segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Negra Palavra – Solano Trindade (RJ)

Foto: divulgação
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O ator Pedro Américo na divulgação do espetáculo

Leandro Fazolla*, do "Cadernos Cênicos", escreve a crítica de "Negra Palavra – Solano Trindade" - espetáculo do 13o Festival Niteroí Em Cena

Ressignificação foi uma das palavras de ordem no ano de 2020. Com todos os teatros fechados, artistas tiveram que se ressignificar, buscar alternativas, se reinventar. Passados alguns meses do isolamento por conta do novo corona vírus, grupos de teatro se aventuraram em novas pesquisas pelo ambiente virtual, no que se convencionou chamar de “teatro online”. Diversas foram as experimentações nesse sentido, que geraram ótimas propostas artísticas como é o caso de “12 pessoas com raiva”, do Pandêmica Coletivo Temporário de Teatro, “O Filho do Presidente”, do Teatro Caminho, e até mesmo “Éramos em Bando”, filme investigativo do Grupo Galpão que oscila na fronteira entre teatro e cinema. Entretanto, não foi apenas de novidades que se fez essa nova safra da produção teatral. Uma série de artistas começou a disponibilizar os registros em vídeo de espetáculos anteriores ao isolamento social. Para além destes, houve ainda aqueles que se aventuraram em adaptar espetáculos originalmente pensados para o “teatro presencial” (termo que fomos obrigados a cunhar para nos referir, nestes novos tempos, ao que costumava ser apenas “teatro”). Este é o caso da versão online de “Negra Palavra – Solano Trindade”, parceria do Coletivo Preto e da Companhia de Teatro Íntimo, apresentada no Festival Niterói em Cena. 

Leandro Fazolla

Mais do que uma adaptação, o que temos é uma nova produção, ressignificada para os tempos de pandemia, mas ainda ancorada na mesma premissa original: apresentar a potência da obra do poeta Solano Trindade. Com direção de Orlando Caldeira e Renato Farias e um elenco composto por Adriano Torres, André Américo, Breno Ferreira, Drayson Menezzes, Eudes Veloso, Jorge Oliveira, Lucas Sampaio, Orlando Caldeira, Rodrigo Átila e Thiago Hypolito, separados nas já habituais janelinhas da plataforma Zoom, a obra se divide entre poesia e militância (ou será que fazer poesia no Brasil atual já é, por si só, militar?), algo completamente pertinente em um ano em que, além de uma pandemia, tivemos que nos confrontar com diversos ataques racistas vindos das mais variadas esferas, da truculência policial aos estádios de futebol. 

Iniciando o espetáculo com uma filmagem de Conceição Evaristo declamando uma poesia na temporada presencial no Teatro Poeira, em janeiro deste ano, o espetáculo já começa mostrando o que pretende: mais do que se aprofundar na biografia de Solano Trindade, o trabalho faz uma necessária pesquisa e um resgate de sua obra para o grande público, assim como um tributo ao(s) poeta(s) e a todo o povo negro. Há primordialmente uma emocionante reverência à ancestralidade, algo conduzido não apenas pela interpretação do elenco, mas por suas próprias vivências, o que fica evidente na emoção e orgulho em volta de Evaristo, e em outros momentos marcantes do espetáculo, como quando os olhos do ator André Américo brilham ao falar do sol da África, ou quando Thiago Hipólito brinca com as intenções e apresenta diferentes interpretações para um poema de Solano que menciona características físicas dos corpos pretos, exaltando-as. Neste sentido de exaltação e celebração, vale ressaltar, ainda, as homenagens que o espetáculo faz à memória dos atores Eliton (Tom) Torres, assassinado no ano de 2017 no Rio de Janeiro; e Chadwick Boseman, que imortalizou o super-herói Pantera Negra nos cinemas e morreu de câncer este ano. A estes tributos, soma-se outro, feito pelo próprio Niterói em Cena, a Erika Ferreira, artista da cidade sede do evento vitimada pela Covid-19 no início deste ano.

De volta à encenação, as necessidades técnicas do novo ambiente virtual acabam por tirar do espetáculo alguns dos grandes destaques da versão presencial, como a belíssima direção de movimento de Orlando Caldeira, com uma assertiva ocupação do espaço cênico; ou então a impressionante direção musical de André Muato e toda sua pesquisa em percussão corporal; porém, não seria justo tratar de uma nova obra – como, de fato, esta pesquisa se tornou – tendo como parâmetro a comparação com o que a mesma foi em outra “plataforma”. Pelo contrário, há que se ater aos méritos proporcionados pelo novo ambiente, como as possibilidades de jogos de câmera que trazem novos pontos de vista e, acima de tudo, a ênfase que a nova versão dá ao próprio título do espetáculo: no ambiente virtual, com os atores vestindo roupas do dia a dia e sem o uso de muitos artifícios para além de si mesmos, as negras palavras de Solano parecem reverberar ainda mais e se tornam mais do que nunca a grande protagonista da montagem. A força de sua poesia parece se amplificar quando o que temos é o contato próximo e direto (ainda que mediado via tela) com o elenco e sua profusão de olhos, bocas, narizes, mãos, peles, tudo ampliado pelo zoom (tanto a plataforma quanto o movimento de câmera). Vale ressaltar ainda o quanto a poesia de Solano ganha vida ao se colocar no cotidiano. Na intimidade dos lares, a obra do poeta sai pulsante dos lábios dos atores para deslizar por entre telas, escorrer por paredes de tijolos, alojar-se nas frestas dos azulejos e preencher cada canto das casas, tanto as do elenco, quanto as do público. Elenco e público que, inclusive, parecem conectados para além do que a velocidade da internet permite supor. 

O uso das próprias casas dos atores também traz novas significações e mensagens nas entrelinhas. Nenhuma escolha é fruto do acaso e isso fica claro quando Drayson Menezzes dança no mesmo cômodo onde um quadro na parede apresenta uma versão negra da Monalisa. Interpretada pela atriz Mariana Nunes, a imagem, concebida para o projeto Identidade (idealizado por Orlando Caldeira e Noemia Oliveira) parece contemplar a performance do ator com o mesmo olhar de orgulho com o qual, em outro momento, o elenco observara Conceição Evaristo. Tão enigmático quanto sua contraparte “original”, este novo sorriso parece emitir a mensagem de que não há mais tempo e nem espaço para velhos cânones europeus. No Brasil de 2020, a Monalisa é crespa, a cena é preta, o poeta é Solano, e é tudo pra ontem!


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*Leandro Fazolla é Graduado em História da Arte, Mestre em Arte e Cultura Contemporânea, na linha de pesquisa de História, Teoria e Crítica de Arte e doutorando em Artes Cênicas. Ele assina o Canal Cadernos Cênicos no You Tube.

Ficha Técnica
Direção de arte: Raphael Elias
Assistência de arte e figurino: Júlia Marques
Elenco: Adriano Torres, André Américo, Breno Ferreira, Drayson Menezzes, Eudes Veloso, Jorge Oliveira, Lucas Sampaio, Orlando Caldeira, Rodrigo Átila e Thiago Hypolito
Direção geral: Orlando Caldeira e Renato Farias
Direção musical: André Muato
Direção de movimento: Orlando Caldeira
Direção de atores: Drayson Menezzes
Autor: POESIAS - Solano Trindade | ROTEIRO - Renato Farias
Classificação Indicativa: 12 anos​
Duração: 30 min
​Link: @negrapalavrasolanotrindade

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