Foto: Murilo Hauser
Deixará saudades das saudades
“Trilha sonoras de amor perdidas” é o segundo espetáculo da trilogia pop da Companhia Sutil, grupo de teatro de Curitiba/PR, fundado em 1993, sendo que o primeiro foi o impossível de esquecer “A vida é cheia de som e fúria”, de 2000. O trio de sucesso Felipe Hirsh, Guilherme Weber e Beto Bruel, juntos em mais essa produção, são chaves de entrada para uma análise sobre essa obra que engrandece a programação do 6º Palco Giratório, evento produzido pelo SESC/Porto Alegre-RS.
Resultado de um processo de pesquisa sobre as histórias de Thurston Moore, Kim Gordon, Lee Ranaldo, Steve Shelley, Dean Wareham, Dan Graham, John Zorn, Jim O` Rourke, Elizabeth Peyton, Arthur Jones, Jason Bitner, Rob Sheffield, Raymond Pettitbon, Greil Marcus, David Shields, Lou Reed, Giles Smith, entre outras, a verborrágica produção é quase nada imagética e bastante sonora, como já aponta no título. São três horas de conversa sobre música pop, sobretudo acerca de títulos famosos nos anos 80 e 90, cujo diálogo com o espectador se estabelece de forma inusitada e brilhante. Felipe Hirsch, o diretor, é um dos responsáveis pelo prazer dessa conversa. Felizmente, não é único.
Um apartamento de um homem solteiro (Guilherme Weber) por volta dos quarenta anos, que veste camiseta e jeans é lugar onde ação se dá. Esse homem, alto, bonito e sensível, revira caixas de papelão, tirando delas livros, discos, CDs e fitas cassetes. Seu instante-que-dura-para-sempre se localiza há quase duas décadas, quando ele conheceu a única mulher que amou e com quem se casou. Finda a apresentação dos personagens, do lugar, do tempo e da situação básica, conhecemos Soninha (Natália Lage) e seu esforço sutil de tornar-se inesquecível. A dramaturgia acontece de forma a manter sempre duas pessoas no discurso: Guilherme Weber interpreta um personagem que viaja no próprio passado e se encontra quase vinte anos antes. Em tese, está a reflexão sobre o quão de nós de hoje havia no nós de ontem e vice-versa. O resultado, que permanece imanente durante todo o período da assistência, fica forte e ávido por nos fazer chorar, sorrir, tervontade de levantar, beber e fumar, enfim, fazer algo, agir. Na grade de programação teatral porto-alegrense, e por que não brasileira?, é comum ver peças “mofadas”, as quais assistimos para contemplar um modelo, um gênero, uma forma que outrora foi interessante, mas que pouco diz aos dias atuais. Nessa produção da Companhia Sutil, o processo é inverso: paira o sentimento de que nós é que somos mofados diante das coisas que outrora planejamos ser.
Guilherme Weber, e também Natália Lage, criam rápida empatia com o público. O figurino é causal, a movimentação é causal, o tom é casual. Percebe-se que há um arranjo no preenchimento do palco, mas o discurso corporal atua no sentido de esconder o ensaio e propor a ilusão de que tudo acontece de forma espontânea, no que obtém sucesso pleno, apesar da apresentação a que assisti ser a estreia oficial da peça. As conseqüências são vistas no estabelecimento da linguagem de “Trilhas sonoras de amor perdidas”: há coerência e coesão em tudo aquilo que une a história e o seu jeito particular de contá-la. A assistência ouve, sem pausa, nomes de canções, bandas, compositores, letras, bandas e títulos que talvez nunca tenha ouvido antes, mas aceita o acordo de que, sim, tudo aquilo fez parte do passado que compartilhamos com o protagonista, não importando a idade que tenhamos. O mesmo acontece com os lugares, os empregos, as tensões pelas quais os personagens passam, que talvez não sejam as mesmas pelas quais passamos. O teatro, que então promove o diálogo de igual para igual, se manifesta na forma como os atores fazem desaparecer o texto e todas as demais possíveis barreiras, produzindo um pouco do pó mágico que os bons artistas (e as boas obras) conseguem.
O texto pode ser considerado difícil, porque é descritivo demais e narrativo de menos. Escondê-lo, felizmente, é mérito dos atores, grupo em que se inclui Maureen Miranda e Carolina Foquemont, em especiais e pequenas participações. Ambas, ao tomar parte da cena, oxigenam o ambiente e permitem ao espectador fruir a obra com um pouco menos de absorção e um pouco mais de criatividade. Num constante direcionamento vertical, Hirsch, Weber e Lage levam o público para dentro de seus personagens, mas Miranda e Foquemont ratificam os acordos com a plateia na medida em que tornam a história da ficção mais parecida com as histórias da não-ficção – as nossas, talvez. Curitiba pode, assim, ser Porto Alegre, o Ocidente pode ser o bar da João Telles, os ipês podem ser os da Av. Venâncio Aires, a loja de discos alternativos pode ficar abaixo do Viaduto Otávio Rocha. Essas possibilidades, que foram belamente apresentadas, são o remédio contra a estagnação que acontece no final do primeiro ato, quando o texto parece mais verborrágico do que bom. Elas dão ritmo aos momentos em que já entendemos a proposta, já relacionamos os signos e estamos prontos para avançar, mas, apesar disso, pouco andamos. Emocional, o segundo ato acontece apoiado nas construções anteriormente feitas.
Hisch conseguira, junto de seus atores e de sua equipe, estabelecer uma sintaxe que deixou o espetáculo fluido. Entre todos os elementos arregimentados nessa estrutura cheia de eficientes acordos, a iluminação é o que mais se destaca. Bruel, que assina também a iluminação do não menos excelente “Memórias da água”, oferece ao espetáculo um personagem a mais. Depois de já ter participado de forma discreta, mas potente de várias construções de cena, num determinado momento, mini brutes são acesos vagarosamente sobre a plateia. A situação ficcional do palco invade a audiência, cresce sobre nós, nos obriga a fechar os olhos e olhar para dentro, onde a catarse está agindo ferozmente. Blackouts, por sua vez, ao mostrar a ausência da luz, escondem o que deve ser visto pela nossa imaginação. As diversas zonas do palco e da história são estabelecidas como parte da contagem e não apenas como instrumentos dela, o que é de notório valor.
Em todos os aspectos, criteriosamente considerados na viabilização da peça, Hirsch e todos os responsáveis maiores por ela oferecem momentos de absoluto contentamento estético. A produção, que marca por nos fazer sentir saudades de nós mesmos, deixará saudades das saudades que nos faz sentir.
*
Ficha técnica:
Criação: Sutil Companhia
Produção e realização: Sutil Companhia de Teatro
Direção geral: Felipe Hirsch
Elenco: Guilherme Weber, Natália Lage, Maureen Miranda e Carolina Foquemont
Co-direção: Murilo Hauser
Cenografia: Daniela Thomas e Valdy Lopes
Iluminação: Beto Bruel
Figurinos: Veronica Julian
Trilha sonora pesquisada: Felipe Hirsch
Assistência e operação de iluminação e vídeo: Sarah Salgado
Tradução do material original de pesquisa: Ursula e Erica Migon
Assessoria de imprensa: Vanessa Cardoso – Factoria
Design gráfico: Maria Andrade
Assistente de produção: Bruno Girello
Produção executiva: Marcelo Contin
Coprodução: Leandro Knopfholz – Parnaxx
Duração do espetáculo: 180 min
Gênero: drama/comédia
Classificação etária: 14 anos
* Texto escrito em maio de 2011 por ocasião do 6º Festival Palco Giratório do SESC/RS
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Bem-vindo!