quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

12 pessoas com raiva (RJ)

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Elenco em cena



Leandro Fazolla*, do "Cadernos Cênicos", escreve a crítica de "12 pessoas com raiva", espetáculo que brilhou no 13o Festival Niterói em Cena

Leandro Fazolla
Repetida à exaustão, “polarização” continua sendo uma das palavras mais utilizadas para definir o Brasil dos últimos anos. Em um período em que a política tomou o protagonismo da vida em sociedade, temos há algum tempo um país partido, que parece ter se tornado ainda mais radical durante a pandemia do novo corona vírus, quando a população se divide entre os pró-vacina e aqueles que parecem subverter qualquer racionalidade ao achar que não se vacinar é a melhor opção. Essa divisão tão acentuada parece ser, de cara, o que mais torna o espetáculo online “12 pessoas com raiva”, da Pandêmica Coletivo Temporário de Teatro, uma experiência tão atual. 

O espetáculo é a mais recente adaptação brasileira para “Twelve Angry Men”, de Reginald Rose, originalmente escrito nos Estados Unidos dos anos 1950 e já adaptado para o cinema e para o teatro – tendo recebido no Brasil o título “Doze homens e uma sentença”. A cargo de Juracy de Oliveira, também diretor do espetáculo, esta adaptação do Pandêmica Coletivo apresentada na 13ª edição do Niterói em Cena amplia suas possibilidades ao substituir os doze homens do título original por homens e mulheres. A isso, soma-se o fato de o coletivo ter sido formado de forma interestadual durante o confinamento, o que traz ainda uma multiplicidade de cores de pele e sotaques que amplifica as possibilidades dramatúrgicas do espetáculo e, ainda, as possibilidades que não são dadas somente pelo texto, mas podem ser apreendidas nas entrelinhas a partir desta multiplicidade em cena. Além de utilizar esta diversidade a seu favor, outro dos muitos méritos desta adaptação está em assumir completamente o ambiente virtual e a plataforma Zoom como elemento constituinte de seu enredo

Na trama, por conta da pandemia, doze jurados se encontram para uma reunião online onde terão que selar o destino de um jovem acusado de assassinar o próprio pai. A única condição é que o veredito tem que ser unânime e o réu só pode ser considerado culpado se não houver qualquer “dúvida razoável” sobre sua inocência. Em uma votação inicial, apenas uma jurada põe em dúvida a culpa do réu. A partir daí, começa um intenso debate, em um texto praticamente investigativo, que vai resgatando (e apresentando ao espectador, o que torna muitos dos diálogos bastante expositivos) os detalhes do crime e do julgamento para colocar em xeque a confiabilidade das provas e dos testemunhos. À medida que o espectador vai assistindo ao espetáculo, já parece claro o rumo que as coisas vão tomar. Entretanto, o que está em jogo vai muito além da necessidade de surpresas ou da previsibilidade do desfecho. Enquanto avança, o espetáculo vai suscitando uma série de discussões que não necessariamente se esgotam na própria peça (o que ficou ainda mais evidente no acalorado debate que se seguiu à apresentação, junto ao público presente), e que vão trazendo um ar de atualidade latente a ela, a despeito das quase sete décadas que separam a versão atual da encenação original. Racismo, etarismo, preconceito social, machismo, tudo vai sendo disposto sobre a mesa, em meio a provas, fatos e opiniões, à medida que os “tipos” presentes no júri vão se revelando a partir de suas diferentes perspectivas sobre o caso. 

A direção de Juracy acerta em cheio ao perceber que o que tem em mãos é, sobretudo, um ótimo texto e um grupo forte de atores, e não cede à tentação de se debruçar sobre invencionices tecnológicas desnecessárias. As possibilidades que o ambiente virtual oferece até são utilizadas vez ou outra na encenação, como um compartilhamento de imagem, pontuações mínimas por trilha sonora, mas nada que distraia o espectador ao ponto de ele esquecer que se trata de mais uma das inúmeras reuniões virtuais que ocorrem durante o isolamento social. Nesse sentido, até mesmo “tempos mortos” como a espera inicial pela entrada de todos os jurados contribuem para trazer o realismo da encenação. Não há jogo de câmeras, inserções externas nem nada que nos tire do contato direto com cada um dos personagens, presentes o tempo todo a partir das próprias câmeras frontais de seus aparelhos. 

Contando com um extenso elenco (composto por Enio Cavalcante, Gabrielly Arcas, Gilson de Barros, Giovanna Araújo, José Henrique Ligabue, Leandro Vieira, Leonardo Netto, Mariana Queiroz, Maurício Lima, Múcia Teixeira, Nely Coelho, Ralph Duccini e Tatiana Henrique), é natural que alguns atores tenham mais espaço na trama do que outros. Mas, como um todo, o grupo se mostra pronto não apenas para defender seus personagens como, ainda, para se desvencilhar das armadilhas que o ambiente tecnológico pode trazer, desde um rápido “travamento” de câmera até mesmo a uma “queda” que pode deixar um ator fora de cena por alguns minutos, obrigando o restante do grupo a avançar com a dramaturgia mesmo na ausência de um dos personagens. E essas imprevisibilidades estão tão completamente assumidas pelo espetáculo e dominadas pelo elenco que, por vezes, o público pode ficar em dúvida se fazem parte da encenação ou de fato estão acontecendo no “mundo real” fora da trama.

Após meses de constante temporada virtual, é possível perceber um elenco bastante à vontade para inserir “cacos” e deixar o jogo acontecer. Jogo, inclusive, que se reinventa a partir da entrada do ator Leonardo Netto em substituição a Gilson de Barros na pele do “Número 4”. Se Gilson carregava nas tintas do personagem que, até o último segundo, considera culpado o réu em questão, tornando esse cabo de guerra mais acalorado e tenso, Netto oferece ao mesmo determinadas sutilezas que parecem enfatizar o fato de que, para o jurado em questão, o julgamento parece muito mais um acerto de contas com seu próprio passado do que, necessariamente, uma abordagem sobre a vida do réu em si. Duas nuances distintas que aproveitam bem o ótimo personagem e que podem dar (ao espectador que tiver a oportunidade de assistir aos dois em cena) novas camadas ao personagem e até mesmo ao próprio espetáculo. Principalmente pelas oportunidades que recebem do texto, chamam atenção no elenco, também, Tatiana Henrique, que assume a responsabilidade de conduzir a trama a partir dos questionamentos de sua personagem, única a, a princípio, duvidar da culpa do réu; Múcia Teixeira, um contraponto emocional dentro daquele universo em que sentimentos parecem emergir quase que exclusivamente a partir da raiva do título; e José Henrique Ligábue que muitas vezes consegue servir de alívio cômico com um dos personagens mais interessantes do espetáculo. 

Num espetáculo que trata sobretudo de divisão, o Pandêmica Coletivo se mostra assertivo ao trazer para a cena o oposto, a reunião de um Brasil de dimensões continentais, com diversas diferenças colocadas lado a lado em cena e que tornam possível o delicado encontro final, que nos lembra que, por trás daqueles profissionais chamados por números, há pessoas, nomes e histórias. E, por mais que a pandemia em que vivemos seja usada apenas como pano de fundo e não necessariamente tenha impacto direto na trama (para além de seu contexto de reunião online e uma ou outra inserção de texto), difícil não pensar, em uma época em que números são atualizados diariamente no noticiário, que pessoas, nomes e histórias também estão por trás dos quase 190 mil mortos negligenciados por uma parcela expressiva da população.





*Leandro Fazolla é Graduado em História da Arte, Mestre em Arte e Cultura Contemporânea, na linha de pesquisa de História, Teoria e Crítica de Arte e doutorando em Artes Cênicas. Ele assina o Canal Cadernos Cênicos no You Tube.

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Ficha Técnica
Livremente inspirado em “12 Angry Men” de Reginald Rose

Idealização, Adaptação e Direção Geral: Juracy de Oliveira
Direção de Arte e Figurino: Luiza Fardin
Elenco: Enio Cavalcante, Gabrielly Arcas, Gilson de Barros, Giovanna Araújo, José Henrique Ligabue, Leandro Vieira, Mariana Queiroz, Maurício Lima, Múcia Teixeira, Nely Coelho, Ralph Duccini e Tatiana Henrique.
Direção: Juracy de Oliveira
Autor: Livremente inspirado em "12 Angry Men" de Reginald Rose
Classificação Indicativa: 14 anos
Duração: 75 min
​Link:@pandemicacoletivo

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