domingo, 28 de agosto de 2016

Decadência (RJ)

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Foto: divulgação


Aline Fanju e Erom Cordeiro

Com ótimo texto e excelentes atuações, Victor Garcia Peralta remonta “Decadência”

“Decadência”, do inglês Steven Berkoff, infelizmente termina sua primeira temporada hoje no Teatro de Arena do Espaço SESC Copacabana. A montagem está excelente! Aline Fanju apresenta um ótimo trabalho de atuação, mas Erom Cordeiro tem aqui, talvez, o melhor trabalho de sua já longa carreira como ator. Os dois surgem em cena dirigidos por Victor Garcia Peralta que, desde “Quem tem medo de Virgínia Woolf?” não assinava um espetáculo tão magnífico. Na peça, questões relativas a traição conjugal são motivo para, através de dois casais de personagens, vir à tona um retrato de mundo em que valores sociais entram em crise. Vale muito a pena correr parar assistir!

Excelente texto de Steven Berkof
O texto foi escrito por Steven Berkoff e produzido por ele que atuou na própria peça em 1981. A Inglaterra estava no início do governo da primeira ministra Margareth Thatcher (1925-2013), célebre pela quase invenção do neoliberalismo. Nesse conceito de administração, as privatizações e o arrocho fiscal, na constituição de um Estado com participação mínima, foram as medidas através das quais o capitalismo venceu de vez o socialismo. O resultado foram duas décadas de expansão econômica das grandes empresas mundiais e a substituição de um universo polarizado entre capitalismo e socialismo por outro entre poucos ricos e muitos pobres. “Decadência”, num tom visionário de denúncia, não partia dos movimentos sociais como era voga, mas estava, já naquela época, preocupado em pautar o consumismo exacerbado como capaz de levar a Europa, após “o fim da festa”, à bancarrota. Thacher saiu do poder em 1990, as ditaduras latinas também no mesmo período. Tanto a esquerda como a direita se voltaram para o centro e o ocidente acabou vendo o crescimento da China. Verdadeiramente, apesar de exceções pontuais como a Grécia e a Argentina, a falência ainda não aconteceu, mas o medo mantém o texto atual trinta e cinco anos depois, o que revela seu preciosismo.

De um lado, Steve e Helen são um casal de amantes que se esbanjam entre drogas, álcool, sexo livre, orgias gastronômicas e artigos de grife. De outro, Sybil, esposa de Steve, e o investigador Les se dedicam a encontrar meios de encurralar os dois primeiros. Na elogiada estrutura dramatúrgica (o texto original é cheio de rimas, palavras rebuscadas e de composições frasais complicadas), quanto mais os quatro personagens se voltam uns para os outros, mais eles se opõem ao mundo que gira em seu redor. (Thatcher, assim como Fernando Henrique Cardoso e agora Michel Temer, foi uma resposta conservadora às crises sociais - assim como Lula, Obama e Chávez já foram respostas humanistas às crises capitais.) Em outras palavras, o discurso de “Decadência”, cena após cena, ao afinar a posição de Steve, Helen, Sybil e de Les, afina também a oposição de quem lhos assiste. O grito deles pelo direito a um lugar privilegiado em uma sociedade “higienizada” enfurece sobretudo quem tem um pingo de consciência política no público. Em termos de narrativa, esse feito, além de destacar uma metodologia de extrema complexidade capaz de nutrir valorosa reflexão, ativa a atenção, mantendo fluido o diálogo entre palco e plateia.

“Decadência”, que virou filme em 1994, teve uma versão brasileira muito elogiada na época, dirigida pelo mesmo Victor Garcia Peralta, no fim dos anos 90, com Beth Goulart e com Guilherme Leme Garcia no elenco. Pode ser interessante comparar a sociedade que viu aquela montagem e essa que agora tem a oportunidade de ver. Em 1999, Fernando Henrique Cardoso estava no primeiro ano de seu segundo mandato. A estabilidade econômica conseguia disfarçar, naquele período, as perdas sociais que só foram chamar a atenção pública do Brasil através das edições do Fórum Social Mundial a partir de 2001. Hoje, dezessete anos depois, a complexidade da situação política do país, se talvez impede que determinada posição seja efetivamente tomada, expõe a necessidade de uma constante reflexão sobre o tema. Ou seja, essa montagem de “Decadência” não só é obra a se ver, mas é obra que nos vê e pode promover, se lhe ajudarmos, a nós nos vermos também. Tudo isso é excelente!

Vibrante direção de Victor Garcia Peralta e excelentes atuações
A direção de Victor Garcia Peralta, nessa montagem, é um dos seus melhores trabalhos. Tudo acontece através dos dois atores, de um tablado acolchoado e de um vibrante desenho de luz. Não há qualquer objeto em cena, nem trocas de figurino, tampouco entradas e saídas. O palco, em mãos habilidosas, mostra-se lugar artisticamente potente e rico. Ao longo da encenação, é como se diversos pequenos espetáculos fossem acontecendo, o que revela pequenas unidades de ação que, se aparentemente independentes, atribuem um sentido profundo para o todo. A direção de movimento é de Márcia Rubim.

“Decadência” começa com cenas cheias de partituras corporais: expressões muito aparentes, movimentos cronometrados, entonações vocais variantes. Tudo parece vazio porque dado demais à forma e portanto sem exploração perceptível do conteúdo. Mas então chega-se a um novo panorama. Nele se percebe que essa concepção inicial servia a uma crítica, através do teatro farsesco, aos hábitos burgueses da sociedade que não quer ser confundida com a trabalhadora embora também não seja aristocrática.

O ritmo evolui. Percebe-se a exploração dos pecados capitais, sente-se o modo diferente como Erom Cordeiro e Aline Fanju passam a reagir um ao outro. Menos gestos, expressões mais contidas, entonações mais invariáveis surgem em um novo meio de dar a ver o discurso. O ator, talvez em seu melhor trabalho, apresenta exuberante número de possibilidades expressivas diversas. A atriz, com força, ganha o público pouco a pouco até vencer o desafio de se equilibrar na contracena. Os dois oferecem-se íntegros à conquista dos merecidos aplausos finais, que vêm.

O cenário de Dina Salem e o figurino de Carol Lobato colaboram pontualmente, mas a luz de Felipe Lourenço tem mais espaço para aparecer e consequentemente se desafiar. O quadro, nutrindo-se a partir de jogo sutil e evolutivo, varia em franca participação nos méritos do ritmo. Tudo, em valorização do texto e das interpretações, destaca um teatro que é lindo pelo homem e sua plástica natural.

“Decadência”, um dos espetáculos mais vibrantes do ano no Rio de Janeiro, precisará voltar em cartaz em breve. Tomara!

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Steven Berkoff
Tradução: Maria Adelaide Amaral e Leo Gilson Ribeiro
Direção: Victor Garcia Peralta
Elenco: Erom Cordeiro e Aline Fanju
Cenário: Dina Salem
Figurinos: Carol Lobato
Direção de Movimento: Márcia Rubim
Luz: Felipe Lourenço
Direção de Produção: Carlos Grun
Idealização: Victor Garcia Peralta e Erom Cordeiro
Realização : Bem Legal Produções e SESC Rio
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

sábado, 27 de agosto de 2016

Quatro janelas para o paraíso (RJ)

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Foto: Renato Mangolin


Anna Virgínia Lopes, Felipe Porto e Rogério Garcia

Felipe Porto e Jojo Rodrigues se destacam em primeiro trabalho de novo grupo
“Quatro janelas para o paraíso” é o primeiro espetáculo da Surreal Companhia de Teatro, coletivo formado a partir do Ateliê Alexandre Mello e da residência Vem! Ágora, essa que coordena a programação do Teatro Ipanema atualmente. O espetáculo, com um elenco cujos trabalhos têm resultados muito díspares, apresenta maiores méritos nas atuações de Felipe Porto e de Jojo Rodrigues, no cenário assinado pelo diretor e no figurino de Tiago Ribeiro. O texto, uma edição estranha de quatro peças curtas do americano Tennessee Williams, revela o exercício de escrita do grande dramaturgo, ele que é autor dos famosos “À margem da vida”, “Um bonde chamado desejo” e “Gata em teto de zinco quente”. A peça fica em cartaz até 5 de setembro.

Exercício dramatúrgico de Tennessee Williams
A dramaturgia de “Quatro janelas para o paraíso” é composta por quatro histórias de Tennessee Williams (1911-1983). Elas foram cortadas e o espectador vai acompanhando as quatro, uma por uma, aos poucos.

Em “O grande jogo” (“The big game”), escrita entre 1935 e 1937, o autor narra a história de Davi (Dave) (Felipe Porto), que está internado em um hospital por problemas no coração. Esse garoto pobre divide o quarto com um famoso e rico jogador de futebol (Yuri Farage) que se recupera de uma lesão na perna e, depois, com um velho (Rogério Garcia) que sofre de complicações na região do cérebro. Em volta deles, médicos, enfermeiras e todo um conjunto de problemáticas relacionados ao serviço de saúde. Através do protagonista, o espectador terá a chance de refletir sobre a eternidade.

Em “Verão no lago” (“Summer at the lake”), escrita em 1937, há uma Mãe (Jojo Rodrigues) e seu filho Donald Fenway (Pedro Lima). Ela joga sobre ele toda sua decepção com a vida e, ao lado da empregada Anna (Alana Ferrigno), o vê nadar cada vez mais para longe no lago próximo a casa onde moram. Em “O quarto rosa” (“The pink bedroom”), escrita em 1943, um homem (Rogério Garcia) está visitando Helen, sua amante (Lays Ariozi), e ouve dela sua vontade em ter os mesmos direitos que a esposa dele. Na adaptação, a cena passou para um salão de strip-tease, onde outros artistas se apresentam.

“Esses são os degraus que você tem que cuidar” (“These are the stairs you got to watch”), escrita entre 1941 e 1953, se passa em um velho e grande cinema, cujas galerias estão fechadas para o público. Carlos (Carl) (Helio Barcia) é um lanterninha que, treinando um Garoto (Felipe Porto) recentemente contratado, avisa-o de que não deve deixar ninguém subir para lá. O motivo da regra, lançada pelo afetado Sr. Jaci (Mr. Kroger) (Rogério Garcia), dono do cinema, é proteger a fama do estabelecimento contra a maledicência, pois sabe-se de que, no meio das sessões, casais buscam os lugares mais fortuitos para namorar mais à vontade. Do funcionário mais antigo ao mais novo, vêm decepção e a vontade de reagir contra a opressão.

A dramaturgia, principalmente assim editada, leva a uma perda da força poética de cada uma das histórias. Ao nivelar os personagens Davi, Mãe, Helen e Carlos, a versão de Alexandre Mello exibe mais a fórmula dramatúrgica do neorrealista Williams do que a poética de seus textos. Em outras palavras, fica cansativamente fácil demais reparar que, nessas quatro histórias, há sempre alguém mais fraco reclamando para outro menos fraco a partir do que pensou ser a vida. E todos, apesar das lamúrias, serão pessimistamente condenados ao final com o abandono. Em termos de dramaturgia, “O grande jogo” é superior às demais pelo maior número de personagens e pelas opções que isso atribui ao jogo. “Degraus”, por outro lado, tem um final mais irônico e interessante. Em todas, sobram as frases de efeito no ápice que, dadas as profundezas das situações construídas nas peças longas do autor, parecem superficiais aqui embora não lá. Talvez seja por isso que, em vida, foram pouco valorizadas por ele.

Jojo Rodrigues e Alana Ferrigno
Iluminação, cenário e figurino são a melhor parte do espetáculo
A direção de Alexandre Mello, talvez tentando driblar o tamanho do feito dramatúrgico (e seus decorrentes problemas de ritmo) e os desníveis negativos das atuações, afastou “Quatro janelas do paraíso” da poética neorrealista. Não há tempos mortos, nem respiros, mas, em seu lugar, Carmen Miranda, expressão corporal e teatralidade (uso alternativo de signos). O resultado é que Tennessee Williams parece inadequado de um lado e Alexandre Mello parece “forçar a barra” de outro e, assim, os dois não se entendem. Com grandes falas, Anna Virgínia Lopes (João e bilheteira), mas principalmente Felipe Porto (Davi e Garoto) e Jojo Rodrigues (Mãe), também por estarem parados em quase todas as suas cenas, conseguem tirar melhores possibilidades de suas oportunidades, aproveitando bem as palavras para se comunicarem com o universo do autor e com o público da peça.

Rogério Garcia, presente em todos os quadros, não aprofunda qualquer um de seus vários personagens. Lays Ariozi mostra excelente uso do corpo, mas sua Helen não deixa ver nada além disso. Com péssima dicção, não se entende o que Helio Barcia, Alana Ferrrigno e o que Pedro Lima dizem.

A luz de Renato Machado, o cenário de Alexandre Mello e o figurino de Tiago Ribeiro são a melhor parte de “Quatro janelas para o paraíso”. Com detalhes bem explorados, o quadro tem seus valores estéticos elevados no uso desses elementos da cena de modo rico, potente e inteligente.

“Quatro janelas do paraíso” é o primeiro trabalho da Surreal Companhia de Teatro. Que venham outros!

*

Ficha técnica:
Dramaturgia livremente inspirada nos personagens e peças curtas de Tennessee Williams
Direção: Alexandre Mello
Direção de produção: Rogério Garcia
Elenco: Alana Ferrigno, Anna Virgínia, Felipe Porto, Helio Barcia, Jojo Rodrigues, Lays Ariozi, Rogério Garcia, Pedro Lima e Yuri Farage
Assistentes de produção: Lays Ariozi, Alana Ferrigno
Iluminação : Renato Machado
Figurinos: Tiago Ribeiro
Cenotécnico: (Didi) Waldir Alves Nunes
Fotografia : Renato Mangolin
Equipe de criação de cenário e figurinos da Surreal Cia de teatro: Pedro Lima e Felipe Porto

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Ordinary Days - um musical off-Broadway (RJ)

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Foto: João Pedro Marinho


Fernanda Gabriela e Hugo Bonemer

“Ordinary Days”, um dos melhores destaques no inverno carioca

“Ordinary Days”, do americano Adam Gwon, é o excelente musical, idealizado pela Loki Entretenimento, em sua primeira versão brasileira produzida pela Cerejeira Produções e pelo CEFTEM. A montagem, que é dirigida por Reiner Tenente, vem agora na íntegra depois de uma pocket, que foi apresentada em julho de 2015 no Leblon. No elenco em excelentes trabalhos, Fernanda Gabriela, Hugo Bonemer, Julia Morganti e Victor Maia se revezam nos papeis ao longo da temporada com Caio Loki, Gabi Porto, Mau Alves e com Tecca Ferreira, que, quando não estão nos papeis principais, atuam no coro. A pianista Arianna Pijoan é um dos maiores destaques desse espetáculo tocante que faz a diferença na programação teatral no Rio nesse inverno. A peça fica em cartaz no Teatro Serrador, na Cinelândia, até 28 de agosto.

Dramaturgia sobre conexões
Escrita entre 2006 e 2008, a peça fez sua primeira temporada na Off-Broadway no outono de 2009. Na história, quatro personagens – Warren (Victor Maia), Claire (Fernanda Gabriela), Jason (Hugo Bonemer) e Deb (Julia Morganti) – são jovens solitários em Nova Iorque em busca de algo que dê sentido às suas vidas. Há pouco, os namorados Claire e Jason resolveram morar no mesmo apartamento sem talvez estarem certos de que estão preparados para esse passo no relacionamento. Em outro canto da cidade, a estudante Deb está desesperada por ter perdido seu caderno com anotações para sua tese, mas ele felizmente é encontrado por Warren, um jovem ajudante de artista, e, assim, eles têm um primeiro encontro. 

“Ordinary Days” é sobre conexões, sobre a capacidade do ser humano de unir acontecimentos diferentes de sua vida e fazer disso uma oportunidade para dar sentido a ela. Ou sobre a habilidade em se conectar uns com os outros e com os espaços onde se vive, afastando o medo da solidão ou, pelo menos, chegando a ela de um modo menos duro. O autor Adam Gwon tinha vinte e seis anos ao terminar mais um curso de dramaturgia para musicais quando decidiu trabalhar sozinho pela primeira vez em um projeto unicamente seu, começando por compor as canções e só então ver o que elas suscitariam. Na ocasião, ele estava lendo o romance “Mrs. Dalloway”, que a inglesa Virgínia Woolf lançou em 1925 e que serve, entre outras coisas, para se refletir sobre como fatos diversos da vida cotidiana se relacionam e podem (ou não) interferir na existência do ser humano.

Nos personagens criados por Gwon, paira a emergência das pessoas em encontrar o sentido de sua existência, essa que é tão compartilhada na contemporaneidade sedenta por cliques, curtidas e visualizações rápidas. As cenas desse musical são metáforas para as relações também fragmentadas vividas principalmente em cidades grandes, como o Rio de Janeiro, por exemplo. Os namorados Jason (Hugo Bonemer) e Claire (Fernanda Gabriela) decidem morar juntos, mas a necessidade de lugar entre as coisas dela para a mudança dele faz o casal pensar sobre o espaço que é preciso deixar para que alguém entre em nossa vida. “I´ll be here”, uma das últimas entre as dezenove canções que fazem parte desse espetáculo, remete ao buraco deixado pelas pessoas falecidas em 11 de setembro de 2001, mas bem pode ser associada a qualquer outro acontecimento também avassalador. Consciente da dor causada pela desconexão, Claire talvez tenha medo de se conectar novamente, mas o apaixonado Jason não sabe disso ainda e não entende porque, para a namorada, tudo parece ser tão difícil.

Na outra ponta da Big Apple, e também da dramaturgia, quando o otimista Warren (Victor Maia) marca com Deb (Julia Morganti) para conhecê-la e devolver-lhe seu caderno de anotações que ele encontrou perdido, ela estava desesperada. Deb, cuja pesquisa acadêmica é sobre Virgínia Woolf, retornou aos estudos depois de ter fracassado na vida profissional. Sem suas anotações, ela não poderia terminar o texto, o que seria um fracasso também em sua vida como estudante. No encontro marcado por Warren, Deb acha estranho tanta alegria nele, que tem sonhos, mas não tem um projeto para realizá-los. Insatisfeito como ajudante de um artista plástico, o tímido Warrren ainda acredita que é possível fazer algo relevante e que marque sua existência entre as pessoas, o que é inspirador tanto para Deb quanto para o público desse musical. Ele olha para fora e ela para dentro e o cruzamento entre eles pode fazê-los melhor. Enquanto observam um quadro, no Metropolitan Museum of Art, ela lembra de que, através de um raio-X, é possível ver os percursos trilhados pelo artista antes de finalizar a tela, mas Warren pergunta: “Por que eu deveria me perguntar sobre o que não está lá?” Eis aí meios diferentes de se conectar com o mundo.

Amor e amizade, medo e coragem, decisões que se fazem e situações as quais se deve conformar são qualidades do universo humano que Adam Gwon convida a contemplar. A organização em formato de ópera, todo cantado, leva o espectador ao realismo através de uma poesia sublime que encanta, comove e nutre, principalmente porque aqui, nessa versão brasileira, é tão bem defendida. Aplausos!

A brilhante participação da pianista Arianna Pijoan
A direção de Reiner Tenente, assistida por André Viéri, articula as cenas vencendo com galhardia os desafios de uma composição metrificada. O jogo, que se dá em cada cena e no modo como elas se relacionam ao longo da apresentação, dialoga com a música unicamente interpretada pelo piano elétrico tocado por Arianna Pijoan no centro do palco. Em primeiro lugar, cumprindo o previsto pelo autor no texto, toda a música dessa peça é tocada ao vivo e por um único pianista que atua quase como um quinto personagem. Ele, o músico - talvez uma espécie de Deus menos atuante do que na Idade Média, mas ainda assim plateia do que fazemos por aqui em nosso tempo -, usa os sons eletrônicos de melodias cheias de ritmo mas não menos valorosos acordes para preencher os vazios existenciais da grande metrópole. São esses vazios o lugar comum onde esses personagens tão diferentes se encontram, o que os une e onde nasce toda a encenação proposta por Tenente e por Viéri. Na superfície, o coro faz do invisível um universo paralelo talvez só não mais profundo porque não é possível demorar-se no todo quando se considera a parte.

Em segundo lugar, está o brilhantismo de Arianna Pijoan, que fala as palavras musicais de Gwon ao longo de todo o espetáculo. Delicada e forte, sua participação em cada cena convive com as atuações de modo elegante, comedido, pontual e enormemente valoroso, como também o foi a de Marcelo Farias na versão primeira dessa produção. “Ordinary Days”, assim, não sendo um musical de grandes cenários que entram e saem nem de centenas de figurinos brilhantes ou de coreografias complicadas, chega ao ponto através da maravilha que é a boa música em excelente interpretação.

Victor Maia e Julia Morganti

Belo conjunto de atuações
Nas interpretações cênicas, o carismático Victor Maia (Warren) apresenta bom trabalho ao lado da ótima potência musical e divertidíssima performance de Julia Morganti (Deb) na viabilização do núcleo mais cômico da narrativa. Em paralelo, há as belíssimas vozes de Hugo Bonemer (Jason) e de Fernanda Gabriela (Claire), com destaque para essa última, na apresentação dos personagens mais dramáticos. A enorme qualidade das intepretações dos quatro com o preciosismo das vozes de Bonemer e sobretudo de Gabriela elevam os méritos de “Ordinary Days”, situando a produção como um dos melhores momentos da programação teatral na temporada.

Paira ainda a coerência estética dos figurinos de Renan Mattos, optando por uma paleta de cores que versa sobre vários tons, mas sempre em níveis mais escuros. Através deles se vê a solidão dos pequenos personagens submersos pelos prédios da cidade alta e veloz. Em destaque, a unanimidade das botas de cano curto que oito dos nove intérpretes usam talvez como modo de se embrenhar pela vida versus o medo que Claire sente em se jogar a ela. A luz de Renan Mattos e o cenário fazem boas colaborações, mas sem grandes méritos.

Seja em Manhattan para Adam Gwon ou no mundo para todos aqueles que, de alguma forma, produzem versões de “Ordinary Days”, esse projeto é meio pelo qual muitos jovens artistas se mostram no meio artístico e confirmam suas habilidades cênico-musicais. Adiante disso, está a oportunidade do público de conhecer a si mesmo e afinar seus olhar para as pequenas coisas do seu dia a dia no Rio de Janeiro, onde a grandiosidade da natureza e das construções convive com pequenos panfletos, pequenas esquinas e pequenas pessoas, mas não menores sob qualquer aspecto. Evoé!

*

Ficha Técnica
Texto e Música: Adam Gwon
Diretor: Reiner Tenente
Diretor musical: Marcelo Farias
Assistente de direção: André Viéri
Pianista: Arianna Pijoan
Produção: Cerejeira Produções e CEFTEM
Idealização: Loki Entretenimento
Iluminação: Rubia Vieira
Figurino: Renan Mattos
Designer de Som: Rodrigo Oliveira

Elenco
Hugo Bonemer, Gabi Porto, Victor Maia, Caio Loki, Fernanda Gabriela, Julia Morganti, Mau Alves e Tecca Ferreira se revezam nos papeis dos protagonistas.

Boa noite, professor (RJ)

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Foto: Guga Melgar


Ricardo Kosovski e Nina Reis
O Tablado faz 65 anos com ótimo texto de suspense

O ótimo “Boa noite, professor”, com texto e direção do crítico Lionel Fischer e de sua filha, a atriz Julia Stockler, marca a retomada do Teatro O Tablado, na comemoração dos 65 anos dessa importantíssima escola, ao horário nobre na grade de programação teatral carioca. Na peça, uma aluna de curso superior vai à casa de um professor querendo convencê-lo a orientar seu trabalho de conclusão sobre psicopatia. Os papéis são brilhantemente interpretados Nina Reis e por Ricardo Kosovski. Vale a pena ver! O espetáculo fica em cartaz até o dia 25 de setembro no Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro.

Dramaturgia assinada por Lionel Fischer e por Julia Stockler
Difícil divulgar uma análise crítica desse espetáculo sem antecipar algumas informações que o espectador pode considerar caras durante a fruição. A peça se passa na casa do professor Paulo (Ricardo Kosovski), um apartamento de frente para o mar. Ela começa com a chegada de Verônica (Nina Reis), que vem nervosa com a possibilidade que ela almeja de que o respeitado mestre a oriente em sua monografia de conclusão de curso. A pesquisa dela é sobre a psicopatia.

O diálogo inicial deixa ver que os dois não se conhecem bem e que o professor, com relutância, aceita receber a aluna em sua casa com reservas. Ele está às portas de sua aposentadoria e considera diminuir o ritmo de trabalho nessa fase de sua carreira. Com estranhamento, em um breve momento em que a deixa sozinha em sua sala, ele surpreende a visitante mexendo em fotografias antigas que ele guarda. Aos poucos, a dramaturgia de Fischer e de Stockler revela que há um segredo por trás dos reais motivos no interesse de Verônica por Paulo. Na metade da peça, que dura breves cinquenta minutos, o espectador saberá qual é ele bem como seus meandros.

Verônica traz, entre vários objetos, um diário de alguém próximo a ela. O último texto registrado nele, que nunca foi lido por ninguém além dela, foi escrito logo antes de seu assassinato. O autor faz referências a um professor, cujas ações permitem considerar um pernicioso jogo de poder entre opressor e oprimido. Isso, mas também as outras informações de “Boa noite, professor”, acende o suspense sobre o que une Verônica e Paulo.

Os diálogos, econômicos e fortes, atribuem valores bastante positivos à dramaturgia da peça. Ela só não é melhor porque aparentemente há uma desigual força à ação dramática em relação à natureza dos personagens. Em outras palavras, o melhor de uma história de suspense é a manutenção da sede do espectador em saber como ela termina. “Boa noite, professor”, porque é ótimo, poderia durar bem mais. Várias reviravoltas, apoiadas sobre melhores nuances de Verônica e de Paulo, poderiam garantir um final mais saboroso do que já está.

Excelentes trabalhos de Nina Reis de de Ricardo Kosovski
Nina Reis (Verônica) e Ricardo Kosovski (Paulo), bem dirigidos pela dupla de dramaturgos, apresentam excelentes trabalhos de interpretação. Reis, com uma sedutora articulação de expressões que deixam ver um misto de fragilidade e de força, nutre a presa que depois se torna à algoz e, por fim, pode vir a ser outra coisa. Kosovski, no empenho de marcas sustis e enormemente valorosas à cena – que é vista pelo público quase dentro da sala de seu personagem –, vai em direção oposta com mesmo mérito. A direção de Lionel Fischer e de Julia Stockler, em um roteiro delicado de ações, promove uma situação cheia de complexidade. É a força dessa que, no que diz respeito à encenação, garante a atenção do público sobre trabalho tão qualificado dos atores.

“Boa noite, professor” tem méritos ainda no modo como os demais elementos defendem a proposta. O cenário de José Dias, com poucos recursos, promove tudo o que é necessário para a percepção do todo sem pesar a narrativa habilmente. Com mesma força, o figurino de Ana Carolina Lopes, a trilha sonora de Tato Taborda e a iluminação de Aurélio de Simoni envolvem a cena, oferecendo com o essencial e justo as melhores colaborações de seus materiais. O todo se constitui em panorama fluido que apoia a vontade do público em gastar mais tempo com esses personagens, como já se disse.

Nos seus 65 anos, O Tablado abre nova pauta
“Boa noite, professor”, enfrentando um tema árduo com ações pontuais, faz ver Lionel Fischer e Julia Stockler como uma dupla de dramaturgos que merece atenção. A essa, espera-se que eles respondam com mais trabalhos. A essa valorosa pauta reaberta na oferta de teatro carioca, o público deve dar sonoras boas vindas e um pedido de que não se feche. Parabéns aO Tablado por seus 65 anos!

*

FICHA TÉCNICA
Texto e Direção: Lionel Fischer e Julia Stockler
Elenco: Ricardo Kosovski e Nina Reis
Cenário: José Dias
Figurino: Ana Carolina Lopes
Trilha Sonora: Tato Taborda
Iluminação: Aurélio de Simoni
Direção de movimento: Renato Linhares
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Fotos divulgação: Guga Melgar
Produção Executiva: João Sant’Anna
Direção de Produção: Fernando do Val
Realização: Teatro O TABLADO

Clarice Lispector & eu – o mundo não é chato (RJ)

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Foto: divulgação


Rita Elmôr

Rita Elmôr em excelente monólogo sobre Clarice Lispector

“Clarice Lispector & eu – o mundo não é chato” é o excelente monólogo em que Rita Elmôr interpreta histórias de Clarice Lispector e narra sua relação com a escritora. Com habilidade e segurança, dirigida por Rubens Camelo, a atriz vence o árduo desafio muitas vezes tentado e raramente vencido no Rio de Janeiro de atualizar bem o que é uma literatura enormemente densa em teatro. Essa delícia de espetáculo está em cartaz no Teatro Poeirinha, em Botafogo, até o dia 30 de outubro. É correr para poder assistir várias vezes!

A valorização da palavra
A peça começa com a narrativa de um fato curioso. Na primeira produção profissional da carreira da atriz Rita Elmôr, em 1998, ela interpretava a ucraniana-brasileira Clarice Lispector (1920-1977). A caracterização era feita pelo maquiador João Roberto Pereira (1944-2014), o famoso Gilles, que maquiou a escritora nos seus últimos anos de vida. O resultado é que Elmôr ficava tão parecida com a personagem que as fotos de divulgação dessa peça, desde então e até agora, são frequentemente utilizadas como imagens da própria Clarice. Em outras palavras, muita gente publica fotos de Elmôr como se fosse Lispector.

Para além de uma óbvia reflexão sobre o uso (inadvertido) da imagem em tempos de explosão de conteúdo, “O mundo não é chato” propõe, como ponto de partida, uma sensação sobre de que modo possivelmente nos perpetuaremos na Terra. Esse desejo de alongar a existência, que aparece na cena dos coveiros em “Hamlet”, mas também, na grade atual de programação do Rio de Janeiro, no monólogo “Vaga Carne” e no musical “Ordinary Days”, é questão humana e, por isso, cara. É como ser humano que Rita Elmôr se anuncia como personagem de si mesma diante do público olhando para as narrativas de Clarice Lispector. E, porque a obra dessa escritora é um dos melhores exemplos de nossa literatura de pesquisa sobre o interior do homem, enquanto concepção estética de espetáculo teatral, esse é um grande feito.

A dramaturgia contempla também narrativas colhidas da obra de Clarice: trinta e seis recortes aprovados pela família da autora. “A paixão segundo G.H.” e vários contos são facilmente identificados. A beleza está no modo como Elmôr vence o desafio de atualizar isso para teatro. Sem recorrer ao impulso grosseiro de supervalorizar a ação, criando situações que às vezes nem existem como meios de fazer a interpretação negativamente se sobrepor à literatura, “O mundo não é chato” investe na sensibilidade introspectiva, no comedimento, na força da palavra, sustentando-se naquilo que Clarice era melhor: a reflexão. Versões teatrais da obra de Lispector são frequentes, e ficarão ainda mais numerosas em 2017 devido à celebração dos quarenta anos de falecimento da escritora. No entanto, é raro encontrar boas montagens, como “Simplesmente eu, Clarice Lispector”, com Beth Goulart; e “Silêncios claros”, com Esther Jablonski; e como essa aqui infelizmente.

Interpretação delicada e nobre de Rita Elmôr
Rita Elmôr, em cena, apresenta um trabalho de intepretação coerente com os méritos da dramaturgia. Sua presença é limpa, sem excesso de expressões, defendendo uma encenação que valoriza a introspecção, a delicadeza, a força que está por dentro. Os movimentos são sóbrios, os gestos reduzidos, tudo é muito cuidadoso. O resultado, com méritos à direção de Rubens Camelo, é que a relação entre o palco e a plateia privilegia o encontro compartilhado sem que um pareça mais importante que o outro. Similar ao que acontece na fruição literária, o espectador da peça tem tempo para experimentar os sentidos e se aventurar na narrativa.

O vídeo mapping de Paulo Denizot, que assina também o desenho de luz, e o figurino de Mel Akerman dividem os valores positivos da montagem como parte de uma estrutura equilibrada, elegante, nobre. Com fluidez, a encenação, através também desses elementos, se desenvolve com vistas não apenas a uma homenagem valorosa, mas a uma proposta original, que é potente e enriquecedora.

“Clarice Lispector & eu – o mundo não é chato” surge ao lado de uma exposição de fotos (Daniel Mattar) e de vídeos (Ricardo Chreem) que acontece no foyer do teatro. Nela, pode-se perceber parte da extensão do uso de imagem que é feito, no mundo, de Rita Elmôr como se ela fosse Clarice. A atividade contextualiza a proposta da peça.

Em tudo, esse é um belo trabalho! Aplausos!

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Clarice Lispector e Rita Elmôr
Dramaturgia, Trilha Sonora e Interpretação: Rita Elmôr
Direção: Rubens Camelo
Cenário, Luz e vídeo mapping: Paulo Denizot
Figurino: Mel Akerman
Costureira: Marenice Alcantara
Fotos: Daniel Mattar
Design Gráfico: Estúdio Quedesenholegal
Mídias Sociais: Ramon de Angeli
Legendas em Inglês: West Coast Languages
Assessoria Jurídica: Murilo Rabat
Assistentes de Direção: João Pontes (2ª fase) e Radha Barcelos (1ª fase)
Assistente de Produção, Operação de vídeo mapping e som: Raquel Simen
Direção Vídeos e Edição: Ricardo Chereem
Edição e finalização: Caio Garcia Grandi
Fotos Exposição: Daniel Mattar
Direção de Produção: Christiano Nascimento e Rita Elmôr
Produção: Art Hunter Produções
Realização: Ovo Produções Artísticas
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

sábado, 20 de agosto de 2016

As cadeiras (RJ)

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Foto: divulgação


Edi Botelho e Tássia Camargo

Primeira direção de Ney Latorraca é péssima

“As cadeiras”, de Eugène Ionesco, ganhou sofrida montagem nas mãos de Ney Latorraca que estreia em seu primeiro trabalho de direção. Problemas estéticos em opções difíceis fazem o belo texto naufragar apesar dos esforçados trabalhos de Tássia Camargo e de Edi Botelho na vigorosa defesa de suas interpretações. A peça está em cartaz no Teatro Cândido Mendes, em Ipanema, zona sul do Rio do Janeiro, até o próximo dia 28 de agosto.

A pobre primeira direção de Ney Latorraca
Escrita e apresentada em 1952, “As cadeiras” veio depois de “A cantora careca” (1950) e “A lição” (1951). Essas e outras peças do franco-romeno Eugène Ionesco (1909-1994), no início dos anos sessenta, inspiraram o teórico húngaro Martin Esslin (1918-2002) a apresentar o conceito de “Teatro do Absurdo”. Dentro dessa ótica, essas dramaturgias revelam uma concepção de mundo desprovido de lógica, sem conexão, onde suas criaturas pairam sozinhas com a responsabilidade de dar sentido às suas existências. As obras do gaúcho Qorpo Santo (1829-1883), do americano Edward Albee (1928), do irlandês Samuel Beckett (1906-1989), do espanhol Fernando Arrabal (1932) e do carioca Felipe Rocha, entre muitas outras, são plenamente passíveis de serem lidas dentro desse universo estético também.

Nessa montagem dirigida por Ney Latorraca, ou o texto de “As cadeiras” não foi entendido pelos realizadores em sua melhor potência, ou foi rejeitado por eles, que preferiram, ao adaptá-lo, um caminho mais fácil. As duas opções deixaram um trabalho árduo demais para o público, o que é uma pena.

Na peça, dois atores interpretam um Velho e uma Velha. Apesar do que eles dizem, não se sabe exatamente onde nem quando a história acontece, como também não se tem clareza sobre quem eles são. É possível apenas se supor de que se trata de um casal que vive junto há muito tempo. Ao longo da peça, eles propõem inúmeros jogos um ao outro de modo que suas sugestões vão sendo “compradas” pelo parceiro, desenvolvidas por ele e devolvidas em um processo de substituição. É um jogo de poder, de sedução, de alegria e também de dor. Personagens diversos vão sendo criados por um e por outro, ganham vida pelo estímulo de ambos e participam, por alguns momentos, do convívio entre eles. Tudo isso, muito relacionável a “Quem tem medo de Virgínia Woolf?”, de Albee, e a “Dias felizes”, de Beckett, estica as horas, espanta o tédio e contorna a solidão vivida por eles. E é essa a beleza que tornou célebre essa dramaturgia.

Da plateia dessa versão de “As cadeiras” de Ney Latorraca, tem-se a nítida (e negativa) impressão de que faltou dinheiro para contratar mais atores que fizessem os outros personagens da peça. Isso porque o Velho de Edi Botelho e a Velha de Tássia Camargo, de acordo com o texto, falam com o vazio de figuras inexistentes, mas como se de fato essas estivessem ali. Ou seja, a concepção de Latorraca não sublinha, na encenação, o lúdico, não deixa claro que o Velho e Velha sabem que estão sozinhos e que só estão dando força para algo que lhes proteja contra o desaparecimento. Não há jogo, mas a manipulação apenas dos sentidos mais superficiais de cada frase. Não há a poética trágica da solidão que faz rir e faz chorar escondida nos níveis profundos dos diálogos e que tão bem tratam da complexidade do mundo contemporâneo. Por isso, se nota que ou Latorraca não chegou a esses níveis, ou deles fugiu pobremente.

Uma única exceção em toda a peça - o que faz acreditar que Ionesco, se aqui perdeu a batalha, chegou a ganhar uma pequena guerra - é o momento da entrada do Imperador. Ele é um personagem criado pelo Velho. Diferente dos demais, a Velha tem dificuldade em vê-lo, em reconhecê-lo, isto é, em aceitá-lo dentro do jogo. No palco do teatro Cândido Mendes, nessa cena, Tássia Camargo busca em Edi Botelho maiores estímulos, o que não tinha acontecido e nem acontecerá em todo o resto de “As cadeiras”. Nesse pequeníssimo relance, está todo o cerne de Ionesco que, se tivesse sido desenvolvido, teria a montagem ganhado a chance de brilhar na programação teatral carioca.

As poucas oportunidades dos demais elementos
As interpretações de Edi Botelho (Velho) e de Tássia Camargo (Velha), limitadas por uma concepção empobrecedora de espetáculo, podem ganhar avaliação positiva dentro do pequeno espaço que tiveram. O registro realista, que quase não oferece algo ao absurdo, foi bem usado: intenções claras, dicção perfeita, tempos bem usados, corpos equilibrados, feições limpas, entonações ricas. São bons atores já muito reconhecidos e que merecem aplausos dentro do que lhes foi permitido fazer aqui. Esses méritos se estendem à direção de movimento de Regina Miranda.

A luz de Rogério Medeiros, a pesquisa musical e sonoplastia de Arthur Ferreira e o cenário de Edi Botelho, ainda mais limitados, podem ouvir que estiveram dentro da proposta, contribuindo com alguma beleza sem destaque negativo. O figurino de Carol Lobato, mantendo o quadro dentro do preto e do marrom em parceria com o cenário e com a luz, usa bem os corpos dos intérpretes, deslocando os personagens do tempo presente, mas sem desajustá-los. Isso tem o mérito de manter o Velho e a Velho coerentemente dentro do que parece ter sido o conceito.

O pior de “As cadeiras” é quando, aparentemente exaustos por um Ionesco mal feito, Edi Botelho e Tássia Camargo param a peça para tomar água. Na péssima adaptação de Valderez Cardoso Gomes, que traduziu o texto original, nesse momento, uma série de cacos ganham lugar: referências à ficha técnica, ao diretor, à dramaturgia. Tudo isso faz o público rir, mas de um jeito barato, grosseiro e decepcionante. Se eles estavam achando Ionesco chato, por que decidiram montá-lo?

*

Ficha Técnica
Texto: Eugène Ionesco
Tradução e adaptação: Valderez Cardoso Gomes
Direção: Ney Latorraca
Elenco: Tássia Camargo e Edi Botelho
Direção de Movimento: Regina Miranda
Figurino: Carol Lobato
Iluminação: Rogério Medeiros
Sonoplastia: Arthur Ferreira
Design Gráfico: Simone Grenier
Fotografia: Antonio Caetano
Relações Públicas/ Convidados: Liège Monteiro e Luiz Fernando Coutinho
Assessoria de imprensa: Liège Monteiro e Luiz Fernando Coutinho
Direção de Produção: Denise Escudero
Uma produção: Ney Latorraca, Tássia Camargo, Edi Botelho e Denise Escudero

Vaga carne (RJ)

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Foto: divulgação

Grace Passô

Grace Passô em excelente monólogo

O excelente “Vaga carne” é mais um vigoroso trabalho de Grace Passô em cartaz no Rio de Janeiro. O monólogo, de um modo lindo e forte, ataca o tema da impalpabilidade, daquilo que não se pode tocar, do que é devir, do que não se atualiza sempre, mas que, quando ganha feições humanas, pode correr o risco de se afeiçoar à vida. Com uma dramaturgia exultante e não menos ótimos trabalhos de direção e de interpretação, o espetáculo fica em cartaz na Sala Multiuso do Espaço SESC Copacabana até o dia 28 de agosto.

Belíssima dramartugia
A peça começa com uma voz audível e compreensível aos ouvidos humanos da plateia e que se apresenta como tal embora pontue sua capacidade de ser muito além disso. Ela, a voz, vem de algo (ou o é) que pode penetrar seres vivos e inanimados, corpos materiais ou abstratos, desse e de outros lugares, nesse tempo bem como em domínios atemporais. Nesse contexto, a dramaturgia ganha o espectador que sai, logo de início, em busca desse personagem, tentando identificá-lo enquanto se percebe sedento. O contorno da intérprete Grace Passô surge em um contraluz, oferecendo à audiência a chance de perceber a personagem de modo mais acessível, mais humano. E, nessa aventura dela através de uma mulher, o espectador, acompanhando a narrativa, ganha a chance de se sentir homem sob outro ponto de vista.

Ao longo de “Vaga carne”, um dos aspectos mais caros à humanidade nessa visão estrangeira da personagem-narradora é a palavra. As qualidades dos sons, os meios de sua expressão, o poder que elas têm, suas funções e habilidades são pesquisadas, saboreadas, percebidas e criticadas. Se o espírito se faz carne, talvez o homem se faça vivo por meio da linguagem (essa é uma referência a Aristóteles), o que faz do silêncio um jeito diferente de estar morto. Jogando, de modo poético e não menos racional com essas ideias de presença e de comunicação, a dramaturgia trilha as sensibilidades do homem, unindo o público em torno do que lhe é comum: a vida.

Ao longo da encenação, a personagem ganha acesso ao perigo de se apaixonar pela vida. As noções de passagem de tempo e as limitações da presença física trazem questões sobre nascimento e morte, prazer e dor, juventude e envelhecimento. A dramaturgia percorre lugares difíceis a partir de significações complexas, carismáticas e potentes que se apresentam de modo muito belo. Excelente texto!

Projeto Grãos de Imagem
Grace Passô, como sempre, faz da voz um excelente instrumento cênico capaz de oferecer ao texto enormes possibilidades no espetáculo. Os silêncios, como lugares em que o som ganha força, participam desse contexto aqui envoltos a sua figura forte, marcante e definitiva no quadro estético. A atuação de Passô, em panorama criativo assinado por ela e por Kenia Dias, Nadja Naira e por Ricardo Alves Jr., apresenta imagens belas, bem articuladas e dispostas, em um todo cheio de fluidez e profundidade, a dar conta do tema difícil e nobre a que “Vaga carne” parece ter se proposto.

A luz de Nadja Naira e a trilha sonora de Ricardo Garcia se envolvem com estruturação da dramaturgia cênica de modo coeso de maneira que parece difícil separá-los mesmo que esse gesto seja simplesmente para a análise. Tudo está abrigado por uma ideia de essencialidade em que nada sobra. Excelente!

O espetáculo inaugura e integra o Projeto Grãos da Imagem, que reúne peças em torno de temas identitários. Estreou no Festival de Curitiba de 2016 e integrou também a programação do Festival TREMA! de Recife antes de vir ao Rio de Janeiro. Imperdível!

*

FICHA TÉCNICA:
Concepção, atuação e dramaturgia: Grace Passô
Equipe de criação: Kenia Dias, Nadja Naira e Ricardo Alves Jr.
Luz: Nadja Naira
Técnico e operador de luz: Edimar Pinto e Lara Cunha
Trilha sonora: Ricardo Garcia
Músico e operador de som: Maurício Chiari
Figurino: Virgílio Andrade
Fotografia: Lucas Ávila
Assessoria de Imprensa: Sandra Nascimento e Duda Las Casas
Pesquisa e produção: Nina Bittencourt

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Os insones (RJ)

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Foto: divulgação


Polly Marinho, Guilherme Ferraz e Yuri Ribeiro

Muitos problemas na adaptação do romance de Tony Bellotto

O pueril “Os insones” é a versão teatral do livro de Tony Bellotto adaptada e dirigida por Erika Mader. Fiel à narrativa do livro, lançado em 2007, a dramaturgia da peça não vence o desafio de esclarecer a crítica que a obra original faz à juventude contemporânea. Negativamente, ela acredita demais no personagem protagonista e nos seus intentos, sem discuti-los, o que faz da montagem uma proposta ingênua apesar de defendida com alguns méritos por parte do elenco. José Karini e Liliane Rovares, entre o elenco de onze atores, apresentam ótimos trabalhos, mas Polly Marinho brilha absoluta em uma excelente performance como a traficante Mara Maluca. O espetáculo fica em cartaz até 31 de agosto na Sala Fernanda Montenegro, no Teatro Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro.

Péssima adaptação de Erika Mader
Na história, Samora (Guilherme Ferraz) é um jovem negro que cresceu em um luxuoso apartamento no Leblon. Um dia, resolve subir o morro, querendo fazer uma revolução social, seguido pela namorada Sofia (Amanda Guimaldi), que foge da casa da mãe (Liliane Rovaris) em Ipanema. Samora, de algum modo, chega à presença da líder do tráfico Mara Maluca (Polly Marinho) e conquista sua confiança depois de matar um estuprador capturado por ela e colocar na boca dele um manifesto político. O texto é publicado nos jornais da cidade e, por misturar criminalidade e luta social – aos moldes das FARC (organização guerrilheira colombiana) –, acaba conferindo notoriedade ao protagonista.

Enquanto isso, Renato (José Karini) e Lílian (Liliane Rovaris) mobilizam a polícia (Marcos Ácher e Andre Frazzi) atrás de sua filha Sofia, que está desaparecida. O nome Samora, que aparece em dedicatórias em vários livros dela, surge na investigação e, assim, as histórias se unem. Colecionador de armas, o adolescente Felipe (Leonardo Bianchi), irmão mais novo de Sofia, vai atrás da irmã também. Em trama paralela, o traficante Anjo (Yuri Ribeiro) se envolve com Chaiene (Sol Menezes), moradora do Morro, que, alimentando o sonho de ser atriz nas aulas de Humberto (Izak Dahora), ensaia “A Gaivota”, de Tchekhov.

Se, no livro, o contexto narrativo deixa ver que Bellotto está criticando a inconsequência da juventude em abraçar causas que desconhece de maneira perigosa – ainda que bem intencionada –, na peça, isso não fica claro. Ao contrário, as falas longuíssimas de Samora, em que o personagem, com um palavrório rebuscado, exorta o pensamento radical esquerdista revolucionário, ganham enorme importância. A adaptação, aparentemente apaixonada pela curva narrativa mais do que pelo quadro estético em si, abdica da noção de hierarquia e perde a chance de oferecer maior movimento no processo de construção de sentido.

Em outras palavras, parece que Erika Mader não percebeu que, apesar do discurso pró-direitos humanos, seu personagem Samora é tão criminoso, totalitário e bruto quanto todos aqueles contra os quais quer se rebelar. Que o fato de ser negro e de ter um nome africano não lhe concede uma visão naturalmente mais humana e menos parcial. E, mais que tudo, que trocar a polícia pela milícia não modifica mais a sociedade do que nossa democracia representativa, que é cheia de problemas, mas ainda sim é o sistema de governo menos injusto.

Essas questões todas, no entanto, transbordam do longuíssimo “Os insones”, desgastando o ritmo à exaustão. Enquanto o anti-herói do livro vira herói na peça, seu relacionamento com Sofia vira ilustrativo, mas não mais que as participações dos personagens Anjo, Chaiene e Felipe. Em termos de força dramatúrgica, Renato e Lilian vencem facilmente o duelo contra Samora, pois fica claro que, de um lado, há pais preocupados com a vida de seus filhos e, de outro, há um adolescente tão ingênuo como perigoso, apaixonado por sua própria pseudo-inteligência, que acha que sua visão parcial de sociedade é superior a dos demais. Para além da estrutura do texto, os desníveis nas atuações também colaboram mal para a encenação assinada também por Mader.

Polly Marinho e Rodrigo Belay brilham em excelentes participações
Na direção de Erika Mader, assistida por Alonso Zerbinato, os atores, de um modo geral, buscam registros mais realistas que colaboram para a construção de um espetáculo quase cinematográfico, apesar do cenário, da luz e do figurino. Amanda Grilmaldi (Sofia), Isak Dahora (Humberto), Sol Menezes (Chaiene), Marcos Árcher (Zé Luis) e Leonardo Bianchi (Felipe), sem força, são engolidos em cena pelos demais trabalhos de intepretação negativamente. Suas palavras, sem exploração de níveis e com dicção solta, e expressão corporal sem pesquisas visíveis se perdem. Yuri Ribeiro (Anjo) e André Frazzi (Valter), ainda que perdidos em personagens desprivilegiados pelo corte da narrativa, nessa adaptação, fazem do pouco algo nobre, o que deve ser valorizado. José Karini e Liliane Rovaris apresentam belos trabalhos, oferecendo profundidade através de expressões sutis que deixam ver alguma relação por trás de seus Renato e Lílian. Esses contextos dão força para sua trama, o que melhora a peça. Guilherme Ferraz defende um Samora que, do início ao fim, aparece no mesmo nível: facialmente inexpressivo, tom de voz monocórdio, gestos vazios.

Polly Marinho levanta a peça toda vez sua Mara Maluca entra em cena. A intérprete investe na força, na ironia, na alegria de sua personagem positivamente. Todas essas características conferem movimento à narrativa, despertam o interesse e aproximam “Os insones” do público. Sua voz é clara, suas entonações coloridas, sua participação vibrante. Bravo!

O cenário de Lorena Lima e o figurino de Bruno Perlatto não têm justificativas claras. Espécies de icebergs construídos com papel branco preenchem o palco como que apenas para reduzir o seu tamanho e colaborar a articulação das cenas. Visualmente nada acrescentam na construção do sentido. O guarda-roupa se reduz a uma histriônica fuga do realismo que é buscado pelos intérpretes em seus trabalhos e, antes, pelo texto em sua estrutura e adaptação. As olheiras na maquiagem são uma tola alusão ao título da peça. A trilha sonora de Tony Bellotto, João Mader Bellotto e de Pedro Richaid contextualiza o fluxo da narrativa de modo contributivo. A iluminação de Rodrigo Belay, ao lado de Marinho, o melhor aspecto do espetáculo, tem o poder de tornar inúteis o cenário e o figurino no modo como foram concebidos, embelezando não só o quadro como a maneira como a história se apresenta.

O título
No livro de Tony Bellotto, o título “Os insones” expressa clima conturbado de uma sociedade que não dorme, não descansa e vive, enquanto acordada, uma espécie de pesadelo. Na peça de Erika Mader, ainda que vários personagens digam que não dormem, todos eles estão envolvidos com o alcance de seus objetivos e com a solução de seus problemas. Não paira, acima deles, esse ponto de vista geral no panorama da obra. Essa reflexão mostra que, se Tony Bellotto, indo e voltando da parte ao todo, utilizou a literatura para apresentar sua história, Erika Mader, presa à parte, não conseguiu o mesmo com o teatro infelizmente. É uma pena!

*

FICHA TÉCNICA
Texto original: Tony Bellotto
Adaptação, direção e direção de produção: Erika Mader
Elenco: Amanda Grimaldi, André Frazzi, Guilherme Ferraz, Izak Dahora, José Karini, Leonardo Bianchi, Liliane Rovaris, Marcos Ácher, Polly Marinho, Sol Menezzes e Yuri Ribeiro
Luz: Rodrigo Belay
Cenário: Lorena Lima
Figurino: Bruno Perlatto
Trilha-sonora: João Mader Bellotto, Pedro Richaid e Tony Bellotto
Fotografia: Loló Bonfanti
Programação visual: Luiza Chamma
Produção executiva: Marcela Büll
Administração financeira: Alan Isídio
Diretor de palco: Tarso Gentil
Diretor de camarim: Ramon Alcântara
Operador de som: Leonardo Souza
Operador de luz: Hélio Malvino
Assistente de figurino: Pamela Kopp