terça-feira, 26 de agosto de 2014

Jazz do Coração (RJ)

Françoise Forton e Aline Peixoto em peça com poemas de Ana Cristina César
Foto: Guga Melgar

Uma peça tocante!


            “Jazz do Coração” traz a poesia de Ana Cristina César à pauta do teatro carioca com a sensibilidade, com a força e com a juventude que o texto merece. Com Françoise Forton e Aline Peixoto em interpretações bastante sensíveis, a peça tem direção delicada de Delson Antunes e belíssima trilha sonora original composta por Pedro Luis. O maior mérito é sua estrutura. Conhecedores da poetisa carioca, falecida há trinta e um anos, mas também aqueles que nunca ouviram falar de seu trabalho tem, nessa narrativa lírica, meios de entrar no texto, sentir seu sabor e de se emocionar. A peça está em cartaz na Sala Rogério Cardoso, na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro.

            Um hit. A peça, que não é biográfica, faz apagadas referências à Ana Cristina César (1952-1983) a ponto de felizmente mais apresentarem uma personagem do que propriamente uma figura notória. O resultado é que a dramaturgia de “Jazz do Coração”, assinada por Delson Antunes, positivamente consegue atingir o público de todas as idades, mas também aqueles com diferentes repertórios culturais. Em cena, vemos duas personagens femininas de idades diferentes, dividindo a verbalização de imagens que refletem o medo e a excitação pelo desconhecido, a ansiedade por fazer algo grandioso versus o prazer das coisas simples, da solidão, do mundo interior. A direção de Delson Antunes dá a ver quadros complexos e de grande beleza, com símbolos que são ricos na articulação das cores, das formas, dos sentidos. A máquina de escrever, o mimeográfo, as malas, a estante, o metrônomo, o telefone de disco expressam não apenas um mundo anterior à internet, mas também um universo em que as individualidades eram tão valorizadas quanto os encontros reais.

            Françoise Forton e Aline Peixoto deslizam pelo palco com suavidade. Não são parecidas, têm idades diversas, compartilham de grande beleza e de alto carisma. Essas qualidades favorecem a viabilização de uma narrativa que se estrutura de forma não-linear, pois o personagem de uma não é o passado da outra. Ambas estão juntas atravessando o mesmo tempo complexo, enfrentando os desafios da vida que se torna adulta. As palavras soam leves e claras, a proximidade com o público vira conceitual na medida em que é favorecida pela movimentação delicada e pelos gestos sutis. No elenco, tudo é convite para uma aproximação, quadro esse que positivamente se opõe à vida distanciada e virtual da contemporaneidade.

            A produção tem como um de seus grandes destaques a trilha sonora. Com sete poemas musicados por Pedro Luis, a com direção musical e preparação vocal de Suely Mesquita, as canções inéditas são cantadas ao vivo pelas atrizes. O todo é muito sensível e delicado. Além disso, o espetáculo evidencia um tratamento sonoro de grande valor. O barulho da datilografia, o ponteiro do metrônomo girando, o giro do disco do telefone. Todos os barulhos pontuam não apenas um não-silêncio, mas participam efetivamente do quadro estético. O cenário assinado por Jeane Terra e a luz por Luiz Paulo Neném, ao lado dos figurinos de Carol Lobato, definem uma estrutura potente que é coerente com as intenções, mas também com o sucesso das realizações.

            É comum associarem a poetisa Ana C. com a romancista Clarice Lispector (1920-1977) e com o contista Caio Fernando Abreu (1948-1996) por esses serem também escritores voltados para dentro, autores de uma literatura mais intimista. Idealizado por Françoise Forton e por Delson Antunes, “Jazz do Coração” é uma peça uma que fala baixinho, uma espécie de sussurro que, assim como afasta o silêncio, o valoriza ainda mais. Um espetáculo tocante!
 
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FICHA TÉCNICA
Da obra de Ana Cristina Cesar
Dramaturgia e direção: Delson Antunes
Elenco: Françoise Forton e Aline Peixoto
Músicas: Pedro Luís
Direção musical e preparação vocal: Suely Mesquita
Cenário: Jeane Terra
Figurinos: Carol Lobato
Iluminação: Luis Paulo Nenén
Direção de movimento: Adriana Bonfatti
Assistente de direção: Marcéu Pierroti
Programação visual: LSD Design
Direção de produção: Elaine Moreira
Produção executiva: Rodrigo Becker
Assistente de produção: Jeferson Neto
Produção e assessoria de imprensa: Barata Comunicação

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Salomé (RJ)


Eliane Coelho e Lício Bruno em cena no Theatro Municipal

Foto: Leonardo Pergaminho



A brava Eliane Coelho

                “Salomé”, a nova produção do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, marca os 150 anos do nascimento do alemão Richard Strauss (1864-1949). Montagem assinada por André Heller-Lopes, com regência de Silvio Viegas, a peça conta com a soprana Eliane Coelho (Salomé), o baixo-barítono Lício Bruno (João Batista), o tenor irlandês Paul McNamara (Herodes) e com a mezzo-soprana Carolina Faria (Herodias) nos papeis principais. O libreto, da poetisa Hedwig Lachman, é baseado na peça homônima de Oscar Wilde. Lançada em 1905 com muito sucesso, essa ópera é referencial por vários aspectos, muitos deles positivamente encontrados na produção em cartaz na Cinelândia.

                Três semanas depois de “Salomé” estrear em Dresden, na Alemanha, Viena apresentou ao mundo a opereta “A viúva alegre”, de Franz Lehár. O mês de dezembro daquele ano, assim, simbolizava um período marcante na história do teatro musical. De um lado, Strauss, um jovem de 39 anos, cujo pai havia falecido há poucos meses, ainda representava o erudito romantismo tardio, descendente de outro alemão, Richard Wagner. De outro, uma história popular ganhava notoriedade, pautas, dinheiro e fama.  Recuperando personagens bíblicos em uma situação narrativa que atingia o seio da burguesia, Strauss, ao lado de Wilde, valorizava a aristocracia, o classicismo e a erudição, levando a música, através da troca de séculos, para além dos moralismos e dos sentimentalismos melodramáticos. Morto em 1900, o irlandês Oscar Wilde escreveu “Salomé” em francês em 1891. A peça, censurada em vários países, incluindo a Inglaterra, era o seu ponto de vista sobre o que levou Salomé a pedir a cabeça de João Batista na corte da Galileia (ver Mt 14,1-11). Dez meses antes, João Batista havia sido preso por Herodes Antipas, líder da Galileia, porque, entre outras coisas, acusava o teatrarca de traição. Herodias, sobrinha e esposa de Filipe, havia abandonado o marido para viver com seu cunhado (e tio) Herodes, levando consigo sua filha Salomé. Superticioso, Herodes não queria matar o João Batista (primo de Jesus, que ainda não era conhecido), mas, embevecido pela beleza da enteada, jurou fazer qualquer coisa que ela pedisse se dançasse para ele. Na cena mais famosa da ópera, Salomé faz a sensual “Dança dos Sete Véus” e exige a cabeça do prisioneiro em uma bandeja de prata. Nas cenas iniciais, a personagem-título havia convencido um soldado (amante seu) de soltar o prisioneiro para que ela o visse. João Batista, nesse momento, havia ofendido seus brios, não permitindo que ela o tocasse e nem mesmo pousando sobre ela o olhar. Wilde e Strauss terminam a narrativa com a imagem macabra de Salomé beijando os lábios cadavéricos da cabeça decepada do condenado, dizendo que é mais difícil resolver o amor do que a morte. Em um ato só, contada em um só fôlego, a história une a tragédia e o romantismo naquilo que outro alemão, Hegel, definiu como o fim, o êxtase, da arte.

                No palco do Theatro Municipal, belos cantores e belos músicos narram a história em cem minutos com nenhum corte nas partituras. Lício Bruno e Paul MacNamara têm participações brilhantes, mas positivamente é a brava Eliane Coelho quem se destaca. A música difícil, que une leitmotives (motivos musicais que caracterizam um personagem ou uma situação) e experiências atonais, é bem interpretada na profusão de baixos e agudos que estruturam a narrativa, a cena e a musicalidade em bom ritmo para o gênero e para a época da composição. A direção do premiado André Heller-Lopes deixa ver equilibrado balanço das informações na encenação, equilibrando o ritmo e o sustentando em positiva curva crescente. É verdade que, na montagem atual, a “Dança dos Sete Véus”, cuja coreografia não se expressa firmemente, carece de força, complexidade e de sensibilidade, mas não se pode esquecer que Strauss escreveu um epílogo longuíssimo (após o ápice e depois do fim) de vinte minutos, em que se escuta o lamento final de Salomé, defendido com galhardia pela meritosa equipe.

                Heller-Lopes também assina o cenário. O chão espelhado produz, com reflexos do belíssimo desenho de luz de Fábio Retti, mas principalmente com a ostensiva presença de luminárias art nouveau, várias sombras nas longas cortinas transparentes e também no teto do Theatro Municipal. O efeito, plenamente relacionável com o sopro das asas da morte, ajuda a construir o clima clássico e ao mesmo tempo soturno que a história apresenta. A pedraria, a forte presença de cores, os tecidos com brilho enegrecido nos figurinos de Marcelo Marques também auxiliam na viabilização dos mesmos quadros. A composição de ternos e de óculos contemporâneos com lungis pretos, misturados com as cadeiras Luis XV douradas, evoluem para os figurinos mais vistosos de Herodes e principalmente para o belíssimo vestido de Herodias, no auge do art nouveau da estética da produção. Esse pastiche estético reproduz bem a troca do século XIX para XX, fazendo a sua crítica.

                “Salomé” teve a sua primeira apresentação no Brasil em 1910 nesse mesmo Theatro Municipal. “A viúva alegre” ainda demoraria 36 anos para chegar ao mesmo palco. Vale a pena fazer essa viagem no tempo e assistir a essa produção primorosa, levando ao cabo essas e outras reflexões possíveis e grande deleite.

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Ficha técnica:
Música: Richard Strauss
Libreto: Hedwig Lachmann
Direção cênica e cenografia: André Heller-Lopes
Assistentes de direção: Menelick de Carvalho e Caetano Pimentel
Iluminação: Fabio Retti
Figurinos: Marcelo Marques
Regência: Silvio Viegas

No elenco:
Salomé: Eliane Coelho (solista especialmente convidada), soprano
              (dias 23 e 29)
              Cristina Baggio, soprano
              (dias 22, 24 e 27)
Jochanaan (João Batista): Licio Bruno, baixo-barítono
Herodes: Paul McNamara, tenor
Herodiades: Carolina Faria, mezzo-soprano
Narraboth: Ivan Jorgensen, tenor
Pajem – Lara Cavalcanti
Primeiro Judeu – Ossiandro Brito 
Segundo Judeu – Geraldo Mathias
Terceiro Judeu – Weber Duarte
Quarto Judeu – Geilson Santos
Quinto Judeu e Capadócio – Patrick Oliveira
Primeiro Nazareno e Escravo – Luiz Furiati
Segundo Nazareno e Segundo Soldado – Homero Velho
Primeiro Soldado – Murilo Neves

Trágica.3 (RJ)


Denise Del Velcchio interpreta Medeia

Foto: divulgação

A vitalidade da tragédia grega

“Trágica.3” está em cartaz no Teatro 1 do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, com Letícia Sabatella, Miwa Yanagizawa e com Denise Del Vecchio interpretando Antígona, Electra e Medeia respectivamente. Dirigida por Guilherme Leme, a peça justapõe quadros das três personagens trágicas, resumindo as histórias mais conhecidas de cada uma e recriando seus universos com a vitalidade que a tragédia grega merece. Os três trabalhos de interpretação são bastante bons, as dramaturgias também, com destaque para o cenário de Aurora dos Campos, a iluminação de Tomás Ribas e para a trilha sonora original de Marcello H, Fernando Alves Pinto e de Sabatatella. Fica possível a reflexão sobre os elos de ligação entre as três tragédias citadas pelo espetáculo. Porque aproximam a fé e a falta de lógica, essas peças continuam sendo ótimas bases de apoio para lidarmos com a contemporaneidade.

Criadas e recriadas por diversos dramaturgos ao longo da história, Antígona, Electra e Medeia são três mulheres diferentes. “Trágica.3” começa com a oposição entre sociedade e família, que é definitiva quando Antígona enterra o irmão Polinices, descumprindo uma ordem real. Para ela, filha de Édipo com a avó Jocasta, os laços familiares vêm em primeiro lugar. Electra, por sua vez, representa o oposto: o corte dos laços familiares. Já adulta, ela trama com o irmão Orestes o assassinato da mãe para vingar o pai. No passado, Agamenon empreendeu uma guerra contra Troia em apoio ao irmão Menelau. Para vencer a batalha, levou a filha Ifigênia ao sacrifício, do que nunca foi perdoado pela esposa Clitemnestra, que o matou. Por fim, Medeia surge sem família, sem pátria e sem juventude no fim da vida. Motivada por Eros, a princesa Medeia da Cólquida, contra seu pai, ajuda Jasão a ganhar o velocino de ouro com o qual poderia ser rei de sua terra, Tessália. Expulsos tanto da terra dele como da dela, o casal vai morar em Corinto, onde Jasão se casa com Glaucia, filha do Rei Creonte. Para se vingar do marido, Medeia mata os filhos e vai morar em Atenas, de onde também será expulsa. No fim da vida, assassinará outros homens e fará de seu filho com Egeu o rei da Cólquida, quando enfim poderá descansar. O que une, assim, essas três mulheres é um certo tipo de liderança para a qual elas foram condenadas. Enterrar o irmão, tramar a morte da mãe e assassinar os filhos não são atos trágicos porque terríveis, mas porque expressam um destino do qual elas não poderiam fugir. Ao mesmo tempo em que são protagonistas, nenhuma delas foi rainha, mas, nesses mitos, apenas argumentos de uma visão de mundo que ainda é metáfora para tentar explicar a falta de lógica da vida cotidiana.

À parte as versões mais conhecidas de Sófocles, Eurípedes e de Ésquilo, a dramaturgia de “Trágica.3” chega assinada com “Antígona”, de Caio de Andrade; “Electra”, por Francisco Carlos; e com “Medeia”, pelo dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995). O resultado mostra grandes desafios vencidos. Conhecem-se as histórias, os conflitos, os valores de cada personagem, sentem-se o sabor e o peso da retórica clássica, mas aprofunda-se no recorte essencial de cada figura a tempo de se ter um panorama das três mulheres, uma ao lado da outra. Nesse sentido, a direção de Guilherme Leme tem os méritos de não se render ao tempo, de valorizar as expressões, de conservar os movimentos retos (e apolíneos!) e equilibrados da boa tragédia encenada.

Letícia Sabatella, Miwa Yanagizawa e Denise Del Vecchio apresentam bons trabalhos dentro das possibilidades de suas personagens. É claro que a imagem da mãe que mata os filhos para se vingar do marido pela traição é mais aterradora que a da filha que planeja o assassinato da mãe e da irmã que enterra o irmão com as próprias mãos, e por isso, aparentemente, o resultado de Del Vicchio é superior ao de suas parceiras. Embora relevante, nem sempre as aparências são justas e aqui é preciso destacar o bom resultado do conjunto. Na viabilização do discurso oral e dos quadros através dele, e na economia dos gestos e das expressões corporais, os três trabalhos são bastante positivos.

Na composição do quadro, os cortes retos e elegantes dos figurinos de Glória Coelho lembram que Antígona, Electra e Medeia são filhas de reis (Édipo, Agamenon, Eetes), mas, mais que isso, eles expressam o raciocínio trágico: as linhas retas de Apolo, o lugar objetivo do destino superior. Nesse sentido, a iluminação de Tomás Ribas conversa bem com o cenário de Aurora dos Campos, ambos os trabalhos construindo um lugar recortado, duro, uniforme inclusive na evolução das cores, apesar dos vídeos, esse uma espécie de marca de abandono da concepção, partindo para algo mais sentimental. A trilha sonora marca a relação do contexto narrativo com o tom de ritual: de um lado, os lamentos. De outro, a sentença divina.

“Tragica.3”, pelo aparato visual, estético e reflexivo que recupera, merece aplausos.

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FICHA TÉCNICA: 
Textos: 
Medeia - Heiner Müller 
Antígona - Caio de Andrade 
Electra - Francisco Carlos 

Elenco: Denise Del Vecchio, Letícia Sabatella, Miwa Yanagizawa, Fernando Alves Pinto e Marcello H

Concepção e Direção: Guilherme Leme 
Cenografia: Aurora dos Campos 
Iluminação: Tomás Ribas

Figurino: Glória Coelho 
Trilha Sonora Original: Fernando Alves Pinto, Leticia Sabatella e Marcello H 
Visagismo: Leopoldo Pacheco 
Coordenação de Comunicação: Daniela Cantagalli 
Programação Visual e Fotos: Victor Hugo Cecatto 
Produção Executiva: Sílvia Rezende 
Direção de Produção: Sérgio Saboya 
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil 
Patrocínio: Banco do Brasil

Romanceiro Popular (RJ)


Ricardo Gonçalves, Ricardo Gadelha e Richard Goulart em cena
Foto: divulgação

Merecida homenagem a Ariano Suassuna

“Romanceiro Popular” é uma homenagem a Ariano Suassuna (1927-2014), o dramaturgo paraibano autor de “O auto da Compadecida”. O espetáculo, com dramaturgia e direção assinada por Lu Gatelli, é uma divertida colagem de várias tramas criadas pelo mestre, facilmente identificadas pelos conhecedores de sua obra, que reflete habilidade em articular personagens e histórias em um todo coeso, coerente e que valoriza o artista homenageado. Em cartaz no Teatro II do Teatro Sesc Tijuca, a peça é a mais nova produção da Cia. Entreato, que há 14 anos tem pesquisa cênica voltada para o universo da palhaçaria.

O único funcionário (Ricardo Gonçalves) de um grupo de atores mambembes tem sua vida modificada quando o diretor lhe dá uma chance de entrar em cena. Causando certo embaraço na vida dos parceiros, ele reconhece os desafios diários da vida de ator em meio ao sertão nordestino. É quando um colega seu (Ricardo Gadelha) propõe formarem juntos outra companhia para concorrer com a atual às escondidas do diretor (Richard Goulart). O grupo apresenta a peça “Romeu e Julieta”, contando a história de Romeu, depois a de Julieta, e só então a dos dois. Em meio a isso, o diretor descobre a possível a traição e toda a Companhia se divide em relação ao acontecido. “Romanceiro Popular” une “O santo e a porca”, “O auto da Compadecida”, “A história de amor de Romeu e Julieta” e “Torturas de um coração”, atualizando em nova narrativa os elementos fundamentais do universo de Ariano Suassuna.

Ricardo Gonçalves, Ricardo Gadelha e Richard Goulart se destacam no elenco composto também por Diego Marques, Ligia Dechen e Vitor Martinez. O tom vocal e corporal de realismo, que infelizmente invade a concepção farsesca da peça (e das histórias), prejudica o andamento das narrativas em vários momentos. Faltam composições que imprimam um gestual e uma movimentação coerente com o texto, com o cenário de Kerrys Aldabalde e com o figurino de Raquel Theo. Daí o destaque positivo de Gadelha, Gonçalves e principalmente de Goulart, pois esses são aqueles que melhor apresentam figuras coesas, articuladas e tão vivas quanto os bons usos dos elementos visuais citados. A trilha sonora, que une canções de vários autores, participa bem do espetáculo, mas as letras nem sempre são interpretadas com a clareza adequada infelizmente. O ritmo da direção de Gatelli fica felizmene mais ágil, como em uma boa farsa (o gênero tem sua descendência na Commedia Dell Arte italiana), com o passar das cenas, ficando cada melhor nas cenas finais.
 
O mérito de Suassuna foi, entre vários, o de associar o regionalismo ao clown, revitalizando a farsa de Martins Penna, mas com muito mais lirismo. Seus personagens têm a dureza do sertão, em sua pobreza, em sua aridez, em sua religiosidade, mas a alegria das coisas simples e dos prazeres pequenos. A Cia. Entreato está de parabéns por homenageá-lo.

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FICHA TÉCNICA 
Texto e Direção: Lu Gatelli

Elenco: Diego Marques, Lígia Dechen, Lu Gatelli, Ricardo Gadelha, Ricardo Gonçalves, Richard Goulart e Vitor Martinez, Stand by: Camila Rocha

Direção Musical: César Lignelli 
Figurinos: Raquel Theo 
Cenografia: Kerrys Aldabalde 
Iluminação: Ricardo Grings 
Adereços: Fabio Francino 
Coreografias: Alessandra Lemos 
Assistente de Direção: Camila Rocha 
Caracterização: Vitor Martinez 
Identidade Visual: Marcelo Gatelli 
Direção de Produção: Renato Maia 
Assistente de Produção: Igor Goulart 
Realização: Cia Entreato 
Patrocínio: Secretaria Municipal de Cultura / Prefeitura do Rio de Janeiro 
Assessoria de imprensa: Minas de Ideias

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Boca molhada de paixão calada (RJ)

Foto: divulgação

A boa dramaturgia de Leilah Assunção

A boa comédia “Boca molhada de paixão calada”, com texto de Leilah Assunção, estreou na Sala Rogério Cardoso, na Casa de Cultura Laura Alvim, zona sul do Rio de Janeiro. Dirigida por Márcio Veira, a peça é a nova produção da Cia. Escaramucha, com Ana Berttines e Rômulo Rodrigues no elenco. A produção marca o aniversário de 70 anos da dramaturga paulista comemorados em 2013. Produzido pela primeira vez há vinte anos tem o mérito de bem unir, em sua complexa dramaturgia, um panorama histórico do Brasil no período da ditadura ao lado da exposição de conflitos de casal. O resultado é muito interessante.

Antônio e Camila são ex-marido e ex-mulher que combinaram de se encontrar em um apartamento para ver como anda o interesse sexual de um em relação ao outro. As tentativas de fazer sexo são interrompidas por lances de memória que levam os dois a passarem a limpo o casamento. O que poderia ser uma comédia banal se torna um roteiro riquíssimo de informações sobre os anos da ditadura do Brasil. O casal viveu ativamente esse período. Foram manifestantes de esquerda, se exilaram, viveram as drogas, a liberdade sexual, o feminismo. E tudo isso com o bom humor que marca o brasileiro mediano, aquele que fala mal da corrupção, mas também estaciona em lugar errado. Daí o sucesso da dramaturgia. Na plateia, o espectador sabe que suas referências estão sendo requisitadas, mas também deve reconhecer está sendo entretido. É um jogo divertido e complexo.

O trabalho de direção de Márcio Vieira traz dois desafios aos intérpretes, revelando seus bons trabalhos. Ao longo da encenação, Ana Berttines e Rômulo Rodrigues conseguem não deixar o ritmo cair apesar de “Boca fechada” partir de uma discussão e se manter assim com raros momentos de exceção. Além disso, os movimentos cênicos se resumem a um vira e mexe sem fim e sem propósitos claros das peças do cenário de Daniele Geammal. No quesito, a peça não tem bom resultado. Destacam-se o carisma dos dois atores, mas principalmente as quebras de intenções e as pausas de Berttines, garantindo ótimos momentos.

O cenário e o figurino de Geammal não são bons. Embora a trama se passe em um apartamento, a peça acontece em um lugar indefinido: sem janelas, com fotos estranhamente penduradas e com uma cortina de fundo que é sempre um cenário e nunca um signo para algo representativo. Um sofá-cama dividido em partes a la Polenguinho, com madeira pesada forrada de veludo molhado azul, encarrega o elenco de carregar suas fatias de um lado para outro sem possibilitar bons quadros estéticos. O vestido azul de malha tem um tom que se repete no sofá e que varia muito pouco da camisa masculina em um todo azul cansativo e pobre. Djalma Amaral, Zéza Julio e Daniel Cunha apresentam o desenho de luz, a trilha sonora e o visagismo sem relevância.

“Boca molhada de paixão calada” vale a pena ser visto porque, além dos bons trabalhos de interpretação, é a produção inédita de um texto de nossas mais importantes dramaturgas do teatro brasileiro contemporâneo. Além disso, com humor e criatividade a peça se insere plenamente na programação cultural que reflete os 50 anos de um dos períodos mis negros de nossa história, o Golpe Militar.

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FICHA TÉCNICA
Texto: Leilah Assunção
Direção e idealização: Márcio Vieira
Elenco: Ana Berttines e Rômulo Rodrigues
Iluminação: Djalma Amaral
Cenário e Figurino: Danielle Geamal
Direção Musical: Zéza Júlio
Visagismo: Daniel Cunha
Fotografia: Fernanda Sabença
Produção executiva : Cristiane Pimenta / KC Produções
Produção e realização: PRAMA COMUNICAÇÃO (Ana Berttines e Rômulo Rodrigues)

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Casa da Morte (RJ)

Foto: divulgação
Fernanda Maia em excelente trabalho

Femín Cabal e a tortura no período ditatorial

 “Casa da Morte” é o novo espetáculo do grupo Teatro do Pequeno Gesto. A peça, dirigida por Antônio Guedes, é a versão brasileira do texto “Tejas verdes”, escrito em 2003, pelo consagrado dramaturgo espanhol Fermín Cabal, entre outras coisas co-roteirista de “Maus hábitos”, de Pedro Almodóvar. Em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc Copacabana, a produção integra a programação dos 50 anos do Golpe Militar de 1964, trazendo a história de uma jovem torturada nos porões da ditadura. Sem dúvida, o tema torna essa peça um roteiro essencial nesse ano de 2014.
Fermín Cabal escreveu o texto para marcar a sua participação nos 40 anos do golpe militar que depôs Salvador Allende da presidência do Chile. “Tejas verdes” é o nome de uma colônia de férias construída no fim dos anos 30 às margens do Rio Maipo, no Chile. Nos anos 50, a propriedade passou a ser administrada pelo exército. Com o advento da ditadura do General Pinochet, foi onde vários dos três mil mortos e desaparecidos do golpe militar daquele país tiveram o seu fim. Na peça de Cabal, conhece-se Colorina (Canarinho, na versão brasileira assinada por Fátima Saadi), uma jovem torturada até a morte em Tejas Verdes. Encontra-se também sua amiga e parceira de cela, sua delatora. Em seguida, a funcionária do cemitério público que a desenterrou e entregou seu corpo para a cremação. Depois, a médica que cuidou de seus documentos oficiais e, por último, a advogada de Pinochet que dá o seu parecer sobre a acusação de tortura naquele período histórico. Na versão do grupo Teatro do Pequeno Gesto, não há o último quadro, bem como qualquer outra marca que aproxime a peça da história do Chile. Antônio Guedes justifica os cortes, dizendo que a intenção foi tornar o texto plenamente relacionável à realidade histórica do Brasil. O resultado é que “Casa da Morte”, enquanto espetáculo, pode ser lido como o retrato da tortura que houve e que ainda há em qualquer país. As marcas identitárias do texto foram apagadas, mas, considerando o nosso período nacional de reflexão, o resultado da dramaturgia é positivo.


A dramaturgia se estrutura em monólogos e Priscila Amorim, Fernanda Maia e Marcos França estão no elenco, apresentando seus personagens em roupas neutras e com peles limpas, dirigindo-se para o público frontalmente sem nenhum outro elemento além da voz. Nessa encenação, toda a dramaturgia está unicamente no texto, sem que o teatro pareça oferecer algo além de poucas variações no tom, nas intenções e nas pausas. Porque “Casa da Morte” fala de tortura, a opção estética aponta positivamente para o peso que o texto tem por si só. No entanto, com isso, a responsabilidade dos atores aumenta muito. Priscila Amorim não consegue tirar sua Canarinho das sombras, usando um falar monocorde, sem expressão, negativamente frio para o texto da protagonista. Marcos França (a Médica) e principalmente Fernanda Maia (a Delatora e a Coveira) conseguem resultados muito melhores dentro da mesma proposta, valorizando o texto e, dentro da proposta de não-encenação, evidenciando alguma boa imagem. No geral, a proposta resulta quase em uma literatura dita sob um refletor, mantendo na peça apenas os grandes méritos do texto de Fermín Cabal.
O cenário é composto por uma instalação sonora assinada por Paula Leal e por Amora Pêra. O balanço de microfones ligados sobre caixas de som geram aquele barulho irritante de microfonia. Enquanto elemento artístico, pode reproduzir o incômodo causado pelo som, além de sugerir o visual de uma lâmpada incandescente balançando no teto, mas que acaba por figurar muito elementarmente mesmo em um quadro estético de não-teatro. Os vídeos de Carlos e de Antônio Azambuja, projetados em pilhas de caixas de papelão, também não atingem bom resultado, porque não se articulam definitivamente com a peça embora lhe façam algumas sugestões.

Durante a última semana, o jornal O Globo publicou uma matéria de Raphael Kapa, revelando que Raul Amaro Nin Ferreira foi torturado até a morte aos 27 anos em agosto de 1971. O Hospital Central do Exército, no Rio de Janeiro, onde aconteceu o crime, foi a versão brasileira de Tejas Verdes, a nossa infeliz Casa da Morte. Nesse sentido, a iniciativa do Teatro do Pequeno Gesto é de suma importância e o seu mais recente espetáculo deve ser visto.
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Ficha técnica:
Texto: Fermín Cabal
Direção: Antonio Guedes
Dramaturgia: Fátima Saadi
Cenografia: Doris Rollemberg
Figurino: Mauro Leite
Vídeo: Carlos Azambuja e Antônio Azambuja
Iluminação: Binho Schaeffer
Instalação sonora: Paula Leal e Amora Pêra
Produção executiva: Damiana Guimarães
Elenco: Fernanda Maia, Marcos França e Priscila Amorim. 

Da vida das marionetes (RJ)

Milena Toscano, Luiz Furlanetto e Pedro Osório em cena
Foto: Fábio Maranhão

Um dos melhores espetáculos em cartaz. E o mais elegante.
“Da vida das marionetes” é um melhores espetáculos em cartaz na programação teatral carioca nesse excelente mês de agosto que conta com mais de quinze excelentes produções disponíveis para ver. Com texto adaptado a partir do telefilme homônimo do sueco Ingmar Bergman (1918-2007), a peça se apresenta com trabalhos de interpretação cujo nível de excelência é altíssimo. Com direção de Guilherme Leme e codireção de Miwa Yanagizawa, a montagem foi idealizada por Pedro Osório e está em cartaz no Espaço Sesc – Mezanino, em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Valeapeníssima ver!

Como no filme lançado em 1980, a história da peça retrata de forma não linear os momentos em redor do assassinato da prostituta Ka (Claudia Mauro) por Peter Egermann (Pedro Osório). De um jeito extremamente franco, Bergman expõe o terrível tédio sentido pelo protagonista, tornando a obra uma crítica terrível à sociedade de consumo retratada por personagens comuns da Alemanha Ocidental. Casado com a estilista Katarina (Milena Toscano), Peter é visto ao lado do seu psiquiatra Jensen (Luiz Furlanetto), que também é o amante de sua esposa. Em, seguida, se conhecem o ponto de vista de Cordélia (Sandra Barsotti), mãe de Peter, e de Tim (Arnaldo Marques), amigo de Katarina. Movimentando-se vagarosa e delicadamente pelo horizonte da trama, a narrativa anda verticalmente pelo interior de cada personagem, estruturando-se em uma complexa rede de dados e de relações diante das quais se pode compreender a situação em que o fato do crime acontece.

Na versão de Leme e de Yanagizawa, os atores dizem o texto sentados, com expressões bastante econômicas. O feito, além de valorizar a dramaturgia, sustenta um certo tipo de tensão que desperta o interesse não apenas sobre o desenrolar dos fatos, mas também sobre a realidade de cada participante dessa situação bergmaniana. O efeito dos primeiros planos que o cinema proporciona ganha excelente adaptação na cena teatral, obrigando o espectador a acomodar seus pontos de vista nos detalhes das interpretações. Todo o elenco, sem exceção, está em excelentes trabalhos, construindo e dando a ver um campo de sentidos bastante rico em cada fala, em cada cena. Os diálogos, dentro do ritmo proposto, são ágeis em sua complexidade, fazendo evoluir imagens que não se repetem, mas se complementam de um jeito vibrante.
Fernando Alexim veste o palco com um carpete negro, cujo único ponto de escape é uma longa e lisa mesa cor de madeira e quatro cadeiras. Ainda na mesma paleta de cores, os figurinos de Ana Roque variam do branco ao champagne, auxiliando na construção do efeito dos primeiros planos. Os recortes, na iluminação de Vitor Emanuel, são positivamente claros, precisos, sem cores. A trilha sonora de Marcelo H. situa o tom da história narrada: um crime factual, mas que também é chave para compreender uma teia de relações na qual estão envolvidos os personagens. De um modo geral, a direção de arte é responsável por confirmar a opinião de Bergman aos filmes em preto e branco. Segundo o diretor e roteirista sueco, a realidade não é colorida.

Em “Da vida das marionetes”, título que surge a partir de “Pinocchio”, de Carlo Goldoni, de um lado temos uma situação e de outro um crime. Ao buscar as pontes que possam relacionar um ao outro, o espectador se torna sujeito da narrativa cênica, essa que, nesse caso, tem um nível altíssimo de elegância e de complexidade. Bravo!


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Ficha Técnica
Autor: Ingmar Bergman
Direção: Guilherme Leme
Codireção: Miwa Yanagizawa

Elenco/Personagem:
Arnaldo Marques - Tim (amigo de Katarina)
Luiz Furlanetto - Jensen (psiquiatra)
Milena Toscano - Katarina (mulher de Peter)
Pedro Osório Pedro Osorio - Peter
Atriz convidada: Sandra Barsotti - Cordélia (mãe de Peter)
Participação Especial: Claudia Mauro - Ka (prostituta)

Cenografia: Fernando Alexim
Figurinos: Ana Roque
Assistente de figurino: Victor Hugo Mattos
Iluminação: Vitor Emanuel
Trilha Sonora: Marcelo H.
Programação Visual: Marcelo H.
Coreografia: Rossela Terranova
Direção de Produção: Sérgio Saboya
Produção Executiva: Maria Albergaria
Assistência de produção e assistência de direção: Edward Boggiss
Assessoria de Imprensa: PAGU COMUNICAÇÃO – Carla de Gonzales

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Doppelgänger – O mito do duplo (RJ)

André Mattos e Ricardo Kosovski em cena
Foto: divulgação

Comédia refinadíssima

O ótimo “Doppelgänger – O mito do duplo”, com texto e direção de Domingos de Oliveira, é a nova versão do espetáculo produzido pela primeira vez em 1992. Agora com Priscilla Rozenbaum, Ricardo Kosovski e André Mattos nos personagens antes interpretados por Glória Menezes, Tarcísio Meira e Ednei Giovenazzi, a comédia está em cartaz no Teatro Sergio Porto, no Humaitá, zona sul do Rio de Janeiro. Com altas doses de excelente humor, a peça ratifica o talento do mais importante dramaturgo brasileiro vivo e em plena atividade.

“Doppelgänger” é uma palavra em alemão que quer dizer o duplo de alguém. Trata-se de um mito multicultural segundo o qual existe outra versão de nós mesmos andando por aí. Para os bretões e fenícios, é um tipo de fantasma. A lenda egípcia “A princesa grega” narra como o aparecimento de uma outra Helena resolveu a Guerra de Troia. Há uma lenda inglesa segundo a qual o duplo de Sir George Tryon voltou para sua casa em Londres após o naufrágio do navio Victória em 1893. O tema também aparece em vários filmes de ficção de científica: “Doppelgänger” (1969) dirigido por Robert Parrish, “The stranger” (1973) por Lee Katzin, “Doppelgänger” (1993) por Avi Nesher, “Another Earth” (2011) por Mike Cahill, entre outras obras de toda sorte de manifestação artístico-cultural. O tema segue sendo rico e interessante: como seria encontrar-se com um duplo?

Na história da peça, Julio Matos (Ricardo Kosovski) e Julia Vieira (Priscilla Rozenbaum) são um casal de atores famosos no teatro e na televisão há muitos anos. Na medida do possível, apesar de uma bissexualidade latente nele, o casamento vai bem até que, numa sessão de terapia, Julio revela ao seu analista, o doutor Marco Aurélio (André Mattos), que está sendo perseguido por alguém que desconhece. A partir disso, a plateia não consegue saber se quem está em cena é Julio ou seu duplo.

Trata-se uma comédia refinadíssima. No texto escrito e dirigido por Domingos de Oliveira, o clima de deboche do cinema noir justifica as frases longas, os diálogos compridos, as digressões intermináveis. As cenas de “Doppelgänger - O mito do duplo” remetem aos planos internos, escuros e cheios de frases com duplo sentido, sangue, pólvora e fumaça de cigarro que caracterizaram o cinema dos anos 30 a 50, mas em um tom farsesco que é muito inteligente. Quase toda a história se passa no mal iluminado consultório do sorumbático Marco Aurélio, que ama Julia em segredo, cheio de culpa e de ódio de seu paciente Julio. Como uma boa femme fatale, Julia aparece loira, atraída sexualmente pelo sexo mais violento, suscetível aos aplausos e voraz com seus diamantes, invadindo a sala do psiquiatra em busca do marido desaparecido. Nas sequências de ação, a crítica ao show business, à hipocrisia social, ao casamento de aparências surge, dando corpo e vida para a trama contada em pouco mais de sessenta minutos em fluxo exuberante.

Os excelentes trabalhos de interpretação marcam a contribuição do teatro ao texto de Domingos de Oliveira. André Mattos deixa ver um psiquiatra tímido, preocupado, mas muito emotivo, que é o morador do lugar onde a história acontece e por isso, de certa forma, o anfitrião do público. Priscilla Rozenbaum é uma Júlia positivamente indecisa entre o sexo, o amor e o trabalho, a fama, o talento e o dinheiro. Seus movimentos ratificam as falas que giram de um valor ao outro, escapando das definições e movimentando a narrativa. Ricardo Kosovski apresenta um Julio ardiloso, com ironia possível, loucamente curioso pela outra versão de si. Na sua interpretação, são vistas mudanças rápidas e pontuais de tom, multiplicidade de intenções e variedade de formas.

Os figurinos de Ronald Teixeira e de Eloy Machado ajudam a ambientar a história no mormaço de um suspense que é ricamente criticado. O veludo grosso do vestido e as botas de Julia, a gabardine do Marco Aurélio, o chapéu, o colete e o paletó xadrez de Julio fazem uma apologia ao mundo regrado a que pertencem esses personagens. É por causa desse mundo que eles aparecem submersos em meio às emoções, autores de atos absurdos para eles e que são cômicos para o público. A iluminação de Fernanda e de Tiago Mantovani resulta em um dos melhores trabalhos do ano nesse item vistos no Rio de Janeiro. Além de quadros de grande beleza, os recortes de luz e de sombra preenchendo os espaços vazados ajudam a construir a estrutura espaço-temporal em que a história se conta.

Entre tantos méritos, “Doppelgänger” confirma a máxima de que um bom resultado em artes não é mérito de uma só pessoa, mas de uma equipe de elementos bem envolvidos a partir de um conceito sólido e que se abre para o olhar do público com sinceridade. Quando uma equipe se iguala a Domingos de Oliveira, é sorte de quem assiste.
 

*

FICHA TÉCNICA:
Autoria e direção: Domingos Oliveira
Elenco: Priscilla Rozenbaum, André Mattos e Ricardo Kosovski
Cenografia: Ronald Teixeira
Figurinos: Ronald Teixeira e Eloy Machado
Luz: Fernanda Mantovani e Tiago Mantovani
Produção: Renata Paschoal e Tatiana Trinxet
Assessoria de Imprensa: Leila Meirelles

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Elza e Fred (RJ)

Foto: divulgação

A responsabilidade e o mérito de Suely Franco

A peça “Elza e Fred” é uma má adaptação do filme homônimo, apesar das boas participações de Suely Franco e de Mayara Magri e  do bom roteiro original. Em cartaz no Teatro das Artes, no Shopping da Gávea, a produção dirigida por Elias Andreato exagera no melodrama de forma negativa, agradando apenas por dois entre vários motivos que fizeram a obra cinematográfica primeira tão famosa: o carisma da atriz principal e o texto. O que se vê no palco é uma versão chapada, linear, superficial, com exagero nos tons lavanda e com trabalhos comprometedores no cenário, no figurino, na iluminação e na trilha sonora, além das interpretações infelizmente. Ao justificar essas afirmações, o texto abaixo se propõe a oferecer algumas reflexões.

Lançado em 2005, o filme hispano-argentino “Elsa y Fred” teve roteiro de Lily Ann Martin, Marcela Guerty e de Marcos Carnevale, com direção do último. Sabe-se de uma versão teatral mexicana (2010) e se espera pela estreia nos cinemas do Brasil da produção americana estrelada por Shirley MacLaine e por Christopher Plummer (o Capitão von Trapp, de “A noviça rebelde”), essa dirigida por Michael Radford. No original, Manuel Alexandre e China Zorrilla interpretam os idosos Elsa e Alfredo, vizinhos de porta, mas com personalidades muito diferentes que se conhecem e se apaixonam quando já próximos dos 80 anos. Elsa ensina para Fred que a alegria de viver nunca deve ser perdida e recebe em troca a realização de um grande sonho alimentado desde sua juventude. No Brasil, Suely Franco e Umberto Magnani interpretam o casal de protagonistas. 

Trata-se de uma comédia dramática como tantas outras produzidas pelo cinema principalmente desde o início dos anos 90, que parte da experiência do autor Marcos Carnevale na televisão argentina, mas que tem marcas que conferem à estrutura dramática uma certa profundidade. O personagem Elsa é um todo colorido, alegre e mágico, mas que, como todo bom clown, tem dentro de si uma lágrima. Enquanto avisa que sai com as amigas, Elsa, na verdade, faz consultas médicas, o que deixa o espectador ver uma decisão particular dela de guardar de si e para si uma parte de sua vida que não é tão boa. Além disso, a imagem de Syvia Rank (Anita Ekberg) entrando na Fontana de Trevi, no filme italiano “La Dolce Vita”, de Federico Fellini, é um referencial para a a audiência de viver a vida intensamente, de rebeldia e, para Elsa, de sonhos não realizados. No entanto, e isso é bastante relevante, não é em Elsa que está a principal curva dramática da história, mas em Alfredo. Ao conhecer a nova vizinha, esse recente viúvo irá ver a sua própria vida, julgar o modo como tem agido e, então, poderá dar um passo em favor de si mesmo. “Elsa y Fred”, assim, não é um filme sobre velhice, nem sobre respeito aos idosos, mas sobre a importância de não se acomodar em qualquer das idades. Infelizmente, a montagem em cartaz Shopping da Gávea mostra apenas uma história de amor que é bela porque acontece já numa época inusitada da vida, o que é muito pouco.

Pelo que tem feito no teatro ultimamente, Suely Franco é a atriz certa para o personagem certo. A atriz tem o mérito de dizer as falas avidamente, de sustentar as cenas em excelente ritmo tanto para o drama como para a comédia, em movimentar-se com graça, em cantar lindamente e de ser a cada ano mais bonita e elegante em cena. Mas não é justo que toda a responsabilidade do mérito de um espetáculo caia sobre ela. Sob direção de Elias Andreato, o elenco numeroso de “Elza e Fred”, composto por Umberto Magnani (Fred), Mayara Magri (filha de Fred), Eduardo Estrela (genro de Fred), Antônio Haddad (neto de Fred), David Leroy (médico de Fred), Fernando Petelinkar (filho mais velho de Elza), Luciano Schwab (filho mais novo de Elza) e por Igor Dib (médico de Elza), meramente diz o texto e executa as marcas sem registros de uma contracena, com exceção de Magri e de Schwab em alguns momentos. Magnani não apresenta a considerável oposição de seu personagem em relação ao de Suely de forma a pontuar a sua modificação cena após cena até o final. Aparentemente, ele realizará o sonho de Elza, mas, após o fim, voltará a ser o que era antes, o que reduz drasticamente não só o tamanho de seu personagem, mas também o de Elza e da obra como um todo. 

Os elementos estéticos da ordem da direção de arte são responsáveis pelos piores momentos de “Elza e Fred”. No cenário de Fábio Namatame, o sofá de baixa qualidade é o mesmo nos dois apartamentos, esses expressos com paredes lisas e poucos detalhes, o que revela quase nenhum investimento. O quadro de Anita Ekberg, tão caro à personagem Elza, aparece em uma imagem 10x15cm, obrigando o público a lembrar-se tanto do filme de Carnevale como do de Fellini negativamente. Os figurinos também de Namatame, ratificando a luz e a ambientação, repetem-se em uma paleta de cores lavanda, que pouco varia entre o azul e o vermelho em uma multiplicidade cansativa de cor-de-rosa, roxo e de lilás. O excesso de contraluzes no desenho de Wagner Freire ajuda a prender a encenação em um padrão unicamente frontal que é muito raso. A trilha sonora, inteiramente executada ao vivo no teclado por Jonatan Harold, é composta essencialmente por uma melodia simples que faz a peça parecer um adocicado “power point de autoajuda”, desses que se viralizam nas redes sociais à exaustão. 

É preciso dizer, antes de findar a análise, que o espetáculo ainda pode emocionar principalmente o público de idade mais avançada que, pelos motivos óbvios, há de se identificar mais rapidamente com os personagens protagonistas. É uma pena, pois, contribuísse o teatro para essa história tanto fez o cinema para o filme, a peça atingiria a todos. 

*

FICHA TÉCNICA:
Texto e adaptação: Marcos Carnevale, Marcela Guerty e Lily Ann Martin
Tradução: Rodrigo Paz
Direção: Elias Andreato

Elenco:
Suely Franco (Elza)
Umberto Magnani (Fred)
Mayara Magri - atriz convidada (Cuca)
Eduardo Estrela (Paco)
Fernando Petelinkar (Gabriel)
Luciano Schwab (Alexandre)
Antonio Haddad (Davi)
Igor Dib (médico / garçon)
David Leroy (João)

Cenários e Figurinos: Fábio Namatame
Iluminação: Wagner Freire
Trilha Sonora Original: Jonatan Harald
Produção: Coprodução Brainstorming e Charge Produções

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

220 volts (RJ)

Foto: divulgação
Paulo Gustavo no quadro "A famosa"


Um espetáculo!

“220 volts”, o novo espetáculo do excelente comediante Paulo Gustavo, tem um único problema: a dramaturgia. O espetáculo, que é dirigido por ele e por Fil Braz, é a versão para teatro do programa de televisão exibido pelo canal Multishow com muito sucesso desde 2011. Composto essencialmente por quadros de stand-up comedy já bem conhecidos do público, a peça, em cartaz no teatro OiCasa Grande, é recheada de bons números de dança coreografados por Dudu Pacheco. A produção é assinada por Sandro Chaim e já agrada, mas poderia agradar mais se os melhores quadros estivessem no final e não no início. Uma curva decrescente é um perigo mesmo para uma peça cheia de bons momentos como essa.

Os seis personagens da noite, em termos de conteúdo, são muito parecidos. Respostas rápidas e definitivas, ausência de perguntas e grande quantidade de afirmações, pontos de vista críticos, sarcásticos e mordazes sobre o mundo, tom de voz afiado e arrogante são as matérias primas fortemente presentes em todas as figuras da peça com poucas variações. “A famosa” é uma celebridade do mundo pop que esnoba aqueles que não são tão famosos quanto ela. “A feia”, a única figura que se autocritica, conversa com o público sobre as mulheres bonitas, revelando ser essa a saída para quem é desprovido de beleza. No quadro que tem dramaturgia mais apurada de “220 volts”, a socialite racista e homofóbica “Senhora dos Absurdos”, um dos personagens mais populares de Paulo Gustavo, reclama com o público do aumento de homossexuais, negros e de pobres nas redondezas de seu prédio no Leblon, envolvendo-se em um conflito com a polícia. “Maria Alice”, a apresentadora de programa culinário na televisão, conversa sobre comportamento com os telespectadores, ensina a cozinhar e vende produtos. “A vagaba” termina com um namorado ciumento em uma balada e “Ivonete” está em um bar, esperando o resultado do concurso que escolherá a nova passista de sua escola de samba. Em todas as cenas, o diálogo tem o mérito de ser rápido, direto, cheio de voltas surpreendentes, referências do mundo atual e de imagens bastante críticas. Porém, ao abrir com a personagem “A famosa”, Paulo Gustavo mostra, já no início, o figurino mais brilhante, projeta os melhores vídeos em led, deixa ver o ponto mais alto das coreografias viabilizadas pelo corpo de baile. Além de engraçada (como também serão as demais), essa primeira cena enche os olhos e alimenta as expectativas do público que foi recepcionado por dois DJs (Giulio Rizzo e Jesus Luz) e por um prólogo bastante bem apresentado por Marcus Majella. O nível da qualidade visual dos primeiros minutos não se elevará, mas, no máximo, poderá se manter nos quadros a seguir. Infelizmente, a peça começa melhor do que termina.

Não há dúvidas de que “220 volts” é um grande espetáculo. Em cena, é visível que houve um investimento forte em todos os aspectos com exceção da dramaturgia. Os figurinos de Fause Haten (o mesmo de “O mágico de Oz” e de “Alô, Dolly”) expressam as caraterísticas dos personagens em cortes finos a partir de tecidos vistosos em peças de grande beleza que aumentam os valores visuais da produção sem abandonar o aspecto cômico. O cenário de Abel Gomes preenche o grandioso palco do OiCasa Grande com riqueza de detalhes na variação de um quadro para o outro. A iluminação de Maneco Quinderé e as coreografias de Dudu Pacheco, ao lado da trilha sonora de Zé Ricardo, são responsáveis pela proximidade que “220 volts” estabelece com o musical do gênero americano, principalmente na cena de abertura. Bruno Diaz, Cauan Vieira, Castro Himero, Flávio Rocha, Mario Beckman além de Pacheco integram o grupo de bailarinos responsáveis pelos momentos de stravaganza que entretêm o público sobretudo na troca de quadros. Marcus Majella em destaque, mas também Gil Coelho e Christian Monassa atuam ao lado de Paulo Gustavo, contribuindo para a viabilização das narrativas.

Paulo Gustavo é um artista de grande carisma na televisão, no cinema e também no teatro, cuja redenção está vista no quadro de abertura da peça “220 volts”. Seu diálogo com a plateia, nesse espetáculo, é extremamente ágil, de forma que o ritmo não cai facilmente, mantendo-se em um fluxo que é essencial para a comédia. Na exuberância da articulação dos elementos dessa produção, há vários motivos para o aplauso sincero ao espetáculo, mas também ao seu protagonista. Ele merece. 

*

FICHA TÉCNICA
PAULO GUSTAVO em “220 VOLTS
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL: MARCUS MAJELLA
COM: GIL COELHO E CHRISTIAN MONASSA
DIREÇÃO E TEXTO: PAULO GUSTAVO E FIL BRAZ
CENÁRIO: ABEL GOMES
FIGURINO: FAUSE HATEN
DESIGNER LUZ: MANECO QUINDERÉ
TRILHA SONORA: ZÉ RICARDO
PRODUÇÃO GERAL: SANDRO CHAIM
PATROCINIO: MILLS
REALIZAÇÃO: SUPERCOMBINADO PRODUÇÕES E CHAIM PRODUÇÕES

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Silêncio (RJ)

Suzana Faini é Esther, a matriarca da família
Foto: Renato Mangolin

Suzana Faini brilha em novo texto de Renata Mizrahi

Dentre os muitos bons valores de “Silêncio”, nova peça cujo texto é de Renata Mizrahi, está a forma como a autora lida com o assunto escolhido. Durante quase todo o espetáculo, o tema das judias que se tornaram prostitutas no Brasil após chegarem da Polônia é tratado com muita importância, a partir de seus conflitos e de sua complexidade. Então, chega um novo personagem à história, esse representante da nova geração dos judeus no país, e tudo aquilo que havia sido discutido com seriedade até o momento vira uma frase quase banal. O recado é simples: as coisas têm a importância que lhes é dada. Com direção de Mizrahi e de Priscila Vidca (a mesma dupla de “Os sapos”), a peça tem bons trabalhos de interpretação em que se destaca a atuação excelente de Suzana Faini. A peça está em cartaz no Sesc Arena Copacabana.

É noite de Shabat, o início do descanso judaico. Na casa da jovem Débora (Gabriela Estevão), comemoram-se os cinquenta anos de Regina (Verônica Reis), mãe de Débora e de Clara (Karen Coelho). Além deles, participam da recepção Beto (Alexandre Mofati), o pai das duas e marido de Regina, e os avós Esther (Suzana Faini) e David (Jitman Vibranoski), pais da aniversariante, avós da dona da casa. Enquanto o namorado de Débora, Flávio (Vicente Coelho), não chega, a família deixa ver quase todas as opiniões que uns têm sobre os outros, revelando vários meandros de uma relação familiar bastante complicada. Rapidamente, se reconhecem as oposições, as discordâncias, as proximidades e as distâncias entre os personagens. O texto vai se tornando metáfora para relações reais, criando pontos de reflexão bastante interessantes para o espectador interessado em pensar sobre si mesmo e sobre como a família e a sociedade são vitais na constituição da identidade do indivíduo.

Ao lado do texto, a encenação constrói um quadro equilibrado e bem disposto. Enquanto dois ou mais personagens falam, é ainda possível identificar conteúdo nas faces silenciosas. A qualidade do jogo de encenação de Mizrahi e de Vidca preenche os espaços quase sem cenário, conduzindo a narrativa pela potencialização dos signos teatrais. Quando os personagens saem da cena principal, continuam sendo vistos, mas não veem a cena, estabelecendo assim uma outra cena paralela que é também muito interessante porque sustenta o assunto, estabelece a tensão. Assim, o ritmo avança de forma irregular e positiva, apresentando, desenvolvendo e concluindo a história de forma meritosa.  A ebulição anunciada acontece, mas o fim continua sendo surpreendente. E belo.

Todos os atores viabilizam bons trabalhos de interpretação, mas Suzana Faini se destaca não só pelo personagem privilegiado, mas pela forma minuciosa com que a atriz dá a ver a sua matriarca. Mantendo na dureza do olhar a força das reações de sua Esther, a intérprete gera uma atenção que alcança na forma o que o diálogo por si só também diz. O grande número de falas fica em mesmo nível que a atenção que sobre ela se desperta. Acertadamente, é Esther a protagonista uma vez que é sua a maior curva dramática dentre as várias de “Silêncio”.

O cenário de Nello Marrese e o figurino de Bruno Perlatto têm uma participação bastante relevante. Apesar da época contemporânea em que a história se passa, o figurino de Débora e os móveis de sua casa remetem a uma época que já passou, expressando um certo conservadorismo não apenas da personagem anfitriã, mas também do seu ponto de vista central. A força dos ritos da tradição judaica perpassam de alguma forma, assim, todos os lugares estéticos da peça, isolando a personagem Clara, a antagonista, positivamente. Com isso, cenário e figurino atuam decisivamente para uma virada cênico-dramatúrgica que é essencial para o aplauso final.

Ao tratar sobre a forma como a história das judias “polacas” foi renegada por si próprias e pelos seus descendentes, além da comunidade judaica ao longo do século, a peça “Silêncio” resgata não apenas uma parte da história da imigração no Brasil, como propõe uma reflexão sobre a fuga dos assuntos que mais nos incomodam. O espetáculo defende que feridas precisam ser tratadas para que as cicatrizes diminuam. Bravo!

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FICHA TÉCNICA:
TEXTO E IDEALIZAÇÃO: RENATA MIZRAHI
DIREÇÃO: PRISCILA VIDCA E RENATA MIZRAHI

ELENCO:
SUSANA FAINI
KAREN COELHO
VERÔNICA REIS
JITMAN VIBRANOVSKI
ALEXANDRE MOFATTI
VICENTE COELHO
GABRIELA ESTEVAO

STAND-IN:
FLÁVIA MILIONI
LÉO WAINER
ZÉ GUILHERME GUIMARÃES

CENÁRIO: NELLO MARRESE
ASSISTENTE DE CENOGRAFIA: LORENA LIMA
FIGURINO: BRUNO PERLATTO
ILUMINAÇÃO: RENATO MACHADO
ASSISTENTE DE DIREÇÃO: FLAVIA MILIONI
DESIGN GRÁGICO: MÁRCIO FREITAS
FOTOGRAFIAS: RENATO MANGOLIN
PRODUÇÃO EXECUTIVA: TAMIRES NASCIMENTO
ADMINISTRAÇÃO: ALAN ISIDIO
ASSESSORIA DE IMPRENSA: SG ASSESSORIA DE IMPRENSA SHEILA GOMES
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: SANDRO RABELLO
REALIZAÇÃO: ISÍDIO PRODUÇÕES E DIGA SIM! PRODUÇÕES

A crise dos 20 e poucos anos (RJ)

Foto: divulgação
Jessika Menkel, Firmino Cortada e Alvaro Pilares em cena

A falta de um conceito sólido

A peça “A crise dos 20 e poucos anos” não tem uma dramaturgia, nem literária, nem cênica, que dê conta de segurar o espetáculo de cinquenta minutos infelizmente. A descrição no programa não concorda com o espetáculo a que se assiste, e vice-versa, oferendo um objeto de análise que melhor propõe reflexões sobre a importância de uma boa dramaturgia como ponto de partida para um bom espetáculo. Finda a temporada no Sesc Casa da Gávea, ficam alguns questionamentos que podem resultar em reflexão interessante.

Na abertura, tem-se uma situação inicial que é parcialmente construída. Há um personagem Paciente (Firmino Cortada), um divã e um personagem Psiquiatra (Álvaro Cortada). Uma Terceira Pessoa (Jéssika Menkel) faz, talvez, o papel de consciência do Paciente. Ao longo da apresentação, haverá um diálogo que aprofunda parcamente os detalhes dessa situação inicial, informando um pouco mais a respeito desses personagens , mas que não modifica a trama de forma que a história avança pelo tempo, mas não se constrói em termos de narrativa. Ao final, tem-se a impressão de que, tudo exposto, a peça ainda está por começar.

Filho de família rica, o Paciente está no consultório em terapia exigida e financiada pela mãe. Durante a primeira parte da sessão, os diversos preconceitos do personagem serão expostos, mas sem objetivos claros diegeticamente. Demolir um hospital em Ipanema e construir um shopping no lugar, substituir a Pedra do Arpoador por um deck regado a champagne, e bloquear as saídas de metrô que "empesteiam" a praia em sua proximidade são imagens de humor negro que fazem rir, mas que não se desenvolvem enquanto um estilo nessa dramaturgia (ver como o gênero acontece nos textos de Nick Silver, por exemplo). Durante o ato único, ainda há o planejamento por parte do Paciente do velório da própria mãe e as conversas sobre o seu futuro profissional. Em meio a isso, o Psiquiatra diz frases como “Você não tem cultura!” que levam o espectador duvidar se está mesmo diante de um psiquiatra. Nesse sentido, o espectador não tem diante de si bases suficientemente sólidas para fruir o espetáculo "A crise dos 20 e poucos anos", nem como uma narrativa clássica, tampouco como uma comédia dissertativa de episódios.

Sem se posicionar nem enquanto tema (no que diz respeito à articulação dos assuntos ou dos pontos de vista sobre o tema), nem enquanto obra de arte (pelo resgate ou pela atualização de estilo, de gênero ou de tipo textual), “A crise dos 20 e poucos anos” oferece um contexto que não é propício para a avaliação dos trabalhos de interpretação ou dos elementos visuais (cenário, iluminação e figurino). Não está claro o conceito, portanto não há como refletir sobre como as marcas permitem ver o que não está claro. Fica aí a discussão acerca da importância de serem viabilizadas marcas bastantes que possam mais claramente identificar a obra.

“A crise dos 20 e poucos anos” não parece estar pronto ainda.

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Ficha Técnica:
Texto: Firmino Cortada
Elenco: Alvaro Pilares, Firmino Cortada e Jessika Menkel
Direção: Cleiton Rasga
Cenário: Vanessa Alves e Guilherme Reis
Figurino Helena Labri
Trilha sonora: Cleiton Rasga
Preparação vocal: Natália Fishe
Desenho de luz: Felipe Medeiros
Publicidade virtual: Luiz Antonio Pontes
Fotografia e arte: Karla Kalife
Produção: Firmino Cortada