quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Resquícios (RJ)

Elenco em cena
Foto: Gutemberg Brito

Enternecer

Em “Resquícios”, o teatro contribuiu muito pouco para a atualização de “Marcovaldo”, do italiano Italo Calvino ( 1923-1985), publicado em 1963, e agora adaptado para teatro pelo grupo dirigido por Carmen Frenzel. Não há uma regra que diz que as peças adaptadas devem ser exatamente como as obras originais. (“Tieta”, de Aguinaldo Silva, por exemplo, foi uma novela muito mais interessante do que é o romance “Tieta do Agreste”, de Jorge Amado.) O fato é que, quando algo ou alguém resolve atualizar (não confundir com contemporaneizar) uma obra, há que se pensar no que de melhor tem o novo sistema a fazer ver a estrutura anterior. Essa peça, revela bons trabalhos de interpretação, todos alunos formandos da Escola Técnica Martins Pena, e tem o mérito de evocar o universo de Calvino, o qual podemos relacionar facilmente com o de Dostoévski e o seu Príncipe Michkin, e o Lispector e a sua Macabeia. A peça esteve em cartaz no Teatro Armando Costa, na Lapa, onde funciona a escola onde os atores fizeram a sua recente formação.

Dentro da literatura neorrealista de Calvino, estamos dentro do personagem protagonista, contemplando o mundo lá fora. “Contemplar” é a chave que divide o neorrealismo do outros realismos, pois aqui não é o personagem com o qual nos identificamos que faz a crítica, mas ele é a crítica. Como Michkin e como Macabeia, Marcovaldo é o contraponto de um mundo hostil, duro, árido, aterrador. Pai de uma família pobre e com muitos filhos, ele conserva em si um ar infantil que pontua uma oposição marcada na realidade em que vive. Para Calvino, de um lado, há o mundo e, de outro, há Marcovaldo. O que o move ao longo dos acontecimentos (é um livro de contos) não são os fatos, suas causas e suas consequências, mas o tempo, as necessidades momentâneas, as situações em que se vê envolvido, sem planos, estratégias ou ambições. Sem dinheiro algum, a família faz uma visita ao supermercado e experimenta o prazer (?) de olhar os outros comprarem. Uma plantação de cogumelos na rua causa um alvoroço com um gari. O encontro com um menino rico é um emblema. A perseguição de um gato, que o leva a uma casa cheia de gatos, o faz conhecer uma senhora aprisionada. A entrega de presentes da empresa onde trabalha para os filhos dos funcionários, ofício esse que Marcovaldo divide com os próprios filhos, define uma relação com a família e no trabalho. Ou seja, nenhum fato é antecedente dos demais, podendo ser desorganizados, reorganizados, redistribuídos, porque o verdadeiro protagonista é a cidade que tenta inutilmente enterrar Marcovaldo, mas não consegue, tão maleável ele é.

É difícil reconhecer esse universo na adaptação de Carmen Frenzel, porque a figura do protagonista é interpretada por vários dos 17 atores que estão em cena, todos eles usando tons pastéis. Exatamente como aconteceu em “Nem mesmo todo o oceano”, dirigido por Inez Viana (aí temos o realismo naturalismo, que é parecido com o neorrealismo, mas diferente!), o espalhamento do eixo principal dá muita responsabilidade para os fatos que, na verdade, são sem importância. O ritmo parece se arrastar muito mais, porque, então, uma curva dramática torna-se necessária, o que, na narrativa em quadros, isso não é fundamental. De um modo geral, como está dado, “Resquícios” parece mais servir para ver-se os bons trabalhos de interpretação do que propriamente nos contar uma história.

Destacam-se Hikari Amada, Juliana Marins, Junio Duarte, Letícia lecker e Mariana Novaes, embora seja de extrema relevância para o trabalho o belíssimo desenho de luz de Renato Machado, a direção musical de Marcio Carvalho e de Raoni Costa, esses que também assinam as composições musicais, e a preparação vocal de Josane Custódio. Como já se disse, a concepção de Carmen Frenzel para a adaptar “Marcovaldo” traz mais problemas do que ganhos, mas, dentro do que se propôs, se mostra coesa e coerente, pois “Resquícios” é, de fato, uma estrutura una que se movimenta do todo às partes e das partes ao todo. O destaque feito a alguns trabalhos de interpretação se justifica pela forma íntegra com que os intérpretes atuam nas cenas e nas cenas com o público, evidenciando carisma, mas também excelente dicção, boas pausas, ótima dosagem das intenções, além de presença corporal admirável.

Em meio a uma selva de tiros, corrupções, manifestos, opiniões e muito calor, Marcovaldo nos faz lembrar de todas as gentes humildes que vivem alheias às grandes questões e nos fazem ver a beleza que é simplesmente esperar para tomar uma cerveja diante do gol do Brasil.

*

Ficha técnica:
Espetáculo inspirado na obra de Ítalo Calvino
Direção: Carmen Frenzel
Direção Musical e Composições Originais: Marcio Carvalho e Raoni Costa
Preparação Corporal: Vera Lopes
Preparação Vocal: Josane Custodio
Iluminação: Renato Machado
Cenário: Aldecir Azevedo
Figurino: Nivea Faso
Visagismo: Rogerio Garcia
Orientação teórica: Fabio Lima
Orientação de produção: Flávio Leandro
Apoio de pesquisa: Cris Muñoz
Programação visual: Ricardo Rocha
Tradução: Alessandra Barbagallo

Elenco:
Andrea Romão
Caio Passos
Deisi Margarida
Diogo Rodrigo
Erick Villas
Felipe Silcler
Fred Bilheri
Hikari Amada
Isadora Marinho
Jessica Obaia
Joice de Negri
Joyce Francisco
Juliana Marins
Junio Duarte
Letícia Iecker
Mariana Novaes
Sheilla Garcia

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O duelo (RJ)

No centro, Vanderlei Bernardino
Foto: divulgação

Mais uma excelente produção da Mundana Companhia

De torto, esse Tchekhov não tem nada. Nova produção da Cia. Mundana de Teatro, a mesma de “O idiota – uma novela teatral”, o espetáculo “O duelo” investe no realismo psicológico do dramaturgo e romancista russo e, sabendo que o teatro é mais vivo que a literatura, ou pelo menos outra coisa, vai além inteligente e positivamente. Ou seja, ao contrário de dissociar o universo do autor e o “experimento narrativo”, temos aí um investimento sublime do teatro em relação à dramaturgia, esse feito por um grupo que reconhece o valor do segundo, mas se sabe (bom) fazedor do primeiro. Dirigido por Georgette Fadel, em “O duelo”, se vêem bons duelos. Antes de ser entre um funcionário público (Laiévski, Aury Porto) e um zoólogo (Von Koren, Pascoal da Conceição), esse duelo é entre o protagonista (Laiévski) contra si mesmo, tornando-se, depois, entre o antagonista (Von Koren) e si próprio também. E toda a “espetaculosidade” dos elementos utilizados em cena nada mais são que ótimos corrimões para a descida do espectador adentro do universo psicológico do funcionário. Em cartaz no Espaço Tom Jobim, a montagem vale a pena ser vista por vários motivos, alguns dos quais serão tratados abaixo.

Em um primeiro momento, temos ou personagens sem problemas ou personagens cujas soluções encontram-se externas a eles. Laiévski é o protagonista porque ele é o único (ou o primeiro a aparecer assim) que, desde o início, tem um problema que só ele poderá resolver ou deixa-lo sem solução. Há dois anos, Nadiejda (Camila Pitanga) abandonou o marido para seguir com Laiévski para o Cáucaso, uma região ao sul da Rússia Europeia, banhada pelo Mar Negro. A peça começa quando Laiévski confessa para seu melhor amigo, o médico Samóilenko (Vanderlei Bernardino), que já não está apaixonado pela mulher com quem vive e não sabe o que fazer com ela, visto que ela depende dele. O sentimento de Laiévski fica ainda mais complexo quando ele recebe uma carta que diz que Dimov, o marido de Nadiejda, faleceu. O fato autoriza o funcionário a casar-se com sua concubina finalmente, que é justamente o que ele menos quer. Esse é o universo do russo Anton Tchekhov (1860-1904) que faz com que uma novela escrita em 1891 possa ser plena e maravilhosamente atual. Longe da Rússia e estando oficialmente Nadiejda viúva, não há nada que impeça Laiévski de se casar com a mulher com quem mora. Só que isso ele não quer.

Enquanto esse lugar significativo se estrutura na cabeça do espectador, Fadel apresenta com calma os outros plots que dão sustentação à trama principal. Conhecem-se o casal Bitiugova (Carol Badra) e o militar Kirílin (Sergio Siviero), a única família na cidade que recebe Nadiejda e Laiévski, apesar de não serem esses últimos oficialmente casados. Também, o diácono da cidade (Fredy Állan), o comerciante Atchmiánov (Guilherme Calzavara) e o zoólogo Von Koren (Pascoal da Conceição). Entre programas fúteis, como banhos de mar, almoços, picnics e festas de aniversário, a sociedade se expõe e se deteriora na visão recorrente na literatura de Tchekhov. Sem saber um do outro, o comerciante e o militar almejam a atenção de Nadiejda. Enquanto isso, o diácono e o zoólogo planejam uma expedição para estudar a fauna local, momento em que o Von Koren expõe suas opiniões acerca do desenvolvimento humano em relação à lei do mais forte seguida pelos animais. É quando se conhece, de um lado, a ojeriza declarada que Von Koren tem por Laiévski, e, de outro, a ojeriza velada que Bitiugova tem por Nadiejna, por terem, o funcionário e sua amante, trazido o pecado para a pequena localidade. Apesar de demorar a descrever os momentos, Tchekhov e Fadel andam rápido com a narrativa: toda a história de “O duelo” se passa em alguns dias, menos que uma semana.

Se o novelista russo usa das palavras para compor a estrutura do duelo final, a diretora Georgette Fadel, assistida por Diego Moschkovich, tem outros recursos para chegar lá. O tempo gasto com diálogos frívolos na literatura é o tempo dispensado a contemplar o plástico preto a fazer ver o Mar Negro, a grande bolha de plástico verde a ver a Cordilheira do Cáucaso e as luzes de aparelhos celulares da plateia a fauna noturna daquela região, por exemplo. E há também contrastes bem marcados: o verde versus o laranja, o preto versus o branco, que, depois, evoluirão para profusão de cores junto com a narrativa cênica.

“O duelo”, como peça teatral, faz um bonito passeio por sobre os gêneros cênico-narrativos. O realismo psicológico de Tchekhov e de Ibsen (e de Doistoiévski e de Machado de Assis) dá lugar para o besteirol e, por fim, ao romantismo em uma espécie de “carnaval” que é muito interessante. Enquanto o primeiro joga o espectador para dentro da moral de um personagem e critica a sociedade em que vive por meio dele, o segundo não elege personagem algum, mas critica através da franca ironia abertamente. Depois do exagero da crítica, vem a não-crítica, isto é, o ideal romântico. Ou seja, mais do que um fetiche por estruturas cênico-narrativas longas (essa peça tem quase 4horas e “O idiota – uma novela teatral” tem quase 8horas), a experiência é conduzida de forma harmônica durante a sua viabilização. Fadel, com maestria, parece saber que 1) a história precisa de tempo para ser bem contada; e 2) o espectador precisa de confortabilidade para aguentar todo esse tempo. Sem falar nos elementos da produção (as cadeiras, o teatro, etc), os elementos teatrais estão dispostos a oferecer o sabor certo para a hora adequada. Entre o aniversário da filha de Bitiugova e a cena do bar, o besteirol espalha o ridículo daquela sociedade nauseabunda. Entre a volta ao local onde o picnic aconteceu e o final, o romantismo define, como em “A gaivota”, quem é realmente o herói (Arkadina) e quem é o fraco (Treplev). Ainda sobre a dramaturgia tanto literária quanto cênica, vale observar o momento precioso em que Von Koren se torna, de fato, o antagonista oficial. Ou seja, o quando ele passa a entrar em conflito consigo próprio. É também o momento em que o problema central de Laiévski se mostra em sua totalidade e, enfim, desaparece. Se a história fosse continuar, seria em Von Koren, a versão Hitler do gênio Tchekhov, que, aliás, mal conheceu o século XX.

Em termos de interpretação, “O duelo” é de Vanderlei Bernardino, o intérprete do pior personagem da peça, isto é, aquele com mais desafios e, por tê-los vencido todos, com mais méritos. O médico Samóilenko tem como única função ser escada para acontecimentos em que os outros se envolvem, mas sua figura é tão marcante, suas cenas são tão bem defendidas que sua imagem ressoa na retina do espectador mais atento depois do fim da peça. Depois disso, não é difícil fazer outros destaques. Aury Porto sustenta uma interpretação nervosa durante três quartos da peça para, enfim, aquietar-se e evidenciar, assim, a curva dramática do seu personagem positivamente. Camila Pitanga, uma estrela da TV, está em um trabalho teatral totalmente entregue, disponível e íntegro. Nadiejda seduz muito mais do que é seduzida e a inércia dessa personagem praticamente apenas passiva é estruturada com força evidente, em especial, no momento de loucura da personagem diante de suas dívidas no comércio local. Carol Badra chama a atenção nos momentos cômicos, mas mostra igual sucesso no drama, sobretudo em cena em que diz sobre os papéis da mulher na sociedade. Fredy Állan, Guilherme Calzavara, Otávio Ortega, Pascoal da Conceição, Sérgio Siviero, Rafael Matede e Victor Gally merecem elogios também.

Os melhores momentos do figurino de Diogo Costa são o vestido branco de Bitiugova e o vestido também branco de Nadiejda. No primeiro, vêem-se todas as amarras sociais que cerceiam o comportamento da mulher no fim do século XIX naquele local com absoluta elegância. No segundo, vemos a personagem completamente integrada à situação de tempestade, essa exposta externamente (uma explosão de papel faz ver os raios e a trilha sonora os trovões) e internamente (Laiévski completamente insano, escrevendo cartas para sua mãe enquanto espera o amanhecer). Os demais figurinos não são menos positivos. Em “O duelo”, é destaque a sonoplastia de Otávio Ortega. Os sons que se ouvem durante toda a narrativa reforçam o realismo a bom nível cinematográfico. Iluminação e direção de arte também merecem aplausos.

Não seria mal se a Tchekhov fosse dispensado um lugar secundário em “O duelo” diante da potencialidade da articulação dos signos teatrais nessa montagem da Mundana Companhia. O caso é que, talvez por ser uma novela e não um texto dramático primeiramente, é correto afirmar que o russo está ainda melhor. Eis aqui mais um excelente espetáculo teatral.

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FICHA TÉCNICA:
Autor: Anton Tchékhov | Tradução: KlaraGuriánova | Adaptação: Vadim Nikitin e Aury Porto |Colaboração na Adaptação: Camila Pitanga | Elenco: Aury Porto, Camila Pitanga, Carol Badra, Fredy Allan, Guilherme Calzavara, Otávio Ortega, Pascoal da Conceição, Sergio Siviero e Vanderlei Bernardino | Direção: Georgette Fadel |Assistente de Direção: Diego Moschkovich | Direção de Arte / Cenografia: Laura Vinci | Assistente da Cenografia: Marília Teixeira | Iluminação: Guilherme Bonfanti | Assistente da Iluminação / Operação de Luz: Rafael Souza Lopes | Direção Musical: Otávio Ortega e Lucas Santtana | Operação de Som: Otávio Ortega | Direção Vocal e Interpretativa: Lúcia Gayotto | Preparação Corporal: TarinaQuelho | Figurino: Diogo Costa | Figurinista Assistente: Dami Cruz | Assistentes do Figurino: Tarsila Furtado e Ana Dinniz | Visagismo: Theo Carias | Direção de Cena: Rafael Matede | Contra-Regra: Victor Gally | Camareira: Terezinha Caetano | Equipe de Montagem: Grupo Bastidores | Coordenação da Montagem: Rafael Matede e Rafael Souza Lopes | Coordenadora de Comunicação: Daniela Cantagalli | Assessora de Imprensa: Mônica Riani | Programação Visual: Elaine Ramos e Mateus Valadares | Núcleo de Comunicação Processo de Ensaios: Camila Marquez, Fredy Allan e Simone Elias | Fotos: Renato Mangolin | Criação de Site e manutenção: Thaís Guedes – Coreto Editorial | Escultura Inflável: Franklin Cassaro | Estilistas Convidados: Alexandre Herchcovitch, Paula Pinto, Lino Villaventura (Vestido vermelho aniversário de Káthia – Camila Pitanga; Figurino julgamento de Mária – Carol Badra) | Construção do Cenário: Leo Porto Carrero, Jessé Pereira e Jr. Calazans | Costureiras: Aline Gomes, Chaguinha, Lucinha, Odaide Baía, Vânia Sideaux | Ajudantes de Costura: Nayane Gomes e Daniel | Palestrantes: Aurora Bernardini, José Antônio Pasta, Svetlana Ruseishvili e TiezaTissi | Estagiário de Direção: Vicente Ramos | Produção: Camila Pitanga e Aury Porto | Direção de Produção: Sérgio Saboya | Produção Executiva: Carolina Chalita | Apoio Produção em São Paulo: Bia Fonseca | Contabilidade: GESPLAN Assessoria Contábil | Financeiro: Alex Nunes | Administração: Letícia Souza | Idealização do projeto: Aury Porto | Realização: mundana companhia | Patrocínio: Caixa Econômica Federal | Co-Patrocínio: Correios

As bondosas (RJ)

Astúcia, Angústia e Prudência
Foto: divulgação

A comédia que (se) rasga

Na segunda metade de 2013, uma gratíssima surpresa estreou na programação de teatro carioca e agora cumpre apresentações em outros palcos do estado. Trata-se de “As bondosas”, espetáculo a partir de “As criadas”, de Jean Genet, escrito pelo maranhense Ueliton Rocon e dirigido por Tom Pires. Levando o público para um Brasil distante, mas não menos Brasil, a peça acontece no velório de um desconhecido em que três carpideiras cumprem o seu ofício de rezar pela alma do cliente. Prudência (Sidcley Batista), Angústia (Gerson Lobo) e Astúcia (Leandro Mariz) são três mulheres de reputação ilibada, castíssimas em vivenciar vinte e quatro horas por dia os desafios de suas cruzes. Não se veem peladas para não despertar a vaidade, não tomam banho nuas para não tocarem o próprio corpo, vivem a purgar em si os males da humanidade. Na encenação de Pires, o mérito com que a produção conta a si mesma vem do jogo de cena, sempre vibrante, cheio de surpresas e em uma bonita curva dramática ascendente. É uma produção da Cia. Teatro Investigativo.

“As bondosas” é uma metáfora para a hipocrisia, mas seria um espetáculo tolo se fosse apenas para a hipocrisia social. Não é. A comicidade surge das situações em que se vê o quanto cada uma das três mulheres esconde de si próprias as suas vontades mais secretas. No momento em que uma revela (antes para si) parte de seu caráter mais íntimo, as demais começam a reagir ou elevando seus padrões ou aliviando-se em fazer o mesmo. A gula e a fofoca são os primeiros pecados a transbordarem. No início do velório, aparentemente absortas em suas orações, o trio sente falta de alguém que lhes ofereça, ao menos, uma xícara de café. Enquanto sentem o cheiro da bebida fumegante que invade a sala, olham ao redor e reparam na forma como se comportam os presentes. Como foram contratadas, não são íntimas dos contratantes e, assim, resta-lhes entender o que se passa pela observação. Possíveis traições, segredos imanentes, falta de valores, de sensibilidade e de religião são o que supõem (sem confirmar) ver, denunciando a si próprias. Nenhuma delas se dirige a ninguém, conservando, na medida do possível, os olhos baixos e a oração intermitente. "Por que as pessoas não rezam também? Por que não lhes servem algo? Algum deles (a) tem dignidade o suficiente para lhes dirigir o olhar?" Nesse patrulhamento da moral, acabam por exporem-se a si próprias, causando-lhes horror a si e as demais, e fazendo o público gargalhar.

Prudência (Batista) é quem parece liderar o trio por ser também a mais velha e, portanto, a que há mais tempo está em "estado de purificação". Tendo sido casada outrora, fugira do marido, apavorada com o medo de pecar, antes de "consumar a lua-de-mel" (é o que anuncia). Sob sua batuta, todo o universo de regramento é desvendado para o público que, na boa direção de Pires, vai valorando os elementos que surgem não mais a partir de fora da narrativa, mas a partir dos personagens que estão em volta deles. Quando, por exemplo, um sapato vermelho aparece, não é apenas um objeto de vestuário, mas está impregnado de toda uma carga de liberdade que é resultado de uma boa estrutura narrativa bem articulada.

Os figurinos de Leandro Mariz são positivos porque são vivos, isto é, possuem marcas de vida além do recorte narrativo. São bons também, porque expressam o exagero que nutre as opções estéticas assumidas e renegadas pelas personagens. O cenário de Sidcley Batista auxilia a direção em criar uma situação que se movimenta em paralelo ao mundo além dali: a) os familiares do morto, que dormem deixando-as sozinhas madrugada a dentro no local; b) o sul do país, que está mais preocupado com outras questões e menos com as "almas ilibidas" dos confins do sertão. As caixas fazem evoluir os lugares narrativos, se modificarem e expressarem, assim, esse transbordamento das emoções que marcará a vida dessas personagens.

Sem dúvida, o mérito maior é do trabalho de interpretação pela forma como articulam os elementos argumentativos do discurso primeiro para, em seguida, quebrar com todos eles e, nesse processo, manter felizmente o interesse pelo novo que sempre aparece. O trio, sem destaque, está excelente, fazendo dessa produção um excelente programa! Parabéns!

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Ficha Técnica:
Texto - Ueliton Rocon
Pesquisa musical e Direção - Tom Pires
Atores - Gerson Lobo / Leandro Mariz / Sidcley Batista
Cenário - Sidcley Batista
Figurino - Leandro Mariz
Iluminação - Eduardo Salino
Realização: Cia.SOS de teatro Investigativo

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Callas (RJ)

Silvia Pfeifer e Cássio Reis em cena
Foto: divulgação

Uma ruim imitação de Callas

“Callas” só fica bom quando a personagem título olha para o jovem jornalista John, seu amigo, e lhe pergunta sobre como anda a vida dele. Nesse momento, o espetáculo deixa de ser um “wikipedia” sobre a cantora lírica mais importante dos últimos séculos e uma das personagens mais interessantes da história do mundo ocidental e passa a ser algo relevante por si só e não apenas sobre o tema que traz. Desse momento para o final, o lado mais humano, e aterrador, de Callas vai transparecendo positivamente na dramaturgia de Fernando Duarte, autor de “Orgulhosa demais, frágil demais”, que também é sobre Callas (mas essa em um encontro com Marilyn Monroe) e também está atualmente em cartaz. Mal dirigido por Marília Pêra, a peça tem trabalhos de interpretação de Sílvia Pfeifer e de Cássio Reis muito ruins. Está em cartaz no Teatro Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro.

No dia 15 de setembro de 1977, em Paris, John Adams (Cássio Reis) finaliza os preparativos para exposição de figurinos e cenários dos espetáculos mais importantes da vida de Maria Callas, que faleceu em 16 de setembro do mesmo ano – o dia seguinte. A peça começa quando Callas (Silvia Pfeifer) entra na galeria, atendendo a um convite do organizador, jornalista e amigo para conferir tudo aquilo que o público em geral poderá ver a partir do dia seguinte quando as portas da galeria se abrirão. Em um determinado momento da conversa entre os dois, Callas diz que já conhece John há dois anos e que os dois são amigos. Começam aí os problemas da dramaturgia. De um lado, John dá um tapinha na “bunda” de Callas, evidenciando uma intimidade entre os dois que é reveladora. De outro, um gravador de fita cassete - não fica claro se está ou não ligado – apresenta a possibilidade do encontro, apesar de entre amigos, ser profissional, o que justificaria uma sequência de perguntas de John à Callas sobre sua vida, sua carreira, sua fama. Ficam as dúvidas: 1) Se os dois se conhecem, John já teria todas as respostas para as perguntas que faz; 2) Se John está fazendo uma entrevista, o gravador deveria estar ligado e Callas atenta ao que está dizendo, pois a situação deixou de ser íntima e passou a ser pública a partir do momento em que o botão “recording” é acionado; 3) Na dramaturgia de Duarte, vemos Callas alternando discursos: um público e sóbrio, um íntimo e emotivo, um exagerado e caricato, de forma que as bases para o encontro não se definem. Durante três quartos da narrativa, não há ação, mas apenas a exposição de informações a que o público ou já sabe ou tem acesso na internet, tornando o espetáculo em uma biografia superficial e nada além, enquanto Callas veste e desveste seus velhos figurinos famosos. Eis então que Callas mostra interesse pelo bem estar de John. Nesse momento, o público se encontra com uma outra história, pois começa-se a conhecer uma mulher – e não apenas uma diva do Bel Canto – solitária, mendigando por atenção, ela que foi ovacionada nos maiores e mais importantes palcos de todo o mundo. Infelizmente, logo em seguida, a peça termina.

Silvia Pfeifer tem um trabalho de interpretação cambaleante. A voz rouca e a irritação envidenciam mais um tipo que realmente uma mulher que existiu além da narrativa. Suas respostas são marcadas, seus movimentos partiturarizados, as reações previstas. A gargalha silenciosa com a mão próxima à boca é uma caricatura. Pfeifer imita Callas mais do que a interpreta infelizmente. Ao seu lado, Cássio Reis exibe igualmente um investimento na criação de um tipo meramente superficial: um jornalista homossexual afetado que tenta disfarçar de todos sua orientação sexual e apenas isso infelizmente. Talvez porque ajudados pela boa curva dramática que o texto traz nos momentos finais, nesses poucos minutos, é possível reconhecer trabalhos melhores. Pfeiffer deixa ver uma Callas mais trágica e, por isso, mais forte do que ela mesma parece saber e Reis permite ver um personagem que existe além daquela situação e que, seu melhor, tem um ponto de vista crítico por sobre a mulher que pensa nele como seu amigo. Quando a peça termina, a dúvida sobre a sinceridade do relacionamento entre Callas e John é o único motivo para o aplauso.

A direção de Marília Pêra parece ter se esforçado não para resolver os problemas de interpretação ou de dramaturgia, mas para driblar a visão do público deles. Dessa forma, consegue-se ver os aspectos negativos somente depois de avançarmos através dos belos vestidos espalhados pelos cenário, dos vídeos e fotografias projetados ao longo das cenas e dos textos também visíveis, alguns bem longos. Tudo isso, embora bom, tira o foco do principal que, como já se disse, não é bom, em uma artimanha da direção que é negativa.

“Callas” tem bons figurinos coordenados por Sônia Soares (alguns já existiam antes da narrativa) em boa articulação com o cenário de Rafael Guedes e com a dramaturgia do espetáculo. O senão é para a roupa de John (Reis): nem de longe, temos ali uma figura parisiense do final dos anos 70.

Do mesmo autor e com a mesma personagem, vale a pena ver “Orgulhosa demais, frágil demais”.

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Ficha Técnica
Autor: Fernando Duarte
Direção: Marília Pêra
Elenco: Silvia Pfeiffer e Cássio Reis
Figurinista: Sonia Soares
Cenógrafo: Rafael Guedes
Design de luz: Paulo Cesar Medeiros
Trilha Sonora: Paulo Arguelles
Design de som: Alessandro Person
Direção de projeções: Paola Soares
Visagismo: Evânio Alves
Assistente Marilia Pêra: Nilza Guimarães
Assistente de direção: Mayara Travassos
Design gráfico: Ronaldo Filho
Fotos material gráfico: Renata Dillon
Assessoria de imprensa: Will Comunição e Luiz Menna Barreto
Produção executiva: Fernando Duarte
Direção de produção: Cássia Vilasbôas
Produtores associados: Cássio Reis e Fernando Duarte
Realização: NOVE Produções Culturais

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Educando Rita (RJ)

Foto: divulgação

Ponto de vista inovador sobre situação já conhecida.

“Educando Rita” está mais próximo de “My fair lady” do que “Blue Jasmine” está de “Um bonde chamado desejo”, com direito, inclusive, a um número de “Without you” (que não é nem do original de Bernard Shaw, nem do mito de Pigmalião, tampouco de qualquer outra versão) do musical de Alan Jay Lerner e de Frederick Loewe. Os problemas de lá são os mesmos que os daqui: uma história de amor sem beijo parece uma coisa muito improvável, porém essa é também sua beleza. Avançando por sobre as fontes, vemos o mérito das interpretações de Marianna Mac Niven e de Claudio Mendes (a aluna e o professor) em entreter o público que já sabe como tudo vai terminar desde o princípio. No palco do Teatro Café Pequeno, eis uma gangorra já reproduzida milhares de vezes, mas que ainda agrada quando é bem feita, como aqui é o caso.

Rita (Mac Niven) é uma cabelereira, cansada das “conversas de salão” e do seu jeito de falar simples e barulhento, tal qual a florista Eliza Doolittle e seu sotaque cockney. Frank (Mendes) é o professor universitário de literatura soberbamente solitário (mesmo que casado) e muito orgulhoso de si, tal qual o professor de fonética Henry Higgins. (A sutil diferença entre ambos é que, a princípio, Higgins rejeita Eliza porque a acha uma aluna impossível. Frank rejeita Rita, porque não acredita que o que ele sabe pode fazê-la melhor.) O conflito de valores vai se mostrando mais interessante a partir da sucessão das cenas, o que é um mérito. Em outras palavras, quanto mais distante de Shaw e de Lerner o britânico Willy Russel, autor desse texto, vai, melhor é. Se, em “My fair lady” (ou em “Pigmalião”) o conflito é entre duas pessoas, aqui ele está de uma pessoa para si própria. Rita está decidida a mudar, por mais difícil que isso seja. Frank está decidido em permanecer como está, por mais perigoso que isso possa se tornar. As circunstâncias em volta de cada um vão se mostrando como largos obstáculos, mas, cada um por si, ambos vão vencendo enquanto podem. Assim, voltando à imagem da gangorra, temos a ascenção de Rita versus a decrepitude de Frank, os problemas familiares da cabelereira versus os problemas profissionais do catedrático. Aumenta, a cada passo, a necessidade de equilíbrio e diminuem as possibilidades disso acontecer na mesma medida, o que sustenta o bom ritmo da narrativa. Positivamente, a curva dramática é ascendente.

Claudio Mendes, que dirige a peça, e Marianna Mac Niven, que traduziu o texto original, têm o mérito de boas interpretações vistas a partir da forma como fazem seus personagens partirem dos arquétipos já construídos de Eliza e de Higgins em versão brasileira e avançarem por sobre um material mais complexo, oferecendo um ponto de vista mais inovador, tal o ponto de vista de Allen em relação ao clássico de Tennessee Williams. Os diálogos, embora previsíveis, são ditos bem, os tempos são bem distribuídos, as intenções bem postas. Estamos diante de um drama realista psicológico, aos moldes de Shaw (esse bem mais açucarado que Ibsen), mas ainda diante de um teatro bem defendido.

A direção de arte de Arlete Rua, Carlos Alberto Nunes e de Paula Cruz, a iluminação de Paulo Cesar de Medeiros e a trilha sonora de Alessandro Perssan ajudam a construir bem a estrutura narrativa, como convém, apontando todos os signos para a sua história sem aparecerem mais do que devem. O caos literário do escritório de Frank expressa bem a preferência do personagem pelo isolamento em prol da companhia dos livros e do whisky. Por outro lado, as grandes bolsas e as roupas de cores chamativas de Rita hão de expressar bem em quais pontos ela foi se modificando primeiro.

Levar a cabo uma história já conhecida é um grande desafio. Porque vencido, os méritos são grandiosos igualmente. Parabéns.

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FICHA TÉCNICA
Texto – Willy Russel
Tradução - Marianna Mac Niven
Direção – Claudio Mendes
Elenco – Marianna Mac Niven e Claudio Mendes
Direção de Arte (Cenário e Figurino) – Arlete Rua, Carlos Alberto Nunes e Paula Cruz
Iluminação – Paulo César Medeiros
Sonoplastia (Trilha Sonora) - Alessandro Perssan
Coreografia de Abertura - Maurício Silva
Perucas – Jakbell
Fotos e Vídeo de Divulgação – Octavio Mac Niven
DVD - Rodrigo Mac Niven
Design Gráfico – Marcus Moraes
Colaboração na Tradução - Tatiana Prisco
Contrarregra - André Boneco
Cenotécnico – André Salles
Operador de Luz – Morgana Grindel
Operador de Som – Adalberto Lopes “Pimpolho DJ”
Ocupação Câmbio – César Augusto, André Vieira e Jonas Klabin
Administração Teatro Municipal Café Pequeno – Edmundo Alvim, Reginaldo Lavinas e Marcelo Fernandes
Administração Financeira – SESAN Assessoria Contábil
Direção de Produção – Estela Albani
Assistente de Produção – Ana Beatriz Figueras
Produção – Ativa Produções
Realização - J.R. Mac Niven Produções
Assessoria de Imprensa – João Pontes e Stella Stephany

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Irmãos de sangue (RJ/França)

Matías Chebel, André Curti e Artur Ribeiro interpretam os filhos
 em "Irmãos de sangue"
Foto: divulgação

Teatro, teatro, teatro!
“Irmão de sangue” é o melhor espetáculo de teatro em cartaz no Rio nos últimos meses pela propriedade com que o teatro é usado em cena. A frase parece estranha, mas não é. A teatralidade é como os teóricos chamam o tipo de marca linguística que informa o espectador de que o que ele está vendo não é outra coisa que não teatro. Novo espetáculo da Companhia Dos à Deux, “Irmão de sangue” está no mesmo nível das montagens de “O Idiota – uma novela teatral”, dirigido por Cibele Forjaz, e de “O idiota”, dirigido pelo lituano Eimuntas Nekrosius, ou seja, em altíssimo grau. Falando sobre a relação entre irmãos, sobre laços familiares e, principalmente, sobre o tempo que não pára de passar, a peça se constrói através de um uso singular de diversos elementos que se tornam cênicos, se tornam teatro e fazem ver, de quase nada, um muito arrebatador. A produção está em cartaz no Teatro 1 do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, e é imperdível.

A narrativa desenvolvida em cena é tão fluída como o teatro é e aí está apenas o princípio de uma série boas articulações. No palco, vemos uma família composta pela mãe e três filhos, todos eles com idades muito próximas, todos crianças. O conflito, que dá força para a assistência continuar no seu ofício de assistir, é o tempo que insiste em passar e a certeza de que aqueles garotos crescerão, como nós também crescemos, estabelecendo e ratificando uma cartarse (quando se purgam as próprias emoções a partir de motivos alheios) que se sustenta durante toda a apresentação positivamente. Sem que palavra alguma seja dita ao longo dos 90 minutos, a história se conta e é contada com o advento ininterrupto de novidades que não substituem, mas acrescentam. Cada cena surpreende, cada gesto é coberto de graça, de carisma e de conteúdo. A peça, que tem dramaturgia, cenografia e direção assinada pela dupla André Curti e Artur Ribeiro, não perde uma só oportunidade de se comunicar, estabelecendo e ratificando uma infinda rede de significados (semiose), cuja potência vale o elogio aqui pelo alto nível de beleza e harmonia. Quando, de um tailleur vermelho, brotam cordas igualmente vermelhas, vemos os laços (talvez, sanguíneos) que unem os filhos à mãe e entre si. Quando, dos bolsos de uma cadeira, brotam cachorrinhos de brinquedo, vemos os limites na convivência, mas também diversão e leveza na narrativa.

A personagem da Mãe é interpretada por Cécile Givernet. Quando a peça começa, vemos seu papel ser expresso por um boneco, representando a sua velhice. Para exemplificar (e justificar) a avaliação positiva desse trabalho, essa escolha traz a possibilidade de uma intenção clara e perfeitamente manifesta. O boneco é um instrumento narrativo forte, mas principalmente lúdico. Ele abre a fechadura da imaginação e, no caso de uma narrativa sobre os laços familiares da infância, esse lugar semântico em qual se adentra é fundamental. Do ponto de vista da auto-referenciação, o boneco aparecerá novamente em cena em outro momento e aí estará ao lado da atriz. A Mãe estará, ao mesmo tempo, enquanto jovem e enquanto velha, lado a lado. Com isso, nova ponte artítico-comunicativa se faz: não abandonamos a infância para nos tornar adultos, nem a adultez pela velhice, mas as idades se juntam umas às outras, todas presentes em nós. Outra citação: a peça começa com dois homens, um de frente para o outro, encarando-se enquanto a base sobre a qual ambos estão gira. Quanto mais rápido gira, mais eles se aproximam do centro, um do outro. A cena inicial termina com um abraço entre ambos. A infância é um ciclo, as relações são cíclicas, o tempo não pára e, talvez aqui, esteja aqui o mais importante significado de “Irmãos de sangue”.

A larga criatividade do grupo faz surpresas aparecerem sem pausa e em ritmo cada vez mais vibrante de forma a cumprir o dificílimo objetivo de alimentar um público cada vez mais faminto ainda que cada vez mais alimentado. Os jogos entre os filhos, o cansaço da mãe e sua solidão. Os filhos lembrando das cenas de brigas entre os pais, fazendo a crítica e se divertindo com essas memórias (sem algum juízo de valor sobre o acontecido). Eis aí alguns dos quadros a que se assiste em "Irmãos de sangue".

Da trilha sonora (musica original de Fernando Mota) às contribuições do desenho de luz (Bertrand Perez e Artur Ribeiro), o espetáculo se apresenta com uma estrutura complexa, porque cheia de níveis. Extremamente bem articulada, porque com excelentes recursos de auto-referenciação. Sensível, porque discute um tema que atravessa todos e não apenas aqueles que tiveram irmãos ou com eles conviveram durante a infância. É fato inaferrável que, a cada ano que passa, cada um de nós tem menos contato com aqueles que foram testemunhas, e não apenas ouvintes, das nossas memórias mais antigas. E, se fazer relações é difícil, mantê-las através dos anos é um grande desafio. Gritos de bravo!

*

Ficha técnica:
Dramaturgia, cenário, coreografia e direção: André Curti e Artur Ribeiro
Interpretação: Cécile Givernet, Matías Chebel, André Curti e Artur Ribeiro
Música original Fernando Mota | Violino: Fran Lasuen
Figurinos e marionetes: Natacha Belova
Acessórios, peruca e objetos: Maria Adélia et Marta Rossi
Com assistência de Morgan Olivier e Camila Moraes
Construção do cenário e contra-regra: Demis Boussu
Iluminação: Bertrand Perez e Artur Ribeiro
Direção de produção -França : Nathalie Redant
Direção de produção - Brasil: Sérgio Saboya | Teaser -Vídeo: Jean Luc Daniel

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Amigo Cyro, muito te admiro (RJ)

Elenco em cena de carnaval
Foto: divulgação

Nada menos que excelente!

Dentre as produções que estiveram/estão em cartaz no Rio de Janeiro nesse verão, “Amigo Cyro, muito te admiro” se destaca positivamente como uma das melhores por muitos sentidos. Mas, sem dúvida, entre todas elas é a melhor em termos de direção musical. Trata-se de um musical que homenageia o cantor e compositor carioca Cyro Monteiro (1913-1973), estando, assim, ao lado de incontáveis outras produções graças as quais as novas gerações podem conhecer mais sobre a história da música popular brasileira através do teatro. Seu diferencial é a forma como as músicas do homenageado se relacionam com o texto em cena. De um jeito extremamente fluído, texto e música se intercalam de forma que é possível dizer que tudo é música e que também tudo é texto nesse espetáculo ovacionado por alguns minutos no dia da apresentação à essa análise. Sem dúvida, as participações dos atores/cantores/músicos fazem a diferença, contribuindo com excelência ao trabalho do diretor André Paes Leme e do diretor musical e arranjador Luis Barcelos.

O mais comum em peças desse tipo é que músicas inteiras do artista homenageado “caiam” na dramaturgia, estando, em segundo lugar, aquelas peças do tipo "sarau" em que só se ouvem as músicas e não há texto. Tanto em uma como em outra, há célebres pot-porris que geralmente ajudam a história a avançar um pouco mais em um tempo mais curto. Em “Amigo Cyro, muito te admiro”, embora o tema seja musical, o teatro é quem parece ter guiado as escolhas. Mérito do grupo, ganho do público. Ao invés de cantar músicas inteiras, apenas partes de quase todas elas aparecem e, ainda assim, intercaladas por trechos de falas públicas do próprio Cyro Monteiro. Assim, uma canção entra na outra, mas sempre com marcada presença de um contexto poético que situa cenicamente a canção ao invés de deixa-la perdida. O resultado é uma peça que embala, de forma íntegra, a vida de um homem conhecido por seu talento e seu profissionalismo, mas principalmente pela sua doçura, deixando um "gostinho de quero mais" bem forte.

Na dramaturgia de Rodrigo Alzuguir, temos uma mesa de sinuca e caixotes com garrafas de cerveja posicionados milimetricamente em lugares específicos. Claudia Ventura, Alexandre Dantas, o próprio Alzuguir e Milton Filho interpretam, todos eles, Cyro Monteiro e outras pessoas através do olhar de Cyro. A narrativa não é linear, embora cumpra, de um modo geral, etapas evolutivas do homenageado, da infância à sua velhice. O ritmo é marcado por duas quebras: uma sobre o medo do cantor de avião e outra com listas sobre as coisas que ele gostava e não gostava. Dessa forma, na encenação de André Paes Leme, o fato de um homem só ser interpretado ao mesmo tempo por quatro atores conversa bem com a dramaturgia que situa Cyro sempre inteiro, mesmo sendo criança, jovem, adulto ou mais velho.

O grande carisma do conjunto do elenco é responsável por apresentar a figura humana de Cyro Monteiro com enorme potência. A história é contada com excelência vocal e com passos de samba bastante bem executados, mas principalmente com muito amor no tom de dizer as frases. O carinho que os intérpretes parecem ter ao falar de Cyro ou por Cyro conquista o público que se abre para as canções, para as vitórias e para as derrotas do artista e, principalmente, para o modo como ele via o mundo. O resultado é uma emoção especial que surge ao final da peça vinda de uma plateia que, sem dúvidas, gostaria de ter sido amiga do homenageado se, porventura, não tenha tido a oportunidade de sê-lo. Deve-se elogiar, ainda, a escolha de Claudia Ventura para um dos papéis. A linda voz feminina dessa grande cantora e atriz define a beleza de vários momentos do espetáculo sem por em desmérito nenhum de seus parceiros de palco.

Nos aspectos técnicos, há um especial destaque para o trabalho de iluminação de Renato Machado. Além de lâmpadas suspensas estarem alocadas dentro de garrafas de cerveja recortadas, em uma união positiva com o cenário de Carlos Alberto Nunes, temos, em alguns momentos, uma sutil luz de fundo versus um foco horizontal recortado sobre a face do elenco ao lado de um foco vertical sobre um dos atores. O quadro, cuja beleza é imensa, expressa a profundidade e a complexidade de um ser humano que, por fora, é muito simples. Mérito de Nunes também o contraste entre as camisas azuis e a luz amarelada, isso exemplo do quão os elementos todos dessa narrativa estão bem articulados.

“Amigo Cyro, muito te admiro” é uma peça especial na programação teatral carioca que há de fazer muitas temporadas. Por muitos motivos, alguns aqui analisados, merece o sucesso que fez e que há de ter, mas, sobre todos eles, há que se contemplar a forma coesa e coerente como todos os elementos estão equilibrados, bem desenvolvidos, expressos com delicadeza, inteligência e força significativa. Excelente! Merecida é a ovação que ganha.

*

FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Rodrigo Alzuguir
Direção: André Paes Leme
Direção Musical e Arranjos: Luis Barcelos

Elenco: Claudia Ventura, Alexandre Dantas, Rodrigo Alzuguir e Milton Filho

Músicos: Levi Chaves (sopros), Luis Barcelos (Bandolim/Cavaco), Lucas Porto (violão) e Marcus Thadeu (Percussão)
Direção de Movimento: Duda Maia
Cenografia: Carlos Alberto Nunes
Figurino: Carlos Alberto Nunes
Iluminação: Renato Machado
Preparação Vocal: Marcelo Rodolfo
Pesquisa: Alexandre Dantas, Claudia Ventura e Rodrigo Alzuguir
Diretor Assistente: Anderson Aragón
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Zé Trindade: a última chanchada (RJ)

Alice Borges e Paulo Mathias Jr. em grandes trabalhos
de interpretação
Foto: divulgação

O valor das boas interpretações

As interpretações de Paulo Mathias Jr. (Zé Trindade) e de Alice Borges (Dercy Gonçalves) fazem do musical “Zé Trindade: a última chanchada” um espetáculo bom de ver. A peça, que faz uma homenagem justa ao comediante baiano, faz refletir sobre a forma como os vários elementos de uma narrativa cênica precisam se articular para o sucesso realmente vir. Nesse caso, a dupla de protagonistas parece sentir os ambientes frágeis do espetáculo e neles investir mais de si para que se mantenha o equilíbrio. O texto do famoso cronista dO Globo Artur Xexéo é muito ruim e a direção de João Fonseca, mais uma vez, é comportada, porque subserviente ao texto infelizmente. Falhas menores se ajustam com outros pontos positivos e o resultado é, felizmente, uma produção que vale os aplausos, mas também os apontes negativos.

O problema central de “Zé Trindade: a última chanchada” é que Artur Xexéo, nesse trabalho, não se mostra tão bom dramaturgo quanto o é o seu personagem Dramaturgo, esse interpretado por Rodrigo Nogueira. O Dramaturgo (o personagem) sabe que é necessário um conflito para haver teatro (no caso, teatro quer dizer uma produção narrativa tradicional, com grandes produtores e voltada para o grande público). Pressionado pelo Produtor (Alexandre Pinheiro), o Dramartugo (Nogueira) precisa escrever uma história sobre Milton da Silva Bittencourt, o Zé Trindade (1915-1990), mas, embora já tenha gasto o dinheiro do cachê, seu prazo está prestes a encerrar sem que se tenha conseguido produzir algo bom. Depois de vasculhar a biografia do comediante, nenhuma boa ideia lhe vem a cabeça, ou seja, o Dramaturgo sabe que a fama de Zé Trindade e o apreço que o público tinha por ele entre os anos 30 e 60 não são suficientes para sustentar uma narrativa teatral. É preciso um conflito, isto é, duas forças opostas e com a mesma força capazes de fazer com que o público se identifique com a situação, descubra o lado universal da história e acompanhe a caminhada do herói até a vitória. O miolo da peça “Zé Trindade: a última chanchada” é sua melhor parte, porque tem tudo isso.

Em uma análise actancial do trecho central desse espetáculo, encontramos facilmente um Sujeito (o Dramaturgo) que precisa escrever uma peça sobre Zé Trindade (o Objetivo). À sua ajuda, vem dos céus alguém para lhe ajudar: o próprio Zé Trindade (o Adjuvante), seguido de Dercy Gonçalves (o Segundo Adjuvante). O Oponente é o Tempo, aqui manifesto pela figura do Produtor (Alexandre Pinheiro), acompanhado do Ator que fará o protagonista (Rodrigo Fagundes). Quem envia o Sujeito (o Destinador) é a Ambição (pois, o Dramaturgo só topou escrever o texto por dinheiro, já que não gostava de Zé Trindade até encontrar-se com ele.). O Para onde o Objetivo leva (o Destinatário) é a homenagem a Zé Trindade e a fama que o Dramaturgo almeja para sair do bairro onde mora (o Catete, no Rio de Janeiro). Ou seja, todos os papéis actanciais estão distribuídos e é fácil, nesse trecho, reconhecer as forças que levam a história para adiante. Onde está o problema? No início e no fim.

Artur Xexéu abre o texto de “Zé Trindade” (e João Fonseca o mantém) com uma cena longuíssima em que Dercy Gonçalves (Alice Borges), recém falecida, chega ao céu e é recepcionada por Zé Trindade. Durante toda essa sequência, nada acontece e tudo o que se vê são ou gags (piadas prontas) ou trechos mera e monotonamente informativos. Estamos no céu, na nuvem dos comediantes, onde também há Charlie Chaplin, cujas frases são citadas à exaustão sem o menor motivo narrativo. Nisso, além do mais, há duas incoerências. 1) Dercy se encontrou com Chaplin antes de Zé Trindade, mas Zé não deveria ter sido o primeiro? 2) Dercy diz que não entende outras línguas e explica para Zé sobre o uso da tecla SAP na Terra, mas como ela entendeu o que lhe disse o britânico Chaplin? Indo além, Zé Trindade diz que gostaria muito de ir para outra nuvem, mas não diz nem para qual, nem o porquê, de forma que se localizar na história fica ainda mais difícil. Então, aparece, primeiro, o Assessor de Imprensa (Rodrigo Fagundes) e, por fim, São Genésio, o padroeiro dos atores e o gerente da nuvem dos comediantes. São Genésio resolve ajudar Zé Trindade, mas, para isso, o comediante terá que ir até a Terra para ajudar um Dramaturgo que está passando muito trabalho. Se conseguir ajuda-lo, ganhará o direito de mudar de nuvem. É quando o meio da peça já analisado começa. Ou seja, em “Zé Trindade: a última chanchada”, há duas histórias, uma principal (Zé Trindade querendo mudar de nuvem) e outra subordinada (Dramaturgo precisando escrever uma peça), só que a subordinada é muito melhor contada que a principal. Isto porque: a) O sistema de divisão em nuvens é falho, porque ninguém é apenas uma coisa. Há uma nuvem para apresentadores de televisão, mas Dercy, que também foi apresentadora de televisão, está só na de comediante, por exemplo. b) O motivo pelo qual Zé Trindade quer ir para outra nuvem não está claro e é apenas “fofo” no final. c) Os obstáculos que impedem o herói de atingir o Objetivo não são claros também. Não se sabe, assim, quem são os Opositores também; d) As ações inexistem e a narrativa é apenas descritiva.

Por fim, na análise do texto e da encenação de um modo geral, percebe-se que houve uma intenção de produzir uma chanchada à moda dos anos 40 e 50. É reconhecível que houve a abertura de espaço para o improviso, mas esse só era possível, nas produções originais, porque o roteiro era amarrado o suficiente e, assim, capaz de manter a história no seu caminho sem ressalvas. Não é isso que temos aqui.

No que diz respeito às interpretações, temos os excelentes trabalhos de Paulo Mathias Jr. e de Alice Borges nos papeis de destaque, que fazem das caricaturas de seus personagens um ponto de partida para o aspecto humano nos quais eles são envoltos. Inimigos durante a vida, os vemos juntos, parceiros, no céu e na volta à Terra. Os dois intérpretes têm excelentes usos dos tempos, posicionam bastante bem as intenções, fazem a crítica, estão ativos, vivos e ágeis em cena. Zé Trindade e Dercy Gonçalves foram intérpretes cujas personalidades eram bastante marcadas em suas vidas além das narrativas. A barriga projetada pra frente, o movimento da cabeça seguido do fechar de olhos e as explosões dos lábios de um lado, e as vogais abertas, o despudor em relação ao corpo e o verbo solto de outro são superfícies difíceis de exibir com respeito e convite à profundidade, mas que Mathias e Borges conseguem com exuberância evidenciar. Em papéis menores e com concepções opostas, Helga Nemecksy e Rodrigo Nogueira estão igualmente em construções bastante positivas. Próxima de Zé e de Dercy, Cleusa (Nemecksy), a Esposa de Zé, auxilia a trazer o homem por trás da fama à frente da história. Próximo do público e chave para o realismo que aproxima a peça da homenagem, o Dramaturgo (Nogueira) é rápido nas respostas e inteligente nas propostas de avanço da narrativa. Em contrapartida, Rodrigo Fagundes, Alexandre Pinheiro, Luisa Viotti e Nêga pouco acrescentam, primeiro porque seus personagens são mal construídos na dramaturgia, e segundo porque todas as suas sustentações não conseguem sair da superficialidade em nem um só momento infelizmente.

O cenário de Teca Fichinski, a direção musical de João Bittencourt e a iluminação de Dani Sanchez são positivos, mas sem grandes destaques. O figurino da Espetacular Produções e Arte tem a falha de manter o vestido de Cleusa longe do cinza, paradigma criado para unificar os personagens já falecidos.

Os estudos de semiótica teatral apontam para inexistência de signos teatrais, mas, sim, para a existência de signos “tornados teatrais”. Isto é, em teatro, tudo o que vemos vem de outros sistemas semânticos, mas se tornam teatro a partir da articulação comandada por um ator (ou mais de um). Nesse sentido, aplaude-se o valoroso esforço de boa parte do elenco em articular os elementos à sua disposição, ainda que nem sempre esse trabalho tenha sido vitorioso.

Em tempo, o filme "Entrei de gaiato", com Zé Trindade e Dercy Gonçalves, está inteiro no Youtube. Veja aqui.

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FICHA TÉCNICA

Texto: Artur Xexéo
Direção: João Fonseca
Elenco: Paulo Mathias Jr., Alice Borges, Rodrigo Nogueira, Helga Nemeckzy, Rodrigo Fagundes, Alexandre Pinheiro, Luisa Viotti e Nêga.
Músicos: Mig Martins e Lucas Loureiro
Direção musical: João Bittencourt
Assistente de direção e Direção de movimento: Rafaela Amado
Cenário: Teca Fichinski
Figurinos: Espetacular Produções e Artes / Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo
Iluminação: Dani Sanchez
Programação visual: Luiz Stein Design
Assessoria de imprensa: Barata Comunicação
Direção de produção: Barata Comunicação

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Tempo real (RJ)

Diana Herzog e Alonso Zerbinato em cena
Foto: Bruno Mello

Só experimentação sobre o tempo atual

“Tempo real” é um experimento que vale enquanto experimento teatral e apenas isso. O mote que levou o Grupo Teatro Voador Não Identificado a investir nesse projeto é interessante: tentar utilizar-se da internet para catalisar os fatos que estão acontecendo no mundo no momento da peça. Entende-se, por princípio, que isso deveria ser a peça, mas não é. Na dramaturgia de Julia Bernat, em vários momentos, é nítido que os intérpretes/performers se cansam da investida no improviso e se curvam à narrativa tradicional, previamente concebida. Desses trechos, três são muito bons: quando Alonso Zerbinato narra algumas histórias de seu pai a partir de uma foto familiar, quando surge a história de Paul Cole (o homem que aparece na capa do disco Abbey Road, dos Beatles) e quando Zerbinato narra o momento de um homem que, tendo bebido antes de dirigir, atropelou uma pessoa e se viu, de repente, envolvido em uma tragédia. Em cartaz no Teatro Maria Clara Machado, na Gávea, o espetáculo pode ser ponto de reflexão para os conceitos de realidade e de espetacularidade.

De um modo amplo, “Tempo real” parece querer ser um belo argumento sobre viver as coisas mais intensamente e sobre prestar a atenção na forma como as coisas se dão a ver em momento específico. Ao contrário do que se pensa, real não é o contrário de virtual, mas o oposto de irreal. Assim, o termo “real” no título da peça, então, quer dizer “atual”, palavra que remete ao aqui e ao agora com muito mais força, lembrando que esse aqui e agora não querem dizer contemporâneo, pois podem haver aqui e agora nos anos 70, por exemplo). Ou seja, em termos teóricos, a produção parece querer se voltar para um tipo de recepção teatral que Brecht chama de épica, isto é, aquela que é contrária à catártica, porque exige que o espectador não se perca em pensamentos, mas permaneça consciente e ativo. Retomando os três melhores momentos da encenação já citados, uma noite em que garotas tomam banho de piscina nuas, um dia em que um homem conversa com policiais e uma madrugada em que uma pessoa bebe além da conta podem se tornar o início de um longo casamento, a capa de um disco mundialmente famoso e um crime que resultará em anos de prisão e no falecimento de alguém. Daí a necessidade e a importância de valorizar os momentos sejam eles quais forem. Fossem apenas essas três histórias e fossem elas articuladas de forma mais clara, o objetivo dessa montagem seria, talvez, mais plenamente atingido. Infelizmente, ele não é.

Na abertura de “Tempo real”, Alonso e Diana (de propósito, os nomes dos personagens são iguais aos nomes dos atores, o que é uma das marcas de performance.) lêem um Ipad, colhendo as notícias do mundo mais recentes. Aparecem os aniversariantes do dia, os falecidos do dia, aqueles que nascem no dia, o que o dia significa na história do mundo ocidental, etc. Trazem a previsão do tempo, vídeos de câmeras públicas em trechos do trânsito da cidade do Rio de Janeiro e lêem o horóscopo, o próprio e o do público. Alonso diz ser de Touro e Diana de Escorpião. Nesse contexto inicial, o espetáculo apresenta-se como uma espécie de uma revista contemporânea, em que os fatos do dia se transformarão em uma peça, mas, embora tudo indique que será isso, não é isso que acontece, pois Alonso começa a contar que conheceu Diana em uma aula de View Points e, ao falar com ela pela primeira vez, os dois perceberam que estavam de aniversário naquele dia que, com a distância de anos, é justamente o dia de hoje. No caso dessa análise, a peça foi apresentada no início de fevereiro de 2014. Ora, quem nasce nesse período é aquariano, nem taurino, nem escorpionino, ou seja, o público tem acesso ou a um outro contexto cênico-narrativo ou a uma contradição em relação à proposta inicial dos fatos que estão verdadeiramente acontecendo no mundo além do teatro. Enquanto a plateia pensa sobre isso, ela se desvincula do espetáculo pela primeira vez e, infelizmente, passará por isso em outros trechos. Na continuidade, há uma nova quebra na estrutura, e outra, e outra, e outra, sem que nem todas elas realmente desenvolvam o tema inicial ou tampouco retornem a ele. E aí chegamos ao conceito de espetacularidade.

Na performance, o limite entre o que é personagem e o que é ator é bastante sutil e essa é a sua principal marca. “Tempo real” acontece em um teatro de arena com as luzes da plateia acesas durante todo o período da encenação, oferecendo, assim, outra marca que aponta para essa leitura. O problema é que a performance, embora seja um tipo de texto teatral, tem, na sua gênese, uma grande relação com as artes visuais, uma vez que surgiu contemporaneamente a partir do fim das molduras, da quebra dos museus, da liberdade dos artistas plásticos em pesquisar outras formas de expressão. Em outras palavras, o conceito de espetacularidade que existe no teatro convencional também existe no teatro performático em função da poética que está por trás da mímesis, essa comum a ambos. “Tempo real”, apesar de alguns esforços, e a cena da lua é um deles, carece de lirismo, pois não se decide se fala  sobre notícias e consciência ou se conta histórias através de rapsódia tradicional. As atuações de Alonso Zerbinado e de Diana Herzog são pouco seguras, o colorido das listas no chão não tem, nem beleza, nem função comunicativa clara, a iluminação age pelo mesmo caminho, o cenário é inexistente, o figurino é duvidoso e a trilha sonora é pouco rica. Ou seja, enquanto estrutura, é um espetáculo ruim.

Com direção de Leandro Romano, “Tempo real” parece ser uma experimentação de jovens artistas, todos eles já com carreira sólida e que, apesar disso, não perderam felizmente o viço, a coragem, o prazer da interrogação. Nesse sentido, o teatro carioca aqui vai bem. 

Lotação esgotada (RJ)

Rodrigo Sant`Anna em um belíssimo trabalho
Foto: divulgação

De primeiríssima grandeza, recomendo com veemência

“Lotação esgotada” ("Fully commited") é uma ótima oportunidade de encontro entre a poesia e o talento (e a técnica) do ator comediante Rodrigo Sant`Anna. Escrita pela americana Becky Mode, a peça é sobre um jovem ator em início de carreira que trabalha em um restaurante como booking (aquele que anota as reservas dos clientes). Com zilhões de aparelhos telefones tocando a todo minuto, o tempo da narrativa percorre linearmente as diferentes relações entre os muitos clientes, suas realidades, seus interesses, suas diferenças e, principalmente, suas vaidades. Sozinho em cena, Rodrigo Sant`Anna interpreta todos os personagens, conservando o protagonista em um lugar bastante especial. O final é avassalador, tocante e com extrema delicadeza. Por Rodrigo e sua virtuose, pela afinada direção de Moacyr Góes, pelo cenário de Teca Fichinski e, principalmente, pelo texto de Mode, “Lotação esgotada” é uma produção de primeiríssima grandeza.

Becky Mode não tem medo do perigo que é conservar a extrema linearidade e a monotonia. “Lotação esgotada” começa com o personagem de Rodrigo chegando no porão do restaurante e iniciando o atendimento dos telefonemas que não param de chegar. E essas ações continuam sem pausa durante a maior parte dos 70 minutos do espetáculo, levando o espectador mais desatento quase à exaustão. Há, no entanto, alguns minutos de pausa: em um momento, adentra-se no universo particular de uma das clientes. Em outras situações bem curtas, vemos o “lado de lá” do telefonema durante alguns segundos. De um modo geral, a pressão dos clientes agendando suas reservas versus a relação entre o protagonista e seus colegas de restaurante (o cheff, a hostess, os colegas de booking,...) e o chefe são tudo o que se vê durante a peça. Mas eis que chega o final e ele é arrebatador. Vários detalhes afundados propositalmente no mar de personagens emergem e constroem a virada poética com grande delicadeza e muita elegância. Então, percebe-se que a linearidade foi uma inteligente opção estética da dramaturgia em ratificar a estrutura para depois destruí-la, um gesto de elogiável refinamento. Na ordem do conteúdo, o lado humano do protagonista, esse desaparecido na horda de ligações no porão de um restaurante caro, é uma essencial metáfora para os fantasmas sociais pelos quais cruzamos: porteiros, garçons, motoristas de ônibus, caixas de supermercado, todos eles anônimos.

Moacyr Góes conserva o texto dentro dessa proposta com rigor não menos inteligente. As quebras de emoção são bem divididas na interpretação de Sant`Anna, exibindo uma concepção de direção que é firme. De um cliente para o outro, vemos Rodrigo dar cores diferentes ao cansaço crescente de seu personagem, a sua frustração imanente, a sua fome driblada pelo excesso de trabalho e, enfim, a complexa situação de um homem jovem que almejou para si muito mais do que vê ao seu redor. Assim, a peça manifesta na encenação o homem diante de si mesmo, seus desejos, suas ambições, seus fracassos e suas possibilidades de redenção.

Rodrigo Sant`Anna é um dos melhores atores comediantes do Brasil nesse início de século XXI e isso não é nenhuma novidade. Na deliciosa comédia “Lotação esgotada”, o público terá acesso à larga possibilidade de ver o intérprete dar vida a diversos personagens, cada um deles com profundidade e riqueza de detalhes, tal tantas vezes se viu em Chico Anysio (1931-2012), por exemplo. Mais do que isso, é possível vê-lo construir, como raramente ele parece ter oportunidade, um personagem dramático, realista, não-farsesco. E é um prazer encontra-lo, também nisso, em bom resultado.

Não se pode deixar de destacar o rigor estético do cenário de Teca Fichinski na construção de um cenário realista próprio para a história que se conta, mas também pronto para situar o clima trágico que brilhantemente sustenta a narrativa durante 65 dos seus 70 minutos. E vale um aplauso para o operador de som, cujo nome não consta na ficha técnica, pela sua importância na construção desse trabalho.

“Lotação esgotada” é uma grata surpresa na programação teatral carioca. A ver!

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FICHA TÉCNICA
Texto: Becky Mode
Adaptação: Moacyr Góes e Rodrigo Sant’anna
Direção: Moacyr Góes
Elenco: Rodrigo Sant’anna
Cenário e Adereços: Teca Fichinski
Figurino, Trilha Sonora e Desenho de Luz: Moacyr Góes
Fotos: Rodrigo Lopes
Programação Visual: Lavorare Produções Artísticas Ltda
Assistência de Direção: Matheus Souza
Assistência de Cenário e Adereços: Ianara Elisa
Assistência de Produção: Fernanda Curi
Direção de Produção: Juliana Lago
Produção: Moacyr Góes, Wilson Rodriguez e Bufões Produções Artísticas
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Fonchito e a lua (RJ)

Com dramaturgia de Pedro Brício e direção de Daniel Hertz,
espetáculo é uma ótima sugestão para todos os públicos
Foto: divulgação

Mario Vargas Lhosa para crianças

“Fonchito e a lua”, como fazem as boas peças de teatro para crianças, faz com que a criança que habita o interior dos adultos desperte. Associada, no imaginário coletivo, à parte mais pura de cada um, a criança dentro de nós é aqui convidada a sorrir com amizades que querem durar para sempre, a se emocionar com o primeiro amor, a se enternecer com o modo com que a imaginação fazia tudo acontecer rapidamente. A partir do conto do peruano Mario Vargas Lhosa, com belíssima dramaturgia de Pedro Brício, a peça tem direção fluente de Daniel Herz e está em cartaz em galeria diferenciada do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro.

Fonchito (Pablo Sanábio) está apaixonado pela sua colega de classe Nereida (Thais Belchior) e, assim, descobre o amor. E, para nutrir esse sentimento, ele precisará descobrir um jeito de trazer a lua para próximo de sua amada, como assim ela deseja. Nessa aventura, vemos a professora, os colegas de classe, o motorista do ônibus. Também os amigos, os pais dos amigos, a mãe de Fonchito. De um jeito simples, ágil e potente, a dramaturgia de Brício e a direção de Herz fazem fluir a métrica de uma poesia que toca, diverte e enternece mesmo enquanto teatro. Fonchito tem um objetivo claro e o público torce por ele, sofre com ele, alegra-se ao lado, é seu amigo. Nesse sentido, a construção do herói é plena, segura, valorosa, articulando toda a estrutura com méritos facilmente visíveis.

Fonchito tem dois grandes amigos, um gordinho e sensível (Alexandre Barros) e outro inteligente e criativo (Felipe Lima). Na peça, os vemos em suas relações com a escola, nas brincadeiras e também em seus próprios dilemas. Um deles precisará viajar para longe e a cena da despedida concorrerá com a cena final, produzindo um momento de larga emoção. Em um dos melhores trechos da narrativa, temos o diálogo entre Fochito e a Lhama, um de seus brinquedos. Vemos aí o protagonista se aproximar do limite entre a infância e a pré-adolescência, flertando com essa passagem e com todo o medo que as novidades causam. São destaque também as aulas com a professora (Raquel Rocha), quando o público brasileiro tem acesso a um pouco da cultura da história da América Latina, essa infelizmente tão desvalorizada por aqui.

São excelentes as interpretações. Thais Belquior é quem tem os menores momentos da peça, mas a força que seu personagem tem é a garantia da importância das marcas que a atriz viabiliza em seu trabalho. Com a tarefa de movimentar vários tipos, Raquel Rocha também ratifica a potência da produção como um todo, sendo responsável pelos momentos mais divertidos da narrativa. Pablo Sanábio, Felipe Lima e Alexandre Barros deixam ver garotos ideais, os quais conseguem despertar a vontade de sê-los, resultado esse que atinge o objetivo do gênero cênico-narrativo aqui em questão. Ou seja, no que diz respeito ao teatro, tem-se aqui uma produção de alta qualidade em todos os seus aspectos, sobretudo no modo como as intenções são manifestas a ponto de alegrar e de emocionar em situações concomitantes.

Quanto aos signos tornados teatrais, a direção de arte do artista mineiro Ronaldo Fraga tem o mérito de explorar o universo semântico da história por outro caminho para chegar no mesmo objetivo. A peça se passa no Peru, ou seja, o óbvio seria termos uma estética andina a guiar a concepção. Diferente disso, Fraga valorizou o grande amor que aquele povo tem por sua própria história e coloriu o teto da galeria onde a peça é apresentada com temas que nos são especiais, fazendo despertar em nós o amor por nossa história. O elemento andino só aparece em três tocas de lã que são usadas em uma cena e no casaco da professora, marcando lindamente sem exagerar, permitindo que a nossa relação com a nossa pátria converse fluentemente com a relação dos andinos com sua pátria. São belíssimas as modelagens e as estampas dos figurinos, com destaque para os zíperes na parte traseira das peças, elevando, nas roupas, o tom poético da narrativa cênica. Utilizando a palha e o alumínio, o cenário de Clarissa Neves e de Paulo Waisberg pouco acrescenta no conteúdo, mas tem o mérito de criar um espaço neutro e belo ao mesmo tempo, equilibrando-se positivamente com o histrionismo dos figurinos. É de extrema beleza a trilha sonora original de Paulo Santos / Uakti, cujos tons marcam a métrica da narrativa e auxiliam a imagem a passar a impressão de maior durabilidade na retina.

As crianças não têm desenvolvido o exercício da abstração a ponto de construirem argumentos que sustentem um juízo estético de valor. Seus aplausos, seus sorrisos, suas quietudes, assim, pouco expressam de fato o grau do seu envolvimento delas com uma peça dirigida a elas. Somente a criança que habita no interior de um adulto pode julgar um espetáculo desse porte e não há dúvidas de que ela há de adorar "Fonchito e a lua". 

Azul resplendor (RJ)

Ao lado de Eva Wilma e de Renato Borghi, Dalton Vigh
protagoniza grandes cenas em "Azul resplendor"
Foto: João Caldas

O aniversário de Eva Wilma e além

“Azul resplendor” não deve ser visto apenas porque é a montagem de comemoração dos 80 anos de vida e 60 de carreira no ofício de atriz de Eva Wilma, mas também porque, dentro desse ótimo espetáculo, há duas cenas de altíssimo nível. Na primeira delas, temos um casal de idosos prestes a ir para a cama, discutindo sobre a necessidade de manterem as luzes acesas para que ambos possam ver a decrepitude do corpo um do outro e, assim, acabarem-se os segredos. Na segunda, há um diretor de teatro famoso, explodindo sua raiva contra a sociedade que o elegeu sem, de fato, conhece-lo. A partir de texto escrito pelo peruano Eduardo Adrianzén em 2005, o espetáculo tem a cuidadosa direção de Renato Borghi e de Elcio Nogueira Seixas e está em cartaz no Teatro SESC Ginástico no centro do Rio de Janeiro.

Quando a mãe faleceu, o ator Tito Tápia (Renato Borghi) ganhou 1 milhão de dólares de herança. Com esse dinheiro, resolveu produzir um grande espetáculo teatral que homenageie a sua grande estrela, que é também o amor de sua vida, a ex-atriz Blanca Estela (Eva Wilma). Reclusa e solitária, Estela vive há trinta anos longe dos palcos, os quais abandonou quando interpretava o papel de Blance Dubois em “Um bonde chamado desejo”. O mais bonito dessa dramaturgia é identificar o conflito nos motivos que fizeram Estela aceitar a proposta de retorno à ribalta depois de tanto tempo. Então, se verá uma ácida crítica à política teatral: o modo como os atores e os diretores se relacionam, como os textos são escolhidos e como as produções acontecem, o jeito como os artistas se relacionam com os técnicos, com a imprensa, com os colegas e, principalmente, como cada um lida com os próprios sonhos nessa que é uma profissão marcada pela vaidade. Feito isso, resta à audiência, como em todo bom teatro, encontrar o humano por trás dos personagens e aí ver-se representado em cena. Em todos os profissionais e em todas as idades, há sempre tempo para reencontrar o amor.

Adrianzén marca o ritmo do texto com pequenos monólogos em que os personagens quebram a “quarta parede” e se dirigem diretamente ao público, ou a si próprios, em solilóquios bastante interessantes. Nesses momentos, o público consegue ter a sua disposição os diversos níveis de complexidade de cada figura apesar das situações em que eles se envolvem. A Assistente de Direção Irritada (Luciana Borghi) pode, assim, ser vista como alguém que teve os sonhos frustrados e o coração partido. O Ator Sarado e  a Atriz Linda (Felipe Guerra e Luciana Brites) são seres humanos cheios de sonhos que almejam ser alcançados, o que os iguala a todos os outros humanos comuns. O Diretor Pedante (Dalton Vigh) pode representar alguém que gosta dos aplausos, mas se interessa muito mais por quem lhe instiga, irritando-se com a burrice dos demais. Nesse sentido, Adrianzén constrói uma farsa moderna impregnada positivamente na encenação por marcas de drama realista em que os papéis sociais são construídos e dispostos em oposição, sendo espelhos de uma parte da sociedade. Como todo espelho, sua função é interrogar. Eis o mérito maior de “Azul resplendor”.

Há que se reconhecer a dureza do texto que, em vários momentos, força a poesia com a construção de cenas ou de falas clichês e um tanto quando melodramáticas (para não dizer cafonas). O melhor é ver como Eva Wilma e Renato Borghi põem suas experiências à disposição da peça, fazendo com que essas situações passem batido. O jeito sutil com que a dupla de atores situa a parte mais importante de cada fala em lugares específico de seus diálogos faz com que o que é menos bom passe e com que “desse limão seja feita uma limonada”. Luciana Brites e Felipe Guerra nem sempre conseguem o mesmo resultado, faltando em seus personagens a ironia que as situações parecem prever. Já Luciana Borghi e Dalton Vigh têm o mérito de dar aos seus personagens grandes momentos pela força interpretativa com que os exibem.

O cenário de André Cortez deixa ver uma concepção que pauta a discussão maior que “Azul resplendor” propõe: o teatro. Acima da velhice, das vaidades, dos sonhos alimentados por anos, o teatro, nessa montagem, é o assunto mais importante. Daí que todas as cenas são vistas a partir de lugares esteticamente teatrais: sempre há refletores expostos, objetos neutros, recortes de iluminação (Lúcia Chedieck) marcados, roupas com marcas expressivas de figurino (Simone Mina), enfim, tudo parece acontecer em um teatro. Na peça “Azul resplendor”, é visível que o realismo nutre o conceito de interpretação dos atores, mas há que se dizer que a encenação como um todo vai para além do drama, em uma excelente metáfora para o espetáculo que o personagem de Vigh dirige na narrativa. A peça e a peça dentro da peça, assim, estão positivamente de braços dados, expressando uma concepção de direção que é segura, inteligente e forte.

Entre todos, talvez o grande ponto de vista a ser elogiado em “Azul resplendor” seja o fato de que, apesar de falar de teatro, a peça não se dirige apenas a pessoas envolvidas com o ofício de representar, mas com o público em geral. Em cena, estão exibidos os obstáculos existentes entre os homens e a realização dos seus sonhos e essa convivência perpassa a realidade de todos independente de suas profissões. Aplausos e parabéns!

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FICHA TÉCNICA
Texto: EDUARDO ADRIANZÉN
Tradução: RENATO BORGHI e ELCIO NOGUEIRA SEIXAS
Direção Geral: RENATO BORGHI e ELCIO NOGUEIRA SEIXAS

Elenco:
EVA WILMA - Blanca Estela
RENATO BORGHI - Tito Tápia
DALTON VIGH - Antônio Balaguer
LUCIANA BORGHI - Glória Campos
LUCIANA BRITES - Luciana Castro
FELIPE GUERRA - Giancarlo Varoni

Luz: LÚCIA CHEDIECK
Cenário: ANDRÉ CORTEZ
Figurino: SIMONE MINA
Trilha Sonora: ALINE MEYER
Vídeos: RENATO ROSATI
Fotos: JOÃO CALDAS
Direção de Produção: ANDRÉ MELLO
Realização: RENATO BORGHI PRODUÇÕES
Assessoria de Imprensa: JSPONTES COMUNICAÇÃO – JOÃO PONTES E STELLA STEPHANY

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O homem que tinha memória (RJ)

Edison Mego em belíssimo trabalho
de interpretação
Foto: Renato Mangolin

O homem a lembrar-se de que é homem

            “O homem que tinha memória” é uma oportunidade de rever um homem sozinho em cena contando uma história. A situação, para quem gosta de teatro, é uma das mais belas, pois assistir a uma boa história sendo narrada com recursos não mais simples do que o próprio corpo do ator é um momento que lembra o homem do quão homem (e apenas homem) ele é. Aqui três contos do suíço Peter Bichsel foram adaptados pelos atores com supervisão cênica de Isaac Bernat em um espetáculo sem grandes cenários e figurinos, mas com bastante beleza. Em cena, Cadu Cinelli, Edison Mego e Warley Goulart produzem um terno momento de reflexão e de emoção, cheio de graça e singeleza. A peça está em cartaz no Teatro Poeirinha, em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, e vale a pena ser vista sobretudo por quem gosta de poesia.
            O interesse estético da produção pode ser desperto por sobre as nuances que a direção fez ver nos jeitos diferentes de contar, permitindo refletir sobre o lugar de quem conta em relação ao sobre quem é contado. Encontrado esses lugares, as justificativas para a avaliação positiva que essa produção há de ganhar vêm à tona com mais facilidade. A primeira história, a do ator peruano Edison Mego, é diferente das demais, porque nela a relação entre o personagem rapsodo (aquele que narra a história) e o personagem protagonista é mais estreita. Um se transforma no outro mais visivelmente e o gesto cria níveis de interpretação da história mais profundos. A cena, que dá título para a peça, narra a vida de um homem que tinha excelente memória desde garoto. Já adulto, ele parava em uma estação de trem, observando os passageiros e admirando as tolices que eles praticavam ao viajar. Para ele, só viaja quem não tem boa memória, porque, se se lembra de como o outro lugar é, então, não é preciso novamente até lá. O elemento fantástico da situação é um poema às lembranças que habitam em nós e ele é expresso pelo ator em grande potência, excelente dosagem de expressões, ótimos usos do tempo.
            Nas duas outras histórias, contadas por Warley Goulart e por Cadu Cinelli, temos uma divisão mais clara entre quem conta a história e sobre quem ela é. Na segunda, temos um homem que resolveu mudar o nome das coisas e, tão acostumado com o novo vocabulário, acabou ficando sem poder se comunicar com o resto do mundo (que, por sua vez, desconhecia a nova língua que só ele falava). Na última, o protagonista quer testar a teoria de que a Terra é redonda e, para isso, planeja uma viagem em linha reta pelo globo. Tanto em uma como em outra, os atores se utilizam de vários elementos visuais que são positivos na criação de um espaço mais lúdico (e infantil) de narração.
            “O homem que tinha memória” se estabelece a partir de um clima íntimo em que o público é convidado a partilhar suas primeiras lembranças. O gesto aponta para a primeira história, mas também para as demais, pois, se a memória é tema do conto inicial, a comunicação é do segundo e a realização dos sonhos do terceiro. Ou seja, nos três momentos, temos o homem diante de seus guardados a olhar para o externo de si. Os figurinos e os elementos cênicos dOs Tapetes Contadores de Histórias ganham destaque, assim como o desenho de luz de Aurélio de Simoni, pela delicadeza nos detalhes de sua viabilização. Parabéns!
  
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Ficha Técnica

Autor: Peter Bichsel
Adaptação, concepção cênica e interpretação: Cadu Cinelli, Edison Mego e Warley Goulart
Supervisão: Isaac Bernat
Cenários e figurinos: Os Tapetes Contadores de Histórias
Luz: Aurélio de Simoni
Programação Visual: Thiago Motta
Produção Executiva: Rilson Baco
Direção de Produção: Caleidoscópio Cultural

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Orgulhosa demais, frágil demais (RJ)

Samara Felippo e Rita Elmôr em cena
Foto: divulgação

Simples e potente

"Orgulhosa demais, frágil demais" é uma peça simples, mas nem um pouco superficial e esse é o seu maior ganho. Depois de ter cantado "Habanera", de Carmen, Maria Callas vai até o camarim de Marilyn Monroe, que acabou de cantar "Parabéns a você" para o presidente Kennedy. De um lado uma ópera, de outro uma das canções mais populares do mundo. Em contraste, a diva erudita e a estrela. Ambas se encontrarão com o que é mais comum nas duas: a mulher por trás das celebridades. A partir do livro homônimo escrito pelo italiano Alfredo Signorini, o texto de Fernando Duarte organiza um diálogo que expõe, ao mesmo tempo, as distâncias e as proximidades entre as duas, ressaltando a beleza do universo feminino em sua complexidade. Dirigido por Sandra Pêra, o espetáculo conta com Samara Felippo e com Rita Elmôr nos papéis de Marilyn e de Callas em interpretações sensíveis, sutis e tocantes. Em cartaz no teatro do Centro Cultural dos Correios, no centro do Rio de Janeiro, uma ótima peça a ser vista.

Além das figuras célebres na história do mundo ocidental, as personagens de Callas e de Monroe podem ser mais. A diva pode ser lida como a pessoa que, por ter estudado mundo, se distanciou da arte popular, da beleza do mais simples. Por outro lado, a estrela pode ser vista como aquela pessoa que quer determinadas coisas pra si, mas faz outras, gerando justamente o contrário dos objetivos. Esses dois posicionamentos, ambos possibilitados pelo texto, pela direção e pelas interpretações, aproximam a cena de quem lhe assiste em potência e em qualidade, elevando os valores estéticos da obra. A imponência de Callas, vestindo um Dior vermelho e expressando sua crítica na sutileza do seu olhar e de suas pausas, se mostra cambaleante diante da superioridade de Moroe, apertada em um vestido costurado nela própria, alheia ao que possam pensar sobre ela e sobre seus atos. As duas estão no topo, mas os motivos e os meios através dos quais elas chegaram lá foram diferentes e contemplar essas nuances permite ao espectador sair do teatro com boas reflexões.

Longe dos estereótipos, Elmôr e Felippo parecem ter construído suas personagens a partir de suas essências. O gesto também aproxima a peça do público, que não estará vendo duas caricaturas, mas dois seres acessíveis na intimidade do camarim. Dividindo o mesmo espaço por um par de horas, as duas atrizes conservam em seus trabalhos de interpretação o direito da assistência de ter acesso ao universo particular de cada uma das personagens, gesto que só pode acontecer pelo excelente uso dos movimentos que a direção de Pêra propôs.

O ritmo é positivamente potente, promovendo o "desarmar" de Callas e o "emburacamento emocional" de Marilyn, que morreu dois meses depois, provavelmente vítima de overdose. Nesse sentido, vê-se as duas mulheres encontrando consigo próprias enquanto vêem-se refletidas uma na outra e, na caixa cênica, um universo do qual todos nós fazemos parte e que entra em ebulição, fica mais complexo e, assim, muito mais natural.

O cenário e o figurino de Desirée Bastos são excelentes porque reforçam o realismo, gênero do qual fazem parte o texto e a encenação. Todos os demais elementos, a trilha sonora de Paula Leal, a luz de Renato Machado e o visagismo de Luiz Bellini, fazem a estrutura "Orgulhosa demais, frágil demais", dirigida por Pêra e assistida por Radha Barcelos, se movimentar com fluidez pelo tempo que a narrativa percorre.

O encontro imaginado por Signorini não aconteceu naquela famosa noite do dia 19 de maio de 1962, no Madison Square Garden, em Nova Iorque. É excelente pensar e ver que ele segue acontecendo mesmo assim. Aplausos.

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Ficha ténica:
Autor: Fernando Duarte
Elenco:
Callas – Rita Elmor
Marylin – Samara Felippo
Direção: Sandra Pêra
Cenário / Figurino: Desirée Bastos
Iluminação: Renato Machado
Design Gráfico: Jaqueline Sampin
Administração /Assistente de produção: Antonio Camões
Produção executiva: Luis Fernando Bruno e Valério Lima
Direção de produção: Beta Leporage
Realização: Voleio Produções
Mídias Sociais: Agência Chermont br