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Chico Caruso, Alessandra Verney, Will Anderson e José Mayer |
Um dos melhores espetáculos de 2015, “Kiss me, Kate! – O beijo da megera” é a nova excelente produção assinada pela dupla Charles Möeller e Claudio Botelho. Dentre os vários aspectos, ela vale a pena ser vista porque é alegre, é bem feita, é bonita, é clássica! Trata-se do primeiro musical do americano Cole Porter produzido na íntegra do Brasil, trazendo, em seu repertório, standards da música internacional como “Another opening, another show” e “So In Love”. É também o melhor momento da carreira dos excelentes atores-cantores Alessandra Verney e de José Mayer no teatro musical brasileiro. Tem ainda o exuberante cenário de Rogério Falcão, o suntuoso figurino de Carol Lobato, a vibrante direção musical de Marcelo Castro e as potentes coreografias de Alonso Barros. Em cartaz no Teatro Bradesco, na Barra da Tijuca, este é um dos pontos altos na programação de teatro carioca.
A mudança dos padrões nos musicais da Broadway
A primeira versão do musical “Kiss me, Kate!” tem lugar de destaque na história do teatro musical americano. O grande compositor Cole Porter (1891-1964) havia feito muito sucesso na Broadway e em Hollywood ao longo dos anos 20 e 30, mas chegava aos anos 40 sem tanto fôlego. Dois podem ter sido os motivos para isso: um acidente em função do qual sua perna direita foi inutilizada e uma mudança nas preferências do público em relação aos espetáculos musicais. “Kiss me, Kate!” foi o que reconduziu Cole Porter ao sucesso.
Em 1937, Porter caiu de um cavalo e o animal derrubou-se em suas pernas, trazendo enorme dor e depressão para o artista. O fato, porém, não retirou seu nome do sucesso na Broadway. Os musicais “DuBarry was a Lady” (1939), “Panama Hattie” (1940), “Let’s face it” (1941) e “Something for the boys” (1943) fizeram entre 408 e 547 apresentações, isto é, ficaram entre doze e dezoito meses ininterruptamente em cartaz. O teatro musical americano, porém, nunca mais foi o mesmo depois da estreia de “Oklahoma!”, musical da dupla Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, em 1943. Esse espetáculo atingiu a marca de 2.212 apresentações, ficando quase cinco anos em cartaz (sete sessões por semana).
Com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra, o país mergulhou em um sentimento de americanismo um tanto quanto esquecido desde a queda da bolsa de valores de Nova Iorque, em 1929. O sucesso do musical “Oklahoma!”, somente batido treze anos depois por “My fair lady”, deixou claro que o público ansiava por narrativas mais bem estruturadas e que principalmente falassem da nação. Até esse momento, as canções que Cole Porter escrevia entravam e saíam de seus musicais, se repetiam ou participavam de filmes de Hollywood. Isso, que acontecia de um modo geral com todas as produções, revelava a fragilidade dos enredos e o privilégio dado ao tom de vaudeville das montagens. “Kiss me, Kate!”, que estreou exatos sete meses depois do encerramento da temporada de “Oklahoma!”, era como esse: totalmente original.
A versão original de “Kiss me, Kate!”
Antes de qualquer outra coisa, “Kiss me, Kate!” é sobre o amor ao teatro. Na história, o ator e dono da companhia Fred Graham está remontando “A megera domada”, comédia de William Shakespeare (1564-1616) escrita em 1591. Graham fará o papel de Petrucchio, aquele que aposta com os amigos que conseguirá domar a furiosa Catarina e casar-se com ela. No papel título, estará sua ex-esposa Lilli Vanessi, atualmente noiva de um oficial do exército norte-americano. “Kiss me, Kate!” começa quando o galã Bill chega ao ensaio vindo de um cassino, onde perdeu dinheiro inadvertidamente em nome de Graham. Para cobrar essa dívida, chegam dois gangsters a quem o verdadeiro Graham promete pagar se conseguir fazer com que “A megera domada” estreie e fique em cartaz, pelo menos, até o final de semana. Por trás disso, está o desejo dele de obrigar Vanessi a permanecer no elenco, no teatro e junto de si.
Começando por “Mais uma estreia de mais um show” (“Another opening, another show”) e chegando à “Chama o Shakespeare!” (“Brush up your Shakespeare”), as canções, os personagens e também tudo o que acontece na narrativa são declarações de amor que Cole Porter faz ao teatro. A inspiração de “Kiss me, Kate!” surgiu a partir do famoso casal de atores Alfred Lunt (1892-1977) e Lynn Fontanne (1887-1983), que haviam protagonizado “A megera domada”, em 1935, na Broadway. Mas, além das belas canções e das elogiadas interpretações na temporada de estreia, estava ali, nesse musical, a resposta de Cole Porter ao sucesso “Oklahoma!”. E também uma reverência dele ao universo em todo do qual o célebre compositor havia sempre vivido.
Na entrega do 3º Tony Awards, em 1949, “Kiss me, Kate!” ganhou as estatuetas de Melhor Texto, Produção, Trilha Sonora Original, Figurino e o de Melhor Musical. Na cerimônia do ano 2000, a nova produção do espetáculo ganhou Tony de Melhor Direção, Ator (Brian S. Mitchel/Fred Graham), Direção Musical, Figurino e Melhor Remontagem. A versão de Charles Möeller e de Claudio Botelho foi feita a partir dessa última.
A excelente versão brasileira de Charles Möeller e de Claudio Botelho
Os méritos de “Kiss me, Kate! – O beijo da megera” começam na qualidade das versões para português assinadas por Claudio Botelho e na direção musical de Marcelo Castro. As letras e as melodias fluem com naturalidade, graça e elegância, mas também, como no original, devem ser destacadas pelo modo como fazem a narrativa andar. A direção de Charles Möeller, principalmente no segundo ato, tem excelente ritmo, envolvendo ótimo diálogo com o público, entrosamento do elenco e bem marcados contornos no nível dramático.
Nos melhores momentos de suas carreiras no teatro musical brasileiro, José Mayer e Alessandra Verney tem também excelentes trabalhos de interpretação. Eles oferecem profundidade aos seus personagens dentro do possível, mas também exibem grande carisma. Além disso, os dois cantam lindamente, destacando as canções “Homens, não!” e “Cadê a vida que eu vivi?”. Suas participações são cheias de virtuosismo, engrandecendo o espetáculo positivamente.
Há ainda as vibrantes participações dos personagens menores. Em “Kiss me, Kate! – O beijo da megera”, brilham Ivanna Domenyco (Hattie), Guilherme Logullo (Bill), Ruben Gabira (Paul), mas principalmente Fabi Bang (Lois) sobretudo no excelente quadro “Eu sou sempre fiel”. A dupla de gangsters é interpretada por Chico Caruso e Will Anderson com muita graça e destacável uso do tempo na viabilização dos trechos mais cômicos. “Chama o Shakespeare!”, que os dois interpretam, é um dos melhores momentos de todo o espetáculo e recebeu, na apresentação de estreia, ovações justas. Sem exceção, todos os 22 atores estão em ótimas performances, o que é infelizmente raro nos espetáculos produzidos por aqui. Aplausos efusivos!
O virtuosismo de Carol Lobato e de Rogério Falcão
Esse musical eleva a qualidade das produções pares pela excelente contribuição do desenho de luz de Paulo Cesar de Medeiros e pelas explosivas coreografias assinadas por Alonso Barros. Nesse último, vale destacar o quadro “Bianca”, além do fim do primeiro ato. No entanto, estão no visagismo de Beto Carramanhos e sobretudo no cenário de Rogério Falcão e no figurino de Carol Lobato os pontos mais altos dentre os elementos estéticos. Pintados à mão, os paineis preenchem o palco lindamente, mantendo ainda altíssimo o padrão visual que é comum nos espetáculos da dupla Möeller e Botelho. O guarda-roupa da produção é nada menos que exuberante. O figurino visto na última cena de “Kiss me, Kate! – O beijo da megera” somente pode ser equiparado àquele visto no musical “O Mágico de Oz”, de 2012. Excelente!
O ano dos musicais
2015 é o ano do teatro musical no Rio de Janeiro graças à “Bilac vê estrelas”, “Nine”, “Ou tudo ou nada”, “O Beijo no Asfalto” e agora à “Kiss me, Kate! – O beijo da megera”, entre outras produções menores mas igualmente qualificadas. É o público carioca (e brasileiro) quem ganha. Que maravilha!
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FICHA TÉCNICA
COLE PORTER
Música e letras
SAM E BELLA SPEWACK
Texto
ROBERT RUSSELL BENNETT
Orquestração Original
MARCELO CASTRO
Direção Musical / Regência
ROGÉRIO FALCAO
Cenário
CAROL LOBATO
Figurinos
ALONSO BARROS
Coreografia
MARCELO CLARET
Design de Som
PAULO CESAR MEDEIROS
Iluminação
CLAUDIA COSTA / CLAUDIO BOTELHO
Tradução dos diálogos
BETO CARRAMANHOS
Visagismo
MARCELA ALTBERG
Produção de Elenco
CRIS FRAGA
Diretora Residente
BEATRIZ BRAGA
Direção de Produção
CARLA REIS
Gerência de Produção
EDSON MENDONÇA
Produção Executiva
TINA SALLES
Coordenação Artística
CHARLES MÖELLER
Direção
CLAUDIO BOTELHO
Versão Brasileira / Supervisão Musical
Realização
MÖELLER & BOTELHO
ORQUESTRA
MARCELO CASTRO (Regência)
KELLY DAVIS (Violino 1), LUIZ HENRIQUE LIMA (Violino 2), SAULO VIGNOLI (Cello), ZAIDA VALENTIM (Teclado 1), GUSTAVO SALGADO (Teclado 2), RAPHAEL NOCCHI (Piccolo, Clarineta, flauta e sax alto), GILSON BALBINO (Clarineta e sax alto), WHATSON CARDOZO (Clarone, clarineta e sax barítono), MATHEUS MORAES (Trompete e Flügel) VÍTOR TOSTA (Trombone), OMAR CAVALHEIRO (Contrabaixo) e MARCIO ROMANO (Bateria e percussão).