sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Intimidades (RJ)

Joaquim Lopes e Roberta Alonso em cena
Foto: divulgação

Um excelente trabalho de direção

O texto é bom, as interpretações são ótimas, o cenário é excelente, mas o maior mérito de “Intimidades” é de Bruce Gomlevsky pelo belíssimo trabalho de direção. Casados há anos, um Homem e uma Mulher discutem a relação. Ainda se amam muito, mas o acordo afetivo entre eles precisa ser refeito para continuarem juntos. Tamanhas são as nuances que o texto e as interpretações investigam, a peça poderia facilmente resultar em um lindo texto para ser lido, mas em um espetáculo teatral monótono se não fosse os inúmeros jogos corporais que a direção propõe. O ritmo não pára de se modificar de forma que a atenção do espectador aumenta cada vez mais, acompanhando os universos afetivos de cada um dos personagens, suas cores e suas texturas, e todo os membros do relacionamento entre os dois. Em cartaz no Teatro Glaucio Gill, “Intimidades” é uma peça que fala de um assunto já muitas vezes tratado e de várias formas, mas que traz pontos de vista sólidos que entretêm, fazem refletir e principalmente tocam.

Afundado em dívidas, e trabalhando ao cansaço, Ele (Joaquim Lopes no papel que foi de Otto Jr. quando a peça estreou em setembro último) tem certeza de que já não agrada sua mulher na cama. Imersa nos muitos livros que lê, Ela (Roberta Alonso) vê seu marido como um homem superficial e covarde, incapaz de tomar as rédeas da própria vida. Nesse que é o terceiro texto de Gustavo Machado (ator da comédia "Razões para ser bonita"), o conflito que opõe os dois personagens dessa história é muito mais sutil do que as dezenas de comédias românticas sempre apresentadas no teatro, no cinema e na televisão, o que é um grande valor. Não há pudor nem vulgaridade, mas um equilíbrio de temas e formas de se tocar neles que é harmônico, elegante e inteligente. Na encenação de Gomlevsky, cuja direção é assistida por Glauce Guima, o tom de voz dos atores é mantido linearmente durante boa parte da primeira parte do espetáculo, mantendo a atenção do espectador presa pela resistência. Então, depois dEle desvestir-se e vestir a roupa dEla e Ela fazer o mesmo com a roupa dEle, Ele muda o tom de voz, diminui o volume e esse pequeno gesto ganha uma imensa importância no jeito de narrar cenicamente a história. Porque constrói delicadamente uma estrutura rapsódica e, depois, quebra com ela, evoluindo a narração para um outro lugar, temos aqui o trabalho de direção atento e perspicaz que merece o primeiro aplauso.

Sem qualquer marca informativa, os detalhes do passado entre os dois, que fundamentam o momento atual da história, são mostrados ao público com marcas fluídas em quatros cheios de profícua articulação e com timing positivamente crescente. Entre o casal, há duas mortes e é aí que o inteligente cenário de Nello Marrese supera a beleza, ao lado da iluminação de Elisa Tandeta, e ajuda a aprofundar a história no melhor uso dos seus signos. O tablado onde estão os dois personagens é inclinado, de forma que o proscênio é mais baixo que o fundo. As laterais, às escuras durante boa parte do espetáculo, quando são acesas, permitem pensar, por exemplo, que estamos todos dentro de um caixão, mas sem a morbidez, nem a claustrofobia, mas com a sensível referência ao fim, ao descansar, à paz final que os dois parecem almejar. Nessa sugestão, a trilha sonora original de Marcelo Alonso Neves arremata o tom do drama, sem pesar, mas sem superficializar também.

Dosando as emoções delicada e potentemente, Roberta Alonso e Joaquim Lopes constroem momentos que vão da raiva ao sexo, da gargalhada à emoção. A cena em que a primeira lista de compras que Ela usou para ir ao supermercado tão logo os dois foram morar juntos é tão bonita quanto poética, reforçando a harmoniosa concepção de que o amor não é uma questão entre eles, mas, sim, todo o resto que envolve esse sentimento. E essa cena serve apenas para exemplificar a profundidade que essa estrutura cênica almeja e consegue estabelecer no trato com o tema a que se propôs. Belíssimo trabalho!

*

Ficha técnica:
Texto: Gustavo Machado
Direção: Bruce Gomlevsky
Elenco: Roberta Alonso e Joaquim Lopes
Cenografia: Nello Marrese
Figurinos: Rita Murtinho
Iluminação: Elisa Tandeta
Trilha sonora original: Marcelo Alonso Neves
Aderecista: Fernanda Fernandez
Projeto gráfico: Redondo Estratégia + Design
Divulgação: João Pontes e Stella Stephany
Assistente de direção: Glauce Guima
Gerência administrativa: Anna Machado
Produção executiva e Administração: Osni Silva
Direção de produção: Cristina Sato
Realização: RAM Criações e Projetos Culturais

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos (RJ)

Elenco em cena
Foto: divulgação

A responsabilidade de Chico

“Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos” conserva a elegância e o rigor das produções assinadas por Charles Möeller e por Cláudio Botelho, mas nem de longe é um dos melhores trabalhos da dupla de encenadores corretamente tidos como os “Reis dos Musicais” no Brasil. O problema maior é a dramaturgia de Botelho que não situa a peça entre as revistas e nem faz dela um simples sarau (como “Nada será como antes”, por exemplo), ficando no meio do caminho entre um e outro gênero infelizmente, ambos distantes do tradicional musical americano. Em cena, Davi Guilherme, Estrela Blanco e principalmente Soraya Ravenle têm excelentes participações na produção cujos elogios também devem se estender aos figurinos de Marcelo Pies e ao visagismo de Beto Carramanhos. Em cartaz no Teatro Clara Nunes, no Shopping da Gávea, apesar dos problemas, a peça agrada porque é principalmente voltada para quem comemora o aniversário de 70 anos de Chico, a serem celebrados nesse ano de 2014. Como esse número de pessoas felizmente é vasto, não há dúvidas de que um sucesso inaugura a nova etapa na carreira de Möeller e de Botelho, agora, enfim, como seus próprios produtores pela primeira vez.

No roteiro de Cláudio Botelho, temos um Diretor (o próprio Botelho) que, com a memória afetada, registra anotações nas quais conta sobre as viagens que sua trupe de atores fez pelo interior do Brasil, muitos anos antes. Os problemas na dramaturgia começam logo na apresentação dos personagens. Há a Primeira Dama (Soraya Ravenle), esposa do Diretor; e o Filho do casal (Davi Guilherme). Há também a Mocinha (Estrela Blanco) e o Galã (Felipe Tavolaro). Além desses quatro personagens, há duas figuras indefinidas, apresentadas (no programa vendido pela produção do espetáculo) como a Cigana (Renata Celidonio) e a Cartomante (Lílian Valeska), mas sem funções dramatúrgicas claras. Com o início de uma longa viagem, faz-se um teste para a entrada de mais um componente para o elenco. É quando Margarida (Malu Rodrigues), por quem o Diretor está apaixonado, é aprovada na seleção e, por isso, começa a viajar com o grupo que apresenta seu repertório teatral em cidades distantes do país. Ou seja, apesar de não se desenvolver, o contexto para uma história está estabelecido.

Enquanto o repertório de Chico Buarque é interpretado, oportunidades interessantes de dramaturgia surgem, mas não são aproveitadas. Vemos a inveja da Primeira Dama em relação à jovem Margarida, a atriz mais velha que começa a ceder o seu lugar para a atriz mais jovem. Vemos a insegurança do Filho, que não é o Galã e, talvez por isso, dele se aproxime como também de Margarida, talvez para obter uma melhor colocação dentro da Companhia. Vemos a relação entre o Galã e a Mocinha, ambos proibidos pelo Diretor de ficarem juntos sob pena de serem expulsos. Vemos a relação homossexual entre a Cigana e a Cartomante, ambas, como já se disse, perdidas na narrativa. E, por fim, vemos a Primeira Dama e o Diretor, já em idade mais avançada, descobrirem o amor um pelo outro. Assim, em toda a parte, há “nichos” de boas tramas que pairam sem forma e sem articulação, como apenas pobres motivos para a entrada das canções (como se eles fossem necessários). É quando vem um golpe fatal para a essa dramaturgia de Botelho.

Perto do fim da peça, o personagem do Diretor quebra o distanciamento com o ator que o interpreta e avisa ao público que chegou-se aos 90 minutos de espetáculo no Teatro Clara Nunes e que, por isso, todos devem ir embora. Ou seja, se, durante uma hora e meia, as músicas de Chico Buarque entraram na produção como respostas a quadros narrativos da memória cambaleante de um velho diretor de uma trupe teatral, agora fica-se escancarado que “Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos” é apenas um show musical e que todo o investimento em narrativa foi inútil. Enfim, o espetáculo continua por mais meia hora, já então com boa parte da graça ter sido abandonada, restando toda a responsabilidade do aplauso final para as interpretações e para Chico Buarque, sem qualquer pudor.

Em se tratando das interpretações, o espetáculo desperdiça a fulgurante voz de Lílian Valeska, como já se disse, perdida nessa história mal contada. Felipe Tavolaro e Renata Celidônio aparecem sem vida em quadros pouco interessantes e Malu Rodrigues, repetindo negativamente a Dorothy, de “O Mágico de Oz” (o melhor espetáculo musical de 2012), não fornece nem um ponto mais profundo de abordagem do seu personagem nessa produção. Estrela Blanco e Davi Guilherme, por outro lado, brilham no pouco que lhes é dado, descobrindo aqui e ali meios de fazer uma crítica e, assim, interpretar tão bem como, de fato, todos cantam. Soraya Ravenle, por sua vez, brilha no muito que lhe é dado, atendendo às expectativas sobre a segunda dama do teatral musical brasileiro (a primeira é Bibi!), título que lhe cabe com toda a justeza. Dando sentido para a narrativa que, depois, será abandonada, Cláudio Botelho brilha ao lado de Ravenle e abre belas oportunidades para seus colegas brilharem também, mostrando ser um intérprete tão bom quanto o é como profissional.

É preciso que se diga que o teatro brasileiro diminuiu bastante a função do cenógrafo desde que inventaram os andaimes. Aqui, mais uma vez, os temos no cenário de Rogério Falcão, querendo significar várias coisas, mas sem dizer nada. É positiva a sugestão de luzes fluorescentes no desenho de Paulo César de Medeiros, porque elas remetem a um tempo que já não é o atual, tempo esse adequado para a narrativa que é apresentada no início da peça. Os figurinos de Marcelo Pies são o ponto alto da produção. Sua limpeza, seu bem acabamento, a qualidade de sua modelagem fazem ver o gênero musical na galhardia (e na imponência) que lhe cabe, sobretudo no último vestido usado por Lílian Valeska. O visagismo de Beto Carramanhos, o melhor profissional brasileiro de sua área, tem seu maior momento na composição carregada de Davi Guilherme, sugerindo, com o lápis no olho, alguém que possa querer “roubar energias” de outrem tal qual vampiro.

A direção cênica de Charles Möeller enfrenta problemas de ritmo nas finalizações das músicas e no reinício dos quadros, carecendo de mais vigor. Tem, no entanto, momentos excelentes que ajudam Chico Buarque a receber os aplausos finais. “Tango do Covil”, “Ciranda da Bailarina”, “Geni e o Zepelin” e “Pedaço de Mim” são os melhores exemplos disso. No mesmo sentido, os arranjos de Jules Vandystadt ganham especial destaque em “Roda Viva” e em "Terezinha de Jesus” positivamente.

“Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos” reúne algumas canções compostas pelo célebre homenageado para espetáculos de teatro musical, filmes e para uma novela. Com isso, reforça-se o coro iniciado por Artur Xexéu em uma coluna recente quando dizia o cronista que era preciso se lembrar que, antes de ser conhecido como músico, Chico foi-nos apresentado como um dramaturgo. Pena que a dramaturgia desse espetáculo não o tenha homenageado também nessa parte. Parabéns, Chico!

*

Ficha técnica:

Elenco:
SORAYA RAVENLE
CLAUDIO BOTELHO
MALU RODRIGUES
DAVI GUILHERMME
ESTRELA BLANCO
FELIPE TAVOLARO
LILIAN VALESKA
RENATA CELIDONIO

Músicos:
THIAGO TRAJANO (violão / regência)
LUCIANO CORREA (cello)
PRISCILLA AZEVEDO (piano e acordeon)
MARCIO ROMANO (percussão) 

Concepção e direção:CHARLES MÖELLER
Orquestração e Arranjos:THIAGO TRAJANO
Arranjos vocais: JULES VANDYSTADT
Cenografia: ROGÉRIO FALCÃO
Figurinos: MARCELO PIES 
Iluminação: PAULO CESAR MEDEIROS 
Design de som: MARCELO CLARET 
Coordenação artística: TINA SALLES
Roteiro / Direção musical:CLAUDIO BOTELHO 
Direção: CHARLES MÖELLER 
Produção: Möeller & Botelho
Realização: Ministério da Cultura e Governo Federal
Produtores associados: Pathavidhatu Empreendimentos Culturais e Clássica Produções

Cosmocartas (RJ)

Atores e público em "Cosmocartas"
Foto: João Peroni

Muito mais que uma excelente homenagem

“Cosmocartas - Hélio Oiticica e Lygia Clark” é uma vibrante experiência estética, uma performance bastante bem conduzida pelos seus realizadores e um trabalho que vale a pena ser visto pelo seu vigor comunicativo. Seu maior mérito enquanto obra artística é o fato de que sua estrutura cênica-narrativa fala a mesma coisa que a dramaturgia, evidenciando uma coerência que é bem-vinda. Partindo das pessoas de Lygia Clark (1920-1988) e de Hélio Oiticica (1937-1980), chegamos as suas obras e aos seus jeitos de pensar o mundo, as pessoas e a arte. Em outra ponta, evolui-se das pessoas de Cristina Flores e de Álamo Facó para o modo como ambos personagens se comportam no mundo, diante das pessoas e o como parecem ver a arte. O resultado é a viabilização de uma intersecção vital que responde às perguntas que a peça propõe com inteligência, força e elegância. Com direção de Renato Linhares (com colaboração artística de César Augusto) e dramaturgia de Pedro Kosovski e de Facó, “Cosmocartas” está em cartaz no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, próximo da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro.

Em linhas gerais, performance é uma variação do teatro. A diferença mais significativa, dentro da semiótica teatral, é que, na performance, o espectador não tem diante de si marcas suficientemente claras para identificar os limites entre ator e personagem e é dessa “confusão” que esse tipo textual se serve. Diferente de uma biografia tradicional, em “Cosmocartas”, as personagens Lygia e Cristina (propositalmente, o mesmo nome da atriz que a interpreta) se misturam, fazendo com que o discurso em primeira pessoa ganhe, assim, uma força diferente. Na dramaturgia, o texto “baila” entre a troca de emails entre Flores e Facó e entre a troca de cartas entre Clark e Oiticica, resultando em uma aparente proximidade entre as reflexões e o mundo dos dois artistas plásticos dos anos 60 e 70 com o público do verão carioca de 2013-2014 e o Brasil teoricamente democrático. A quebra com a arte figurativa nos anos 50 e o manifesto neoconcretista dos anos 60 dialoga fluentemente com a Escadaria do Selarón (Jorge Selarón, 1947-2013), com criminalização das drogas e com a “cafonização” do Rio de Janeiro, essa última uma óbvia referência ao episódio do topless protagonizado por Cristina Flores e estampado na mídia impressa e virtual nas últimas semanas. Essa conversa constrói, em forma e em conteúdo, uma reflexão sobre os ideais de Clark e de Oiticica, concluindo que seus pensamentos sobreviveram felizmente às suas mortes, trinta anos depois, e ainda são atuais e necessários.

No prólogo, o espectador assiste deitado em redes (referência à série “Cosmococas”, da qual fazia parte o projeto “Quase-cinema”, de Oiticica) a um vídeo-documentário sobre a morte de Selarón, fato esse narrado com altas doses de poesia concreta. A palavra-objeto do material literário aponta para o conceito de obra-objeto (em uma rápida definição, quando a arte deixa de ser apenas estética e passa a ser uma coisa com a qual o antes apenas espectador se relaciona agora mais ativamente) que os anos 50 apresentaram ao mundo e que repercutem na forma como a Rua Manoel Carneiro, na Lapa, se tornou uma obra de arte sobre a qual as pessoas pisam. Em seguida, começa a peça, cuja primeira cena se dá em uma sala repleta de colchões (outra obra de Oiticica). Slides são apresentados em meio ao diálogo entre Clark-Flores e Oiticica-Facó, a uma explosão de plástico-bolha,a  música e a disponibilização de conhaque, tudo isso com efeitos estéticos de primeiríssima grandeza. O texto foi inspirado no livro “Lygia Clark/Hélio Oiticica: Cartas 1964-1974”, organizado por Luciano Figueiredo, mas se mistura, como já se disse, com a vida supostamente apresentada de seus intérpretes. Convites para que o espectador participe do acontecimento teatral não param de ser enviados, criando uma atmosfera de troca, de interação e de liberdade que é responsável pelo excelente contexto narrativo em que se dá toda a peça, principalmente na cena final. A direção de Renato Linhares oferece um ritmo cálido, e positivamente não linear, no espetáculo que se apresenta ao entardecer. 120 minutos se passam fluentemente sem que haja, em “Cosmocartas”, problemas a serem resolvidos, conflitos, heróis e sagas, mas, ao contrário, uma articulação de quadros que parece tão natural como a “Fita de (August) Möbius” (1865), que inspirou a “Unidade Tripartida”, do suíço Max Bill, obra fundante para o concretismo brasileiro. O momento final, que acontece em meio a uma instalação do coletivo Opavivará!, não encerra definitivamente o espetáculo, mas, de forma positiva, marca intenção de negar molduras,como defenderam Clark e Oiticica em boa parte de suas vidas.

O trabalho de performance/interpretação de Cristina Flores e de Álamo Facó é tão positivo quando se mostra intimista como o é quando explosivo. Se, em um, temos o estabelecimento de relações mais próximas entre o público e os personagens, em outro, temos o espetáculo no seu sentido mais pleno. A não linearidade da narrativa já apontada se vê na evolução desses momentos em que a dupla de intérpretes/performers se mostra principalmente bastante receptiva à participação que eles almejam. Há intensidade e plenitude, força e carinho na viabilização da narrativa.

Pela possibilidade de grande número de reflexões, mas principalmente porque todas elas estão bem articuladas, “Cosmocartas - Hélio Oiticica e Lygia Clark” vale a pena ser visto como um espetáculo que não apenas homenageia dois grandes nomes da cultura brasileira, mas dá continuidade às suas proposições. Aplausos.

*

Ficha técnica
Invenção: Álamo Facó, Cristina Flores, Pedro Kosovski, Maria Flor Brazil, Renato Linhares e Opavivará!
Elenco: Álamo Facó e Cristina Flores
Dramaturgia: Pedro Kosovski e Álamo Facó
Colaboração dramatúrgica: Cristina Flores e Renato Linhares
Direção: Renato Linhares
Diretora assistente: Laura Samy
Colaboração artística: Cesar Augusto
Luz: Tomás Ribas
Figurino: Ticiana Passos
Direção de arte: Opavivará!
Trilha sonora/Som: Gabriel Fomm
Projeto gráfico: Estúdio▲ | www.triangulo.nu
Documentação e vídeo: Maria Flor Brazil
Fotografia: João Penoni e Maria Flor Brazil
Administração financeira: Rodrigo Gerstner
Produtora assistente: Luana Carvas
Produção executiva: Daniela Paita
Direção de produção: Camila Vidal

sábado, 25 de janeiro de 2014

Edypop (RJ)

João Velho (Édipo) e Letícia Spiller (Jocasta)
Foto: divulgação

Querendo dizer muito, não diz nada

"Edypop" quer dizer muita coisa, mas não diz (bem) nada. Em uma mistura do mito grego de Laio, pai de Édipo, com o psicanalista Freud e a construção de sua teoria acerca do Complexo de Édipo, ao lado do ativismo pacífico de John Lennon e das manifestações brasileiras de junho de 2013, principalmente contra o Governador Sérgio Cabral, a peça se perde em argumentos não estruturados, jogados em cena em uma dramaturgia (cênica e literária) cansativa. Quem conhece as tragédias gregas não tem à sua disposição qualquer argumento em favor de uma articulação entre Laio e Sergio Cabral além do único fato de que os dois são governantes. Quem não conhece nem o mito de Édipo e nem os estudos da psicanálise estará diante de uma história pobre pobremente contada. Com excelente interpretação de Remo Trajano (Laio) e de Jorge Caetano (Freud), a peça tem ainda a forte presença de Isadora Medella em belíssima participação, o ótimo cenário de Fernando Mello da Costa e a boa direção musical de Felipe Storino. Em cartaz no Teatro Arena do Espaço Sesc Copacabana, o espetáculo é assinado por Aquela Cia. de Teatro, a mesma de "Outside, um musical noir" e de "Cara de cavalo".

Fernando Mello da Costa situa a história sobre um mapa astral e sob um globo ocular arrancado de uma face humana. Com isso, situa bem, por um lado, o conceito de tragédia (no caso da grega, os homens são vítimas de um destino previamente traçado pelos deuses) e, por outro, faz referência com o fim da vida de Édipo, ele que furou os próprios olhos, condenando-se à escuridão após saber que matou o seu próprio pai e casou-se com a própria mãe. Em cena, o pequeno Édipo (João Velho) dorme enquanto seu pai Laio se aproxima para matá-lo contra a vontade de Jocasta, mas em favor do povo que sofre com a peste enviada pelos deuses da qual só se livrarão quando Édipo morrer. Nesse bom contexto inicial de "Edypop", vemos em Laio o mesmo problema de Agamenon, que teve que sacrificar sua filha Ifigênia para agradar aos deuses e assim conseguir bons ventos necessários na batalha da Guerra de Tróia. Ou seja, tanto em Laio como (mais claro) em Agamenon, vemos o conflito entre o dever do homem público (favorecer o seu povo) versus o homem pai (defender sua descendência), mas, diferente de Agamenon, Laio não vai até o fim. Em Sófocles, Laio mandou que o bebê sem nome fosse amarrado pelos pés (daí o nome Édipo) em um precipício, abandonado ao destino (Já Ifigênia foi salva pela piedade dos deuses diante da fidelidade de Agamenon). O problema de "Edypop" começa a aparecer quando esse conflito de Laio se enfraquece e começa a ganhar importância a relação desse Rei com as manifestações públicas contra o governo fluminense de Sérgio Cabral em 2013. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, pois, de um lado, os tebanos não sabiam que sofriam a ira dos deuses porque Laio tivera um filho, fugindo do destino que lhe havia sido traçado (o de que não seria pai ou, se fosse, seu filho o mataria e casar-se-ia com sua esposa. É bom lembrar que o que leva Laio a desafiar os deuses e ter um filho é a vontade humana de ser pai). De outro lado, o povo brasileiro nas manifestações do ano passado culpou o governo democrático pelos seus males, sabendo de alguns deles. Os tebanos não votaram em Laio e o tinham como esperança, os brasileiros votaram em seus governantes e os têm como seus algozes. Laio precisa sacrificar o próprio filho para salvar o seu povo. Sérgio Cabral, no mínimo, precisou sacrificar seus passeios de helicóptero.  Por tudo isso, a justaposição dos dois personagens (Laio e Sérgio Cabral) é desarticulada apesar da força agressiva que a dramaturgia Pedro Kosovski faz.

Ainda, em outro investimento dramatúrgico descabido, temos a relação entre o Doutor Freud e seu paciente Laio, esse visto a partir do seu ciúme (e da insegurança acerca) do próprio filho ainda bebê. Laio está perturbado mentalmente e, por isso, incapaz de governar. O Complexo de Édipo, na teoria de Freud, explica a forma como o bebê masculino se identifica com o pai em relação à mãe, formando, assim, a sua identidade heterossexual. Ela ganhou esse nome apenas como uma referência metafórica ao mito do homem que casou-se com a própria mãe e nada além disso. Não há, além dessa questão superficial de nomenclatura, relação entre a teoria psicanalítica e o mito grego pelo simples fato de que Édipo não se apaixonou pela mãe, mas ganhou a mão da Rainha de Tebas por ter desvendado o mistério da Esfinge, que assolava a cidade quando na sua chegada vindo de Corinto. (Ou seja, Édipo não sabia que Jocasta era sua mãe quando com ela teve filhos.) Nesse sentido, a crítica de Kosovski à teorização, que deveria dar lugar à prática, na visão da dramaturgia, é infundada e mal articulada nas sessões entre Laio e Freud em mais um exemplo do quão fraco é esse texto.

A direção de Marco André Nunes não só não ajuda o texto como aumenta as cores de seus problemas. Há um excesso de gritos, construções superficiais e de movimentação pobre. Enquanto fala de patriotismo e de democracia, a peça traz inúmeras canções interpretadas em inglês (que só aqueles que conhecem o idioma e reconhecem elas como composições de John Lennon entendem o significado delas e suas relações com a peça). As referências ao mito grego e à teoria psicanalítica são (como diz no release) realmente pouco claras de forma que parece ter havido apenas uma captura selvagem dos nomes dos personagens e de um pouco da trama milenar que os envolve. Em lugar disso, há uma força imensa em valorizar as manifestações de 2013, os mascarados, as denúncias de corrupção, o movimento #ocupa, mas tudo isso sem articulação, tendo como ponto alto um beijo gay completamente deslocado nos últimos minutos da peça. "Edypop" não tem, por tudo isso, uma estrutura coesa e coerente, mas se apresenta de forma muito frágil enquanto narrativa.

João Velho, Letícia Spiller e Jandir Ferrari (Édipo, Jocasta e o irmão de Jocasta aqui chamado Clemente Greenberg, uma referência ao crítico de arte) têm trabalhos medianos, superficiais, lineares. Com a sua tradicional dose de grande carisma, Velho consegue alguns momentos interessantes, mas Spiller e Ferrari nem isso, apresentando construções duras e sem vida. Laura Araújo (Anna O.) vai no mesmo sentido infelizmente, mas mais prejudicada pela forma como seu personagem aparece na história (sua única função é argumentar contra a teoria em favor da prática no debate com Freud). Jorge Caetano surge no seu melhor trabalho dos últimos tempos, vivendo um personagem que resiste à caricatura (diferente de Velho, Spiller, Ferrari e de Araújo) e oferece um solo musical sensível, potente e tocante. É dele o melhor momento da peça, que se dá quando Laio, seu paciente, manda-o prender e ele diz "Isso é atitude de um rei", sugerindo que o Rei possa estar curado a partir de uma terapia que, nas palavras da peça, não trabalha com a hipótese da cura. Além de Freud, que é um personagem coadjuvante, Laio é quem tem mais complexidade e oferece, por isso, maiores desafios ao seu intérprete, a quem cabem mais elogios. Remo Trajano o faz bastante bem, cheio de excelente dicção, dosagem na representação das emoções, integridade nos movimentos corporais e proxêmicos e ótima expressão. Isadora Medella lidera o trio das babás (composto também por Gabriela Geluda e Paula Otero) com uma participação pequena, mas marcante positivamente.

Dentro da concepção da direção, a trilha sonora dirigida por Felipe Storino é positivamente interpretada, oferecendo o rock como uma ilustração do protesto social que a peça parece querer propor e representar. Dentro dessa proposta também, vão os figurinos de Marcelo Marques e a iluminação de Renato Machado.

Com uma selvagem captura de um mito grego, de uma teoria psicanalítica, de um personagem da história da música mundial e de suas músicas, e de um movimento político popular e espontâneo recente, "Edypop" não é bom.
*
Ficha técnica:

Texto: PEDRO KOSOVSKI
Direção: MARCO ANDRÉ NUNES

Elenco:
LETÍCIA SPILLER (Jocasta, voz solo)
JOÃO VELHO (Edy, voz solo)
REMO TRAJANO (Laio, voz solo)
JORGE CAETANO (Freud, voz solo)
JANDIR FERRARI (Clemente Greenberg)
LAURA ARAUJO (Anna O., voz solo)
GABRIELA GELUDA (Esfinge, Babá 2, voz solo, teclado)
ISADORA MEDELLA (Vaca, Babá 2, baixo elétrico e vocal)
PAULA OTERO (Babá 1, voz solo, violoncelo)
FELIPE STORINO (guitarra) . MAURICIO CHIARI (bateria)
Corpo de alunos do Tablado (Os Mascarados)


Arranjos e Direção Musical FELIPE STORINO
Cenografia FERNANDO MELLO DA COSTA

Figurinos MARCELO MARQUES
Direção de Movimento MARCIA RUBIN
Iluminação RENATO MACHADO
Visagismo JOSEF CHASILEW
Preparação vocal DANIELLE LIMA
Músicas Originais FELIPE STORINO e PEDRO KOSOVSKI
Videografismo GUSTAVO GELMINI
Direção de Produção CAMILA VIDAL

PARCERIA:Sesc Rio
PATROCÍNIO:Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro Secretaria Municipal de Cultura

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Preciso andar (RJ)

Suzana Nascimento e Tárik Puggina em cena
Foto: Divulgação

Força, beleza e sensibilidade no novo espetáculo de Ivan Sugahara

É muito bonito ver como a arte pode nos levar para lugares tão específicos e, por isso, tão sensíveis. É para um desses, ou para vários desses, que Ivan Sugahara e Tárik Puggina quiseram nos levar ao idealizar a produção de "Preciso andar" ("Wanderlust", do jovem dramaturgo inglês Nick Payne). Em cena, no Teatro de Arena da Caixa Cultural, Liz (Suzana Nascimento) é uma mulher que chega ao limite de não saber como dizer ao próprio marido que sexo é mais do que apenas penetração. Se ela verbalizar isso de forma clara, é possível que se perca a espontaneidade (e a verdade). Se ela deixar transparecer de outra forma, é possível que ele pense que ela perdeu o interesse sexual nele. Nessa encruzilhada, estão em foco a intimidade da relação a dois, as formas como cada um vive a sua própria sexualidade e a do outro, os diferentes papéis no jogo da conquista e no da manutenção dela. Com extrema sensibilidade e vital força, Sugahara conduz um excelente conjunto de atores em belíssimos trabalhos de interpretação além de brilhantes contribuições da equipe técnica. "Preciso andar" faz 2014 começar bem a programação teatral do Rio de Janeiro.

Liz (Nascimento) é uma urologista, casada com Alan (Otto Jr.), um professor de literatura, e mãe de Theo (Fábio Cardoso), um adolescente em pleno início da vida sexual. Na primeira cena, Liz recebe o paciente Estevão (Tárik Puggina), infectado por Cândida, uma doença sexualmente transmissível. Liz e Estevão foram amigos quando ainda adolescentes e não se vêem desde aquele tempo. A cena em que Liz examina o pênis de Estevão dá o tom do que vamos ver em seguida: o sexo e a sexualidade serão temas tratados sem pudor, mas com muita seriedade. Liz e Alan não fazem sexo há um ano embora o apetite sexual dele por ela continue o mesmo. Liz se sente pressionada (inclusive por ela mesma) a fazer algo em relação a isso, mas não sabe como, nem o quê. Cada quadro proposto pelo texto de Payne funciona, nesse contexto, como um comentário inteligente acerca do assunto. Clara (Cristina Lago), professora colega de Alan, confessa que se masturba com frequência, mas não confessa a imensa solidão em meio a qual ela vive. Théo, apaixonado por uma menina mais velha da escola, pede a ajuda da amiga Michele (Beatriz Bertu) para desvendar os mistérios do corpo feminino que ele só conhece via internet. Entre os dois adolescentes, começa uma sessão de exercícios sexuais frios e meramente investigativos que, no final da peça, farão todo o sentido para compreender Otto, o oposto complementar de Liz, esses dois últimos os esteios de sustentação dessa bela dramaturgia. Uma das marcas mais positivas do texto de Payne é que todos os personagens podem ser analisados como protagonistas de um argumento em favor do tema. Estevão, por exemplo, inclui a realidade de pessoas, casadas há muito tempo, e que, perdendo o interesse sexual pela parceira, passam a querer redescobrir-se no exercício instigante da conquista. Ou seja, por todos os lados, a sexualidade surge em seus mais diversos pontos de vista, todos eles tratados com a devida atenção.

"Preciso andar" é coberto de sutilezas. O problema de Liz é manifesto com expressões delicadas que Suzana Nascimento vai deixando transparecer quando se pune porque não ouviu uma última frase de seu marido, quando se vê aceitando convites para beber de Estevão, quando se sente preocupada com a forma de pensar sobre sexo do seu filho. Dadas as devidas proporções, a mesma sutileza se encontra na forma como o espectador vai tendo acesso a marcas que o fazem pensar no quanto tanto a professora Clara como a aluna Michele, vividas por Lago e por Bertu, se deixam experimentar sexualmente por seus homens, mas também deles almejam um pouco mais. Em Théo, de Cardoso, vemos com clareza o seu medo de não decepcionar sexualmente a sua futura parceira, sutileza essa que afasta a hipótese superficial de que os homens são brutos por egoísmo. Em Estevão, de Puggina, cujo contorno interpretativo é o mais fácil e positivamente visto, vemos sua ansiedade inicial em expôr a uma conhecida um problema de saúde extremamente íntimo e, logo em seguida, em tentar conquistá-la, para depois o encontrarmos mais sóbrio, livre da expectativa de obter um amor que não é seu.  Nesse sentido, o conjunto de trabalhos de interpretação funciona como uma máquina delicada e forte que movimenta a narrativa cênica de forma coesa, íntegra, potente e bela.

De extrema beleza e força comunicativa são o cenário de Aurora dos Campos, a iluminação de Tomás Ribas e o figurino de Ticiana Passos. A estrutura transparente que divide o palco, permite com que os vários ambientes existam em separado, mas sem usos fixos, de forma que o consultório pode virar uma pizzaria, a sala dos professores um bar e o quarto do casal em um quarto de hotel sem problemas na narrativa, mas com positivos efeitos estéticos. Ticiana Passos apresenta excelente trabalho na escolha de calças largas para Estevão e nas trocas não econômicas dos figurinos de Liz, detalhes que ajudam a contar a história, essa bem situada assim no tempo e no espaço.

"Wanderlust" significa "sair da zona de conforto", mas "Preciso andar" tem ainda mais significados possíveis. Pode-se precisar andar para fugir de um problema, pensar nele depois, dar tempo ao tempo, buscando um lugar de descanso que todos os humanos merecem e precisam. Mas pode querer dizer também sair da posição atual, avançar, fazer girar a roda, mudar os ares e mudar de ares. Dirigido por Ivan Sugahara, esse assistido por Lisa Eiras, temos aqui uma peça de arte que tem o mérito de, falando de seres humanos, nos lembrar que fazemos parte dessa espécie e, por isso, somos cheios de complexidade e de beleza. Aplausos!

*
Ficha técnica:
Autor: Nick Payne
Tradução: Gustavo Klein
Direção: Ivan Sugahara
Diretora assistente: Lisa Eiras
Assistente de direção: Cynthia Reis
Elenco: Beatriz Bertu, Cristina Lago, Fábio Cardoso, Otto Jr., Suzana Nascimento e Tárik Puggina
Figurinos: Ticiana Passos
Cenário: Aurora dos Campos
Iluminação: Tomás Ribas
Preparação Vocal: Rose Gonçalves
Direção de Movimento: Paula Maracajá
Assessoria de Imprensa: Silpert e Chevalier Comunicação
Fotos: Dalton Valério
Programação Visual: Luciano Cian
Direção de Produção: Carla Torrez Azevedo
Produção Executiva: Carolina Kern
Realização: Nevaxca Produções
Idealização: Ivan Sugahara e Tárik Puggina

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Ricardo III (RJ)

Em cena, Gustavo Gasparani
Foto: divulgação

Wikipédico

Duas coisas são inegáveis na montagem atual de "Ricardo III": que Gustavo Gasparani é um grande ator e que William Shakespeare é um grande autor. O problema é que essas duas certezas já existiam antes da produção desse espetáculo, agora em cartaz no Mezanino do Sesc Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro. Escrita em 1592, "Ricardo III" tem 54 personagens e narra, a partir do olhar ficcional de Shakespeare, o fim da Guerra das Rosas, em que o último rei da Casa de York foi morto e o primeiro Tudor coroado (Henrique VII era avô da Rainha Elizabeth, essa que reinava quando Shakespeare escreveu a peça). É uma tragédia e, como tal, reflete um mundo em que seus personagens não são senhores dos seus destinos, mas vítimas de um arranjamento que é anterior e superior a todos eles. "Ricardo III" se perpetuou não por narrar a corrupção no governo da Inglaterra nos últimos dias da Idade Média, mas, baseado nas palavras da Rainha Margareth à Rainha Elizabeth, por dizer que todo o mal que fazemos para os outros recairá sobre nós mesmos. A versão dirigida por Sérgio Módena, preocupada em valorizar as potencialidades interpretativas de Gasparani e em contar a história escrita por Shakespeare com apenas um ator, precisou superficializar os personagens e o enredo, transformando o que é tragédia em uma farsa, outro gênero com igual mérito, mas que reflete outro mundo. De fato, a trama é contada, mas seu conteúdo desapareceu.
A farsa vem do teatro alegórico medieval e atinge o seu apogeu na Commedia Dell`Arte, que dará lugar ao romantismo e, depois, ao melodrama. Cheia de relações de causa e efeito, ela reflete uma visão tecnicista de mundo, situando o homem como centro de tudo o que lhe acontece. "Ricardo III" foi escrito como uma tragédia elizabetana que, assim como os gregos e como o Teatro do Absurdo, fala sobre a falta de lógica nos acontecimentos. Coxo e feio, Ricardo era o irmão mais novo de Eduardo IV, que já tinha filhos. Ou seja, nunca seria Rei. Como Édipo, que fugiu de Corinto para não se casar com a mãe e matar o pai, ou como Winnie, que tenta ser feliz apesar de estar enterrada em um buraco, Ricardo foge do seu destino e decide ser rei. Como resposta, seu reinado dura apenas dois anos e é o fim de toda a sua dinastia. Ou seja, ver Ricardo como apenas um homem malvado e sem complexidade é um ponto de vista nada mais que superficial. E, na montagem de Módena e de Gasparani, essa superficialidade encontra eco nos recursos farsescos de que ator e diretor parecem ter precisado se utilizar para dar conta de toda essa complicadíssima história que eles almejaram encenar. A Rainha Elizabeth vira as mãos nos ombros, Dorset vira um jeito de falar lento, os príncipes da Torre viram duas canetas Pilot e, assim, todos os personagens que não desapareceram tiveram que ser atribuídos a marcas fixas que, podendo ser repetidas, garantiriam a rápida identificação e o avanço da narrativa. Como já se disse, não há dúvidas de que há aí uma boa encenação e a prova disso é que todo o enredo fica claro para o público apesar de escassos serem os recursos narrativos, esses explorados na riqueza de suas potencialidades. No entanto, a história é muito mais que apenas o enredo e, assim, esse "Ricardo III" deixa o texto negativamente ainda mais previsível do que já é. (A previsibilidade não só não é um problema para a tragédia - e aqui temos uma farsa - como é o material do que ela é feita.)
É magistral o uso da iluminação no desenho de Tomás Ribas, esse responsável pelos melhores momentos estéticos da peça.  A Torre de Londres, feita com um spot virado para cima, mas vazando luz em circular para baixo, é um exemplo do quão inteligente é o uso do instrumento aqui, garantindo a impressão de altivez necessária para o local representado, mas usando apenas um objeto simples. A trilha sonora de Marcelo Alonso Neves reforça os momentos da narrativa, concordando na concepção do espetáculo em criar a atmosfera do ou para o melodrama. Na mesma direção, vai a cenografia de Aurora dos Campos, oferecendo um quadro branco, canetas Pilot, uma escrivaninha e uma lixeira, produzindo uma sala de aula em que um "resumo" de "Ricardo III" será contado.
Já se viu "Medeia" (direção de Luciano Alabarse) ganhar em uma encenação as cores dos diálogos entre ela e Jasão aumentadas com vistas a explorar a relação marido e mulher e fazer, assim, o público entrar mais fortemente na história trágica. Também já se viu "Esperando Godot" (cena de "Cacilda", de Zé Celso Martinez Corrêa) terem suas falas ditas com emoção com vistas a reforçar o fato de Cacilda Becker ter falecido enquanto interpretava essa história. O teatro é vivo e o espectador que for à plateia esperando ver o que sempre viu deve, na verdade, ficar em casa revendo vinte vezes o mesmo DVD. Mas, no caso desse "Ricardo III", não é possível acreditar que todas as adaptações foram feitas para dizer o que já se sabia: de novo, que William Shakespeare é um grande autor e que Gustavo Gasparani é um grande ator.

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Ficha técnica:
Autor: William Shakespeare
Adaptação: Gustavo Gasparani e Sérgio Módena
Tradução em verso: Ana Amélia Carneiro de Mendonça
Direção: Sérgio Módena
Ator: Gustavo Gasparani
Música original e Direção musical: Marcelo Alonso Neves
Direção de movimento: Marcia Rubin
Cenografia: Aurora dos Campos
Figurino: Marcelo Olinto
Iluminação: Tomás Ribas
Apoio técnico: Liana Leão
Assistente de direção: Erika Riba
Fotografia: Nil Caniné
Projeto Gráfico: Mary Paz Guillén
Visagismo: Marcio Mello
Direção de produção: Alice Cavalcante
Produção executiva: Fernanda Lima
Administração: Sábios Projetos
Produção: Coisas Nossas Produções Artísticas e Sábios Projetos
Realização: Gustavo Gasparani e Coisas Nossas Produções Artísticas


domingo, 5 de janeiro de 2014

As melhores peças de 2013

Quem tem medo de Virgínia Woolf?
Abaixo, a lista das melhores peças teatrais (em ordem alfabética) que estiveram em cartaz no Rio de Janeiro no ano de 2013 na opinião desse blog. De propósito, preferiu-se não limitar o seu tamanho, considerando (e valorizando) a multiplicidade e a qualidade da programação teatral carioca. Parabéns aos realizadores (produtores, técnicos e artistas) e ao público. Feliz 2014!




A arte da comédia

A descoberta das Américas

A importância de ser perfeito

Antes da chuva

Aos domingos

Aqueles dois

Caixa de areia

Como vencer na vida sem fazer força

Conselho de classe

Cucaracha

Dias Felizes – Suíte em 9 movimentos

Dueto para um

Edukators

Elefante

Fábrica de chocolate

Fim de partida

Incêndios

Laboratorial

Novecentos

Maravilhoso

O filho eterno

O homem com a flor na boca

O jardim secreto

O tempo e os Conways

Palhaços (SP)

Paraíso agora! – Ou Prata Palomares

Pequena coleção de todas as coisas

Quem tem medo de Virgínia Wolf?

Realismo

Sexo, drogas e rock’n’roll

Simplesmente eu, Clarice Lispector

The book of mórmon

Trabalhadores do mar

Um dia qualquer

Um inimigo do povo

Vermelho