos, mas principalmente Spiazzi dão a ver ótimos trabalhos com o pouco que têm, aproveitando bastante bem as possibilidades. Pinto Alabarce (Brian) praticamente não contracena, isto é, em boa parte da peça, seu personagem está sozinho. No entanto, o ator, cheio de ótimas oportunidades, agarra-as com galhardia ao que lhe é oferecido com destaque para a cena da cobrança de Lulu. Li Pereira (Mark), aquele que foi agraciado com o melhor personagem do roteiro, é o que menos tira proveito do texto. Tendo uma curva narrativa cheia de nuances, ele oferece uma interpretação linear que, no máximo, vai do 8 ao 80: ou está quase imóvel, ou está em explosão.

Elison Couto (Gary), com muitos mais anos de vida que o personagem que interpreta, apresenta uma defesa nada menos que brilhante em “Sangue e pudins”. Desde a verdade da sua dor física ou psicológica até a verdade irônica da forma como ele ridiculariza a si próprio em uma espécie de automutilação, o ator nutre a peça com detalhes riquíssimos de teatralidade. Há tantas variações de expressividade que fica difícil para o público digerir seu Gary, o que é motivador, pois tudo o que um bom espectador quer é sorver aos poucos o espetáculo que se descortina diante de si. Couto oferece, vibrantemente, um espetáculo à parte, fugindo dos lugares mais fáceis, investindo em segundos níveis e explorando as melhores dúvidas sobre sua composição, enquanto esconde a cristalização (se é que ela existe). Sem dúvida, é o que há de melhor em “Sangue e pudins”.


Escolher e aplaudir

Embora seja assim que o espetáculo se apresenta em seu programa entregue na bilheteria e divulgado nas redes sociais, “Sangue e pudins” é muito pouco sobre violência e muito mais sobre anos 90. Está muito mais próximo dos “Doc.s musicais”, dirigidos por Frederico Reder e Marcos Nauer no Rio de Janeiro, do que realmente sobre a dor. Para exemplificar, há uma cena em que os contrarregras Alexei Goldenberg e Vini Gomes correm com uma enorme bandeira LGBT em uma cena linda que pauta o falecimento de milhões de homossexuais durante a década em função do vírus HIV. O quadro trata-se de um tópico de check-list de tudo o que se passou no período e que não pode deixar de ser tematizado na opinião dessa concepção. Com isso, quer-se dizer que, na hora de assistir, o público terá que escolher se se deslumbra por toda a enorme coleção de lindas presenças estéticas ou se mergulha no texto, no personagem e na história narrada. Há que se escolher e, depois então, aplaudir!


*


Ficha técnica:

textos originais de Mark Ravenhill (“Shopping and fucking”) e Brontez Purnell (“Johnny, would you love me if my dick were bigger?”) com adaptação de Luciano Alabarse.


Direção, Cenário e Trilha Sonora: Luciano Alabarse

Coreografias: Angela Spiazzi

Iluminação: Maurício Moura e João Fraga

Figurinos e Maquiagem: O grupo


Elenco por ordem alfabética:

Angela Spiazzi - Lulu

Elison Couto - Gary

Jaques Machado - Robbie

Li Pereira - Mark

Pingo Alabarce - Brian


Contrarregras:

Alexei Goldenberg

Vini Gomes


Produção Executiva: Jaques Machado Produções Artísticas

Assistente de produção: Vini Gomes

Operação de Som: Manu Goulart

Fotos: Juliana Alabarse e Mariano Czarnobai Jr.

quinta-feira, 31 de março de 2022

Barnum - O Rei do Show (SP)

Foto: divulgação




Respeitável público, um excelente espetáculo chegou!

Até o dia 30 de abril, o belíssimo musical “Barnum - O Rei do Show” estará em cartaz no Teatro Casa Grande, na zona sul do Rio de Janeiro. A montagem, com excelente direção do estreante Gustavo Barchilon e com versão brasileira assinada por Cláudio Botelho, embeleza a programação teatral carioca. A peça é a primeira montagem nacional de “Barnum”, que estreou há 42 anos na Broadway. Ela celebra um personagem importante da história do mundo circense norte-americano, o Phineas Taylor Barnum (1810-1891), mas, para o público daqui, relembra e defende a magia do circo, a vibração de um espetáculo com altos padrões e o poder da arte. Nas atuações, a produção tem Murilo Rosa em excelente interpretação do papel-título, acompanhado pelas muitas vezes elogiades (e ainda aqui) Sabrina Korgut, Giulia Nadruz, Guilherme Logullo e Tauã Delmiro, mas também por Murilo Ohl. As coreografias de Alonso Barros, o desenho de luz de Maneco Quinderé, o cenário de Rogério Falcão e o figurino de Fábio Namatame são grifes que não surpreendem em oferecer altíssimo padrão de qualidade à obra. A crítica será estendida nos parágrafos a seguir, mas, para quem quiser parar de ler agora, vale dizer que eis aqui algo a ser visto e aplaudido. Isso sobretudo dito por causa dos maravilhosos trabalhos expressivos do elenco de apoio, esse que eu faço questão de nominar também: Ana Araújo, Bruno Ospedal, Diva Menner, Fernanda Muniz, Flavio Arcoverde, Gabriela Camissoti, Giu Mallen, João Siqueira, Juliano Alvarenga, Luan Pretko, Luisa Vianna, Marcos Fagundes, Marcos Lanza, Preto Viana, Rafael Barbosa, Raphael Silva, Renata Ricci, Rodrigo Silva e Sara Milca.

Sucesso de crítica nos Estados Unidos
Lançado na Broadway, no final de abril de 1980, “Barnum” não foi um grande sucesso de público ainda que tenha tido muitos elogios da crítica especializada. O compositor Cy Coleman, que quatorze anos antes havia feito algum sucesso com “Sweet Charity” (mais pelas coreografias de Bob Fosse) estava ao lado de Jim Dale, ator já reconhecido e premiado no teatro e figura conhecida no cinema. Glenn Close também estava no elenco unida a um grande grupo de artistas circenses e excelentes cantores e dançarinos. O que realmente faltava era uma boa dramaturgia. Mark Bramble (1950-2019) e Michael Stewart (1924-1987), os roteiristas, estavam muito envolvidos com o musical “42nd Street”, que ganharia os palcos alguns meses mais tarde (e que está agora para ser montado no Brasil pela Touché Entretenimento), e não encontravam uma boa chave de conflito para a encenação. De um modo geral, parece que, desde o princípio, se sabia que o mais importante do projeto não seria a história de P. T. Barnum, mas os números de circo que a produção ofereceria ao público.

A história parte de uma oposição a la “O feijão e o sonho” (lembrar da obra de Orígenes Lessa) entre um marido sonhador que pertence ao mundo das artes versus uma esposa prática e preocupada com as contas da casa. Avança por um conflito matrimonial, com a chegada de uma cantora sueca que renova a inspiração do protagonista, e por seu envolvimento com a política. E termina com o retorno circular da narrativa ao ponto inicial. De fato, o espetáculo primeiro ficou apenas dois anos em cartaz, um tempo relativamente inferior aos quase 9 anos de “42nd Streeet”. Quanto às premiações, obteve 10 indicações ao Tony, mas ganhou apenas 3 estatuetas: Melhor Cenário, Melhor Figurino e Melhor Ator (Jim Dale). O grande espetáculo de 1980 foi “Evita”, de Andrew Lloyd Weber, que ganhou 11 indicações e 7 troféus, incluindo Melhor Espetáculo. (“42nd Street” estreou no fim de agosto de 1980 e, por isso, ficou elegível para o Tony de 1981, quando venceu a categoria de Melhor Espetáculo.)

“Barnum”, no entanto, é uma peça americana e que trata da história de um personagem americano. P. T. Barnum realmente existiu, tendo nascido e vivido por noventa anos ao longo do século XIX. Ele era um homem que se tornou célebre por seu teatro de variedades, uma espécie de “Domingão do Faustão” da época: um espetáculo com números musicais, animais exóticos e personagens peculiares - a mulher mais velha do mundo, o homem mais baixo do mundo, a família de anões, o homem mais peludo, a pessoa albina. Seu teatro era chamado de “museu” por ser um local de abrigo a toda sorte de “curiosidades”, seja lá o que isso queria dizer naquela época em relação com o que politicamente correto se permite pensar ou falar hoje em dia. Joice Heth, por exemplo, que aparece como uma das personagens do musical “Barnum”, também existiu. Ela foi uma mulher preta sobre quem se dizia ter sido escravizada pelo pai de George Washington e, portanto, a babá do 1º presidente dos Estados Unidos. Isso faria com que ela contasse por volta de 160 anos de vida quando foi adquirida por Barnum e exibida no show, assim como outros de seus escravizados. Membro primeiramente do Partido Democrata e depois do Partido Republicano, Barnum atravessou o período da Guerra Civil Americana (1861-1865) com dificuldades. Foi prefeito e depois deputado estadual em Connecticut, um pequeno estado litorâneo ao norte de Nova Iorque e ao sul de Washington. A mudança de partido se deu pelo fato de que Barnum era contra a escravidão e seus posicionamentos foram provavelmente um dos motivos pelos quais seus teatros foram incendiados, pelo menos, duas vezes. O circo só foi entrar na vida de Barnum em 1870, cinco anos após o fim da guerra, como meio de ele se levantar financeiramente. O projeto de espetáculo itinerante foi criado quando Barnum se uniu a James Anthony Bailey (1847-1906) e sobreviveu, vejam só!, até 2017, ou seja, por 147 anos! Faliu devido a um conjunto de fatores, mas sobretudo por causa da proibição total do uso de animais selvagens em espetáculos artísticos. “Barnum”, após ter saído da Broadway, em 1982, fez apresentações na rua e também dentro do circo Barnum & Bailey. O estranho é o modo como o espetáculo se propõe a tratar de Barnum, colocando a nome no título, mas sem tratar das contradições e das profundidades desse homem importante da história das artes nos Estados Unidos. Faz lembrar de um espetáculo produzido no Brasil há alguns anos sobre Cássia Eller (1962-2001) que não fazia quase qualquer referência ao uso de drogas pela cantora em respeito à família dessa importante e saudosa artista brasileira.

Todas as questiúnculas trazidas acima sobre a superficialidade do roteiro de “Barnum” em relação a P. T. Barnum, que lhe nomeia enquanto obra artística, se foram consideradas problemas para a montagem americana, no Brasil, por outro lado, são positivos meios de acesso. Se o roteiro original da peça aprofundasse qualquer coisa sobre a figura homenageada, mais difícil seria para o público brasileiro se aproximar do espetáculo. Nesse sentido, é bom para nós que o Barnum de “Barnum” seja um mero joguete nas mãos de roteiristas que estão pensando no aspecto comercial do trabalho. A versão brasileira - “Barnum - O Rei do Show” - quase não tem qualquer link com a biografia de uma pessoa em específico, mas com os desafios, os maus bocados e as glórias de uma vida dedicada à arte circense. No palco, estão os malabarismos, a palhaçaria, os números de canto, dança e variedades (não há mágina infelizmente), uma menção à participação de animais (há uma cena de “elefante”) e a ênfase no risco físico. André Carreira, célebre pesquisador em Artes Cênicas na UDESC, trata sobre o poder do risco físico no teatro. Segundo ele, quando um homem está verdadeira e presencialmente diante de um outro homem que corre algum risco de vida, de maneira imediata, o primeiro se põe em estado de alerta. Numa das cenas, Murilo Rosa faz a plateia inteira do enorme Teatro Casa Grande prender a respiração. Nesse momento, toda a glória do canto, da dança, dos figurinos, da luz, do cenário, das interpretações fica em segundo plano. E isso nos faz recordar o quanto o circo, enquanto um ramo das artes cênicas, é um patrimônio universal a ser mantido e bem cuidado nessa viagem fria que fazemos pelo mundo digital.

Linda interpretação de Murilo Rosa
“Barnum - O Rei do Show” estreou em outubro de 2021 em São Paulo quando a flexibilização das medidas adotadas em prevenção à Covid-19 começou. E está em cartaz no Rio de Janeiro até o fim desse mês de abril de 2022. Sabrina Korgut (Sra. Charity Barnum, a esposa do protagonista) e Giulia Nadruz (a cantora sueca) fazem brilhar seus talentos musicais em personagens originariamente pouco profundos e bastante restritos. É uma pena ver os tantas vezes elogiados (e não menos aqui) Guilherme Logullo e Tauã Delmiro em personagens tão pequenos (respectivamente Bailey e Goldschmidt), mas sabemos que isso faz parte do jogo. E é ótimo conhecer Murilo Ohl (Tom Polegar) em um número tão difícil, que acontece logo após uma ótima cena e está em suas mãos manter ou resgatar a atenção da plateia após o relaxamento, desafio esse que ele vence positivamente. Diva Menner (Joice Heth) e Luisa Viana (Sra. Stratton) oferecem muito pouco para ser analisado positiva ou negativamente, isso muito provavelmente devido ao roteiro e não às suas potencialidades expressivas particulares.


O que se pode dizer da interpretação de Murilo Rosa? Sem medo do adjetivo, ele está lindo. E “lindo” é uma palavra muito difícil de ser usada numa crítica de teatro. Ela é escolhida aqui, porque o ator consegue defender seu personagem de maneira brilhante, conferindo ao protagonista um aspecto infantil, ingênuo, sensível para além de todas as adversidades. Mil problemas acontecem na jornada desse herói ao longo da narrativa e a relação dele com a esposa é um aspecto bem importante, mas Rosa mantém sempre um brilho nos olhos e um sorriso cativante no rosto pelo qual a gente se apaixona e mantém a confiança (e a esperança) por todo o espetáculo. Para além disso, deve-se dizer que o ator, assim como todo o elenco, mantém, sob a direção de Gustavo Barchilon com assistência de Vanessa Costa, excelente ritmo e excelente dicção, de modo que os diálogos não atrapalham em nada, mas só contribuem com o ótimo ritmo da peça. As cenas são rápidas, as marcações precisas e Rosa, Barchilon e toda a equipe assinam uma obra muito bem articulada.

O melhor e mais bonito de toda a peça, tal como aconteceu na Broadway, em Londres e em todos os lugares onde “Barnum” foi montado profissionalmente, e o que é mais interessante, é o aspecto circense. Bruno Ospedal, Luan Pretko, João Siqueira, Juliano Alvarenga, Marcos Fagundes, Rafael Barbosa e Rodrigo Silva apresentam um trabalho corporal de primeiríssima grandeza que, por si só, se nada mais houvesse na produção, já valeria o valor do ingresso. Todos esses profissionais, ao lado do elenco de apoio, renovam a certeza de que a arte melhora o mundo.

Sobre os aspectos técnicos, como se disse na introdução, “Barnum - O Rei do Show” tem a qualidade da assinatura Cláudio Botelho e sua equipe costumaz. As cores bem postas, tudo bem acabado, cheirando a ouro. O cenário de Rogério Falcão, o desenho de luz de Maneco Quinderé e sobretudo a coreografia de Alonso Barros com o figurino de Fábio Namatame e visagismo de Dhiego Durso e Feliciano San Roman são esplêndidos. Fosse um filme cujos quadros pudessem ser admirados em partes, inúmeros detalhes poderiam ser destacados: o primeiro figurino de Giulia Nadruz (Jenny Lind) é um pequeno grandioso exemplo. A cena de “A banda” (“Come follow the band”) é outro. Nele, e em diversos momentos e detalhes, se vislumbra, a beleza da direção musical de Thiago Gimenes com letras de Cláudio Botelho, mas esse elogio fica evidente pela responsabilidade (e peso) de apresentar uma trilha praticamente desconhecida no Brasil. “Barnum”, como já se disse, não é um daqueles musicais standards, cujas melodias ou letras o grande público conhece. E sair do teatro cantarolando as canções é mérito de quem as trouxe, no caso, a BARHO Produções.

Viva o circo!
O circo é uma arte multimilenar que teve sua origem na China, tendo se alastrado pelo mundo através do Império Romano. No Brasil, chegou via Estados Unidos na década de 30 do século XIX em uma era anterior a P. T. Barnum. Segundo dados da Associação Brasileira de Artes, Cultura e Diversões Itinerantes (ABACDI), há atualmente 651 circos no Brasil, sendo 40% desse montante do Nordeste e outros 40% da região Sudeste do país. Vale a pena assistir a um documentário sobre como muitas dessas empresas sobreviveram à pandemia clicando aqui. Em nossa história, o dia 27 de março é a data em que se comemora o dia do circo em homenagem a Abelardo Pinto (1887-1973), o Palhaço Pilion, que aniversariava nesse dia. Ele, seu irmão Ankito (1924-2009) assim como o nosso contemporâneo Frederico Reder, dono da Reder Circus, é o nosso P. T. Barnum, tendo dedicado sua vida ao circo seja sob a lona, seja dentro de um teatro. “Barnum - O Rei do Show” é uma excelente oportunidade para se conhecer a história artística da nossa ancestralidade, mas também sorrir, chorar e se encantar com um espetáculo vibrantemente produzido. Aplausos!

*

FICHA TÉCNICA
Direção Geral: Gustavo Barchilon
Versão Brasileira: Cláudio Botelho
Direção Musical: Thiago Gimenes
Coreografia/Dir. de Movimento: Alonso Barros
Figurino: Fábio Namatame
Cenógrafo: Rogério Falcão
Iluminador: Maneco Quinderé
Design de Som: Tocko Michelazzo
Visagismo: Dhiego Durso
Perucaria: Feliciano San Roman
Diretora Residente: Vanessa Costa
Coordenadora do Circo: Alessandra Abrantes
Instrutora de Circo: Cinthia Nunes
Assistente de coreografia: Cecília Simões
Tradução: Cláudia Costa
Adaptação: Gustavo Barchilon

Murilo Rosa como P.T Barnum
Thiago Machado como P.T Barnum alternante
Sabrina Korgut como Charity
Giulia Nadruz como Jenny Lind
Diva Menner como Joice Heth
Murilo Ohl como Tom Polegar / Swing
Guilherme Logulo como Bailey
Marcos Lanza como Amos Scudder
Luisa Vianna como Sra. Stratton
Tauã Delmiro como Goldsmith

Trupe do Circo: Renata Ricci, Ana Araújo, Bruno Ospedal, Fernanda Muniz, Sara Milca, Gabriela Camissoti, Giu Mallen, Preto Viana, Juliano Alvarenga, Marcos Fagundes, Rafael Barbosa, Flavio Arcoverde, João Siqueira, Luan Pretko, Raphael Silva e Rodrigo Silva.

Diretor de Produção: Thiago Hofman
Produtora Executiva: Graziele Saraiva
Coordenadora Financeira: Thamiles França
Coordenadora Administrativa: Renata Stilben
Coordenadora do Projeto: Natália Egler
Assistente de Produção: Leandro Leal
Assessoria de Imprensa: Trigo Comunicação
Realização: BARHO Produções

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

A cor púrpura (RJ)

Foto: divulgação




As várias e potentes cores de "A cor púrpura": um musical que deve ser visto

    
    Estreou ontem, dia 20 de janeiro de 2022, a quarta temporada oficial do musical "A cor púrpura" no Teatro Riachuelo, no centro do Rio de Janeiro. Produzida por Eduardo Bakr e por Norma Thiré, a peça lindamente dirigida por Tadeu Aguiar, assistido por Flavia Rinaldi, já fez outras temporadas: uma no Rio de Janeiro e duas em São Paulo, tendo estreado em setembro de 2019. Com roteiro original de Marsha Norman e músicas de Brenda Russell, Allee Willis e Stephan Bray, essa boa versão brasileira é assinada por Artur Xexéu (1951-2021). No elenco, participam Hannah Lima, Thór Junior, Léo Araújo, Caio Giovani, Gabriel Vicente, Jorge Maya, Renato Caetano, Merícia Cassiano, Erika Afonso, Ester Freitas, Flavia Santana, mas brilham exuberantemente Analu Pimenta, Suzana Santana e Alan Rocha. Wladimir Pinheiro, está, mais uma vez, em excelente atuação, sendo o grande destaque desta montagem. Letícia Soares, como a protagonista Celie, oferece uma vigorosa contribuição musical, imprimindo enorme força ao conjunto, mas deixa a desejar infelizmente como intérprete. O cenário de Natália Lana, o figurino de Ney Madeira e Dani Vidal, a direção de Tony Luchesi e o desenho de luz de Rogério Witgen também são aspectos valorosos da produção que ficará em cartaz até o dia 20 de fevereiro. Vale a pena ler o belíssimo livro de Alice Walker e também assistir ao filme de Steven Spielberg, mas nenhuma dessas atualizações anteriores atrapalham a fruição desse espetáculo teatral que belamente abre o ano de 2022. Sobre seus aspectos mais profundos, falar-se-á nos parágrafos vindouros.


As bases da narrativa

    "Não me sinto tão velha assim. Sou jovem e a vida começou." Essas frases são o centro - o início, o meio e/ou o fim - do livro "A cor púrpura" e também do musical que o adapta para a linguagem do teatro musical americano. São nelas, que tudo o que será dito nessa análise se apoiará ao dedicar-lhe elogios e também refletir sobre pontos que talvez não tenham tanto mérito quanto os demais. O livro, o filme e a peça têm a mesma narrativa, mas são fruições diferentes e aqui, em oportunidade mais longa, podemos nos dedicar à análise delas.

    

Prêmio Pulitzer de 1983, o quinto livro da americana Alice Walker (foto) é tido como a principal obra do empoderamento feminino preto do século XX nos Estados Unidos. Trata-se de um romance epistolar que alçou a autora e toda uma comunidade mundial a um lugar de merecido destaque. É uma leitura recomendável que está disponível aos brasileiros de novo, depois de quase vinte anos, através de uma bela nova tradução da Editora José Olympio. Li e tenho as duas versões e reconheço a sua força, mas desprezo as críticas que ela recebeu sobretudo na época em que o original foi lançado. Destaco a quem for lê-la o forte teor impressionista do romance. O leitor vê o mundo da protagonista através principalmente dos olhos dela e acompanha, a partir de dentro, a transformação desse universo, mas também desse olhar.

    Já o belíssimo filme lançado no finalzinho de 1985 oferece outra perspectiva. Em relação ao livro e à peça, o espectador verá pontos importantizados e outros diminuídos, como, por exemplo, a questão da homo ou bissexualidade. (Algo muito semelhante a isso aconteceu na versão cinematográfica do musical "Cabaret" quando saiu do palco e foi pras telas.) O filme não é impressionista, mas realista naturalista, oferecendo uma abordagem mais ampla do todo sobretudo dos personagens coadjuvantes e do quanto eles e o meio em que vivem participam da trajetória de transformação uns dos outros. Alice Walker e o grande compositor americano Quincy Jones participaram ativamente de todas as escolhas estéticas, desde a escalação do elenco, passando pelo roteiro, pela direção de fotografia e pela direção de arte até chegar à intepretação dos atores, tripartindo os méritos com Spielberg. Whoopi Goldberg era uma atriz novaiorquina que tinha feito muito teatro na Alemanha e que brilhava em um stand-up comedy na Broadway quando foi escolhida por Walker para o papel protagonista. Ophra Winfrey era uma radialista de sucesso local quando foi escalada por Jones para o papel de Sofia. A cantora Tina Turner era a escolha de Spielberg para Shug Avery, mas negou o papel dando acesso a Margaret Avery, que, apesar da brilhante atuação, nunca mais chegou a ter alguma chance mais relevante. Na 58a edição do Oscar, "A cor púrpura" ganhou incríveis 11 indicações, mas inacreditavelmente não levou qualquer prêmio, tendo sido acusada de uma obra melosa demais, estereotipada demais. Goldberg seria a 1a atriz preta a ganhar o Oscar de Melhor Atriz na história, coisa que só foi acontecer com Halle Berry em 2002. Hoje em dia, o fato só evidencia o racismo estrutural que existia e existe em nossa sociedade.

    A versão para teatro de "The color purple" deve-se ao empenho de Oprah Winfrey a dar longevidade à narrativa. Produzida por um grupo de teatro de Atlanta, na Geórgia, em 2004, a peça foi à Broadway em 2005 graças à fama (aos muitos dólares) e ao prestígio de Oprah, pois tinha sido escrita, composta, dirigida e era interpretada por atores desconhecidos em Manhattan. Caiu nas graças do público, ficando em cartaz até 2008, mas teve críticas muito semelhantes ao filme. Na 60a edição do Tony Award, o musical "The color purple" foi indicado a 11 categorias, perdendo para uma bogagem chamada "The Drowsy Chaperone", que ganhou 13. Ao final da cerimônia, "A cor púrpura" venceu apenas um prêmio: o de melhor atriz para a grande LaChanze (foto), que brilhantemente interpretou Celie e nunca mais outro grande papel. Em 2015, Oprah produziu uma nova versão que, embora não tenha feito a metade do sucesso de público da anterior, foi melhor reconhecida pela crítica. Na 70a edição do Tony Award, ano em que "Hamilton" explodiu com 16 indicações (e 11 troféus), "The color purple", como um revival que não concorre com as peças estreantes, levou 4 indicações e venceu em duas: Melhor Atriz para Cynthia Erivo e Melhor Espetáculo Remontado. Nessa montagem, Shug Avery foi interpretada por Jennifer Hudson, que havia ganhado, nove anos antes, o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante (estranhamente) por ter interpretado a protagonista do filme musical "Dreamgirls".

    O musical "A cor púrpura", mais que o livro e bem mais que o filme, resgata de maneira muito substancial o aspecto religioso da obra. Toda a peça, do início ao fim, fala de Deus, ou melhor, de como nós nos comunicamos com a figura misteriosa divinal. E, a partir daí, finalmente, poderemos chegar a como a narrativa é oportunizada.

    O grande mérito da história é que não há apenas curva na protagonista, mas também em outros personagens menores. A narrativa se passa na primeira metade do século XX no sul dos Estados Unidos, no seio de uma comunidade negra evangélica e muito tradicional. Nessa localidade, os personagens reproduzem, em suas relações interpessoais, os mesmos preconceitos entre si que sofrem enquanto grupo em oposição aos brancos opressores. Então, em superfície, ainda que quase todos os personagens sejam pretos, vemos racismo, misoginia, pedofilia e outros males de toda ordem. Vítima de estupro, Celie teve dois filhos com seu próprio pai e o viu fazer ambas crianças desaparecerem. Depois, foi praticamente vendida a um outro fazendeiro, o Mister Albert, que, na verdade, estava sexualmente interessado em Nettie, tida como a irmã "mais bonita" de Celie. O viúvo Albert, pai de cinco filhos, era um homem rejeitado por seu próprio pai. Essa rejeição aconteceu em função de sua relação amorosa com a cantora Shug Avery, vista por todos da comunidade, incluindo seu próprio pai, o pastor local, como uma mulher "de vida fácil", por ter tido vários filhos e nunca ter se casado. Nettie, fugindo de ser estuprada também pelo pai, vai para a casa de Albert e Celie, mas lá é perseguida pelo primeiro e é assim que as irmãs Celie e Nettie se separam. É basicamente a partir dessa separação final que a história começa.

    O tempo é fundamental na narrativa de "A cor púrpura", porque é a representação de Deus. A medida que os anos passam e todos envelhecem, há o primeiro ponto de mudança de Celie. Harpo, filho mais velho de Albert, casa-se com Sofia. Diferente de todas os lares que Celie conheceu, a família de Harpo e Sofia é matriarcal, dada a força fulgurante da esposa. Reclamando dessa circunstância, Celie recomenda a Harpo a única opção que ela conhece: que ele bata em Sofia, subjugando-a como ela pensa que todas as mulheres devem ser. A reação de Sofia ao descobrir isso é a primeira sinalização à Celie de que há alguma oportunidade do mundo ser diferente do que ela pensa ser.
  
 Em seguida, há a chegada de Shug Avery (na foto, Margaret Avery no filme) à fazenda de seu antigo amante Albert. Ele obriga sua esposa a cuidar da amante que está gravemente doente. E, embora a relação entre ambas comece muito mal, Shug vai percebendo aos poucos os valores de Celie que a própria nem consegue enxergar. E o público descobre que Celie é símbolo de resiliência e que está aí a sua força e também a sua beleza. Shug descobre as agressões constantes que Celie recebe de Albert, mas, pior do que isso, que ela, aos poucos, está perdendo sua fé em Deus. Isso se dá porque, anos depois da separação de Nettie, Celie nunca recebera uma carta dela. É a "madalena" Shug quem vai fazer Celie resgatar a sua fé em Deus e promover a grande reviravolta na história da protagonista.

    Em planos inferiores, Sofia, Shug e Albert também vão sofrer curvas narrativas assim como personagens ainda menores como a Gralha, Harpo, o pai de Celie e o pai de Albert. E é nesse envelhecimento não só das pessoas, mas das relações estabelecidas entre os personagens, mas também entre cada um consigo mesmo e com suas histórias, que surge o valor da juventude. Quando Celie diz que não se sente velha, mas, ao contrário, talvez nunca tenha se sentido tão jovem, a frase significa o ciclo da vida, a roda da fortuna, a natureza em que plantas, montanhas, animais e seres humanos se irmanam enquanto criações e manifestações de Deus.

    Desde as sabedorias mais antigas, a cor púrpura está relacionada ao precioso, ao raro, ao misterioso. É a cor de Júpiter, o pai dos deuses, e também do chacra mental, da magia, da conexão com o superior. Com o advento do monoteísmo, passou a ser símbolo de riqueza, de benção divina, devido à sua raridade (Ver o Evanvelho de Lucas 16,19). No cristianismo, púrpura é a cor do sacrifício. Quem for à missa, nos quarenta dias que antecedem o natal ou a páscoa, verá o padre com uma estola cor de púrpura, representando o período de preparação interior, de meditação, de reflexão, de oportunidade de transformação para algo que, em breve, chegará numa explosão de alegria, que é o nascimento de Cristo ou a sua ressurreição.


A ótima montagem brasileira dirigida por Tadeu Aguiar

    Eduardo Bakr, Norma Thiré e Tadeu Aguiar seguiram basicamente a mesma receita que a Broadway no que diz respeito à escolha do elenco. Wladimir Pinheiro (que substitiu Sérgio Menezes) (Mister Albert), Jorge Maya (os pais de Celie e de Albert) e Analu Pimenta (Gralha) (havia também Lilia Valeska no papel de Nettie) são os únicos nomes mais conhecidos no elenco orinalmente composto por 18 atores. Parece que os objetivos foram também os mesmos: abrir espaço para rostos pretos desconhecidos em uma classe essencialmente composta por intérpretes brancos. No entanto, diferente das montagens americanas, a brasileira teve uma ficha técnica bastante conhecida em todos os seus aspectos.

   

 Nas premiações, o resultado brasileiro foi mais positivo. No 14o Prêmio APTR - Associação de Produtores Culturais do Rio de Janeiro, "A cor púrpura" ganhou 11 indicações, levando para casa 4 troféus: Melhor Direção de Movimento para Sueli Guerra, Melhor Ator Coadjuvante para Alan Rocha, Melhor Espetáculo e Melhor Produção. No 32o Prêmio Shell, foram duas indicações, mas prêmio apenas para Melhor Iluminação para Rogério Witgen. No 7o Prêmio Cesgranrio foram 7 indicações e dois troféus: para Iluminação e para Letícia Soares (na foto com crédito de Bob Sousa) como Melhor Atriz em Teatro Musical. Soares também venceu o mesmo troféu no Prêmio Bibi Ferreira, em que o espetáculo ficou com 8 indicações. A peça também foi indicada ao Prêmio APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte de Melhor Espetáculo, entre outras premiações menos importantes.

    Trata-se de uma produção realmente vigorosa. O cenário de Natália Lana remete a uma estrutura de madeira ora bem requintada, mas ora selvagem que circula na velocidade em que o tempo gira em nossas vidas, sugerindo essa ambivalência entre a força da natureza e o raciocínio humano. Ney Madeira e Dani Vidal, na criação dos figurinos, valorizam o algodão em uma ótica realista ruralista e conservadora que conversa bastante bem com os outros elementos, ressaltando sua própria beleza e assim contribuindo para o mérito do todo. O desenho de luz de Rogério Witgen, fazendo vibrar o ciclorama com variações de púrpura que vão desde o branco até o índigo, exploram o olhar superior que vem do alto mas que se perde no infinito através dos homens e da grande estrutura cenográfica.

    A direção musical de Tony Lucchesi e a coreografia de Sueli Guerra vencem desafios com galhardia. "A cor púrpura" não é um espetáculo do repertório tradicional e, assim, não tem canções conhecidas do público. Além disso, vale dizer que ambos criadores tiveram em mãos uma peça que sempre sofrerá o risco de parecer religiosa demais, conservadora demais, lavanda demais. Talvez em vários momentos, ambos tenham perdido oportunidades de explorar um pouco mais a sensualidade que há em baixíssimo nível nessa partitura. No entanto, não se pode dizer com certeza que não houve tentativas, talvez por méritos deles, talvez por méritos da direção, talvez por mérito dos atores. O fato é que há, sim, momentos mais cômicos, ou mais sensuais, ou mais vigorosos que impedem a peça de afundar no mar de melancolia que Alice Walker criou (e quem ler o livro descobrirá isso). A música que dá título ao espetáculo, com letra de Artur Xexéu, fica na cabeça para sempre, marcando a potência dessa versão.




    Nesse sentido, a direção de Tadeu Aguiar, equilibrando-se perigosamente numa corda bamba que perigosamente pode-lo-ia fazer cair no excesso de sentimentalismo ou de fanatismo religioso, tem o brilhante mérito de emocionar pela delicadeza, de levar à oração sem o jugo da culpa, promover reflexão e divertimento sem cair nem na erudição nem na fanfarronice. É uma direção na medida que merece louvores por ter manipulado elementos tão tentadores sem cair em seus perigos.

As várias cores das interpretações

    "A cor púrpura" não é excelente por causa das interpretações e é claro que é preciso considerar nisso o contexto em que vivemos. Essa crítica se refere a uma apresentação em que três atores não estavam presentes por estarem diagnosticados com Covid-19: Claudia Noemi, Leandro Vieira e Nadjane Pierre. É claro que eles fizeram falta ao melhor sucesso do todo. Além disso, considera-se o processo pelo qual a produção que passou pela pandemia em ensaios irregulares, em sessões canceladas, em falta de rotina, em constante instabilidade. Nesse sentido, há que se reconhecer as muitas vitórias muito mais do que as pequenas derrotas. No entanto, esse site tem o histórico de refletir sobre os produtos e não sobre os processos, ou seja, não é de hábito aqui considerar como a obra chegou até onde esteve na sessão em questão, mas como ela estava aos olhos da análise na hora da apresentação.

    Os três pilares essenciais de "A cor púrpura" apresentam uma intepretação bidimensional, chapada, sem profundidade. Letícia Soares (Celie), Flávia Santana (Shug Avery) e Erika Affonso (Sofia) parecem depender exclusivamente do texto ou do figurino para se transformarem, pois, em seus corpos, nada se modifica ao longo da peça. As expressões faciais são as mesmas, os tons de fala são iguais, o gestual é invariável. É claro que o próprio texto obriga as intérpretes a se modificar, sobretudo no que diz respeito aos altos e baixos de Shug e à derrocada de Sofia. Mas esse mérito é do texto e pouco se reconhece a contribuição das atrizes nisso sobretudo quando se tem à disposição do olhar as demais interpretações do elenco em concorrência. Letícia Soares, em especial, apesar de cantar com uma exuberante potência e vibrante beleza, tem péssima dicção de maneira que, da quarta fila, não se entendem muitas palavras que ela diz. Perdem-se as consoantes, esvaem-se as potencialidades de variação tonal, perde-se o ritmo.

    Por outro lado, vemos vários intérpretes procurando formas de contribuir com o texto, de melhorá-lo, de tirá-lo do papel, de dar-lhe corpo, forma, personalidade. E, nesse sentido, é impossível não citar Ester Freitas (Nettie), Suzana Ribeiro (Jarene, uma das fofoqueiras), Analu Pimenta (Gralha) e principalmente Alan Rocha (Harpo). Freitas tem, diante de si, um desafio diferente dos demais citados, pois sua personagem é muito menor em termos de liberdade de criação. É uma figura que permanece imanente, isto é, na memória da audiência e de Celie. No entanto, Freitas soube criar e defender um padrão forte o bastante que se segurasse até o final quando a personagem reaparece. Já Santana, Pimenta e Rocha dão um show de exploração de potencialidades. Vêem-se neles o resultado de uma profícua pesquisa no amplo roll de possibilidade expressivas e na escolha consciente daquela mais adequada para cada momento. Quando estão em cena, não há cenário, não há figurino, não há luz que chame mais a atenção do que eles. E o que é o teatro se não o ator?

    

Por fim, para além de tudo no terreno das intepretações, vale aplaudir de pé o excelente trabalho de Wladimir Pinheiro (Mister Albert), um dos melhores atores do país. Cantor de primeiríssima grandeza, ele exibe, ao longo da peça, vastíssima variedade de cores e formas na composição de seu personagem, o antagonista. Outro poderia ter ficado satisfeito na cômoda posição de vilão e portanto sub-protagonista, mas Pinheiro deu-lhe níveis mais profundos, curvas evolutivas, humanidade. Em todas as cenas, o vemos fugindo dos lugares comuns e fáceis e investindo com força e assertividade desde os mínimos detalhes do olhar até os mais largos gestos de fúria. Ele brilha unânime nessa enorme produção cheia de outros méritos.

Um belo espetáculo

    O livro, o filme e a peça "A cor púrpura" são obras paralelas que encontraram, quarenta anos depois de seu primeiro aparecimento, lugar adequado para sua fruição. Vivemos um tempo de debates sobre preconceito racial, preconceito de gênero, preconceito religioso. Não se pode, porém, empobrecer as três obras baseando-se apenas na importante militância em prol de um mundo mais justo, fraterno e igualitário. O espetáculo "A cor púrpura" é ótimo não por um ser panfleto, afirmar isso seria uma agressão ao conjunto de criadores e realizadores envolvidos com a produção. O aplauso de pé, as lágrimas, a reflexão que a peça lega a quem sai do teatro são devidos aos seus muitos méritos estéticos. Se obviamente devemos ter o compromisso de valorizá-lo como bandeira potente na luta por uma sociedade melhor, há que se ter mais ainda o impulso natural de saudá-lo pela magnitude dos temas que ele aborda, mas sobretudo pela forma artística como essas pautas são trazidas à baila. Parabéns!!




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Ficha Técnica

Texto: Marsha Norman

Músicas: Brenda Russell, Allee Willis e Stephen Bray

Versão Brasileira: Artur Xexéo

Direção Geral: Tadeu Aguiar

Direção Musical: Tony Lucchesi

Elenco: Letícia Soares, Wladimir Pinheiro, Flávia Santana, Jorge Maia, Alan Rocha, Ester Freitas, Erika Affonso, Analu Pimenta, Suzana Santana, Cláudia Noemi, Hannah Lima, Caio Giovani, Renato Caetano, Thór Jr, Gabriel Vicente, Leandro Vieira, Nadjane Rocha, Léo Araújo e Merícia Cassiano.

Assistência de direção: Flávia Rinaldi

Produção de elenco: Marcela Altberg

Cenário: Natália Lana

Figurino: Ney Madeira e Dani Vidal

Desenho de luz: Rogério Wiltgen

Desenho de som: Gabriel D’Angelo

Coreografia: Sueli Guerra

Assistência de cenografia: Gisele Batalha

Assistência de Coreografia: Olívia Vivone

Assistência de direção musical: Thalyson Rodrigues

Assessoria de imprensa: Morente Forte

Mídias sociais: Rafael Nogueira

Designer gráfico: Alexandre Furtado

Produção executiva: Edgard Jordão

Coordenação de produção: Norma Thiré

Produção Geral: Eduardo Bakr