domingo, 29 de janeiro de 2012

Breu (RJ)

Fotografia: Paula Huven

Belo!

                Interpretada brilhantemente por Kelzy Ecard, Carmen é cega. Nós, o público, entramos no espaço destinado à audiência e, pela ausência de cortinas, identificamos o valoroso cenário assinado pela dupla de diretoras Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa e por Aurora dos Campos, que, absolutamente perfeito em todos os aspectos tanto funcionais como estéticos, constrói em todos os detalhes a casa de uma pessoa simples num tempo que passou há algumas décadas. Então, a luz se apaga totalmente e ficamos todos na completa escuridão. É quando começamos a ouvir a voz da personagem citada e, muito gradualmente, poucas luzes, cujas fontes também são diegeticamente justificadas (não há refletores no urdimento), começam a acender apenas possibilitando parciais distinções. Na casa de Carmen, está Aurora, uma jovem que veio ajudá-la no preparo de seu famoso molho de cachorro-quente. Embora a escuridão inicial propiciada pela direção indique o ponto de vista de Carmen, o breu que acontece na sequência e até o fim da narrativa permite que nos identifiquemos com Aurora. Ela vê por nós, o público, e enxerga melhor quando lhe é possível acender algumas velas. O gênero que melhor dá conta de uma obra estética cuja fruição acontece a partir de um personagem (e em que o cenário é incansavelmente fiel a seu similar além da narrativa) é o realismo psicológico. Estamos dentro de Aurora, não sabemos o que sente Carmen, que, aliás, só a identificamos como cega depois de alguns minutos antes dos quais a vimos picar legumes velozmente com uma faca em mãos, além de se movimentar pelo cenário, acender o fogão a gás e trabalhar na cozinha normalmente apesar da fraca luz. O convite é para que viajemos dentro da situação, observando seus discretos movimentos, suas possibilidades, seus encantos.
                O texto escrito por Pedro Brício não tem a sua força na sucessão de acontecimentos, mas na partilha de reações, aspirações, impressões, sendo bastante rico em sua inteligente sensibilidade. Duas mulheres de idades diferentes que não se conhecem dividem o mesmo espaço: uma precisa de dinheiro e a outra precisa de ajuda no trabalho. Conversam, então, para passar o tempo, para se conhecer e, quanto mais sabem uma da outra, ou melhor, quanto mais Aurora (nós) conhece Carmen, mais presa está à situação, mais ligados estamos nós à história (Carmen não mostra ser dependente de Aurora em nenhum momento, embora seja possível reconhecer como valiosa a companhia que a outra que lhe fez.). A evolução chega em um ponto em que a mais jovem já não pode mais se afastar da mais velha sem culpa: o vínculo está estabelecido, a relação plena. Uma vez que “Breu” é uma obra artística assinada e patrocinada por profissionais talentosos e respeitáveis, pode-se estar certo de que nada é por acaso, mas mérito de quem tão bem arregimentou os signos a ponto de serem suas relações acessíveis e, por isso, “dizerem” tanto para quem lhe assiste.
                Em se tratando dos méritos, há que se começar pelas interpretações das atrizes, porque é nelas que está o poder e o ato de transformar todos os demais elementos em teatro.  Ecard exibe grande domínio de técnica na forma como se movimenta pelo espaço cênico mantendo os olhos fechados, no jeito como fala e ouve e, sobretudo, na sutileza das reações, que emociona pela seriedade com que se vê a construção. Aurora vai conhecendo Carmen aos poucos e essa dosagem, estabelecida por Brício e por Campos/Yanagizawa, é apresentada de um jeito sutil, intimista, extremamente próximo do real além da narrativa. Assim como Horta, Ecard positivamente se esforça em apagar marcas da ficção, aproveitando-se positivamente da proximidade do público e articulando as palavras como se não houvesse ninguém ali além da atriz com quem contracena. Ao seu lado, Horta obtém, em todos os aspectos, os mesmos excelentes resultados, estando na possibilidade do humor o equilíbrio que sua construção apresenta em relação à cegueira de Carmem. Em várias passagens, o público se diverte diante da interpretação não menos delicada da jovem atriz, o que é um feliz exemplo das possibilidades dramáticas da obra como um todo.
                Ainda sobre os méritos, os aspectos plásticos demonstram o extremo bom gosto da equipe técnica de “Breu”. Os figurinos de Flávio Graff são coerentes com a concepção do texto e da encenação, auxiliando na construção da ideia de tempo e na caracterização dos personagens de forma interessante. A iluminação de Tomás Ribas proporciona momentos visuais bastante harmônicos em perfeito casamento com o cenário já elogiado. A trilha sonora de Felipe Storino é sutil e delicada, enaltecendo, mais para o final da apresentação, sozinha a evolução da narrativa, o que é um aspecto negativo na direção de Campos e de Yanagizawa.
                O ritmo da encenação se estabiliza negativamente a partir da cena em que Aurora, que havia partido, retorna para a casa de Carmen, já próximo do fim da peça. O diálogo que, como já se falou, demonstra um forte empenho das intérpretes no sentido de apagamento das marcas de teatralidade, evolui sem modificar o desenho narrativo, mantendo uma prejudicial, porque facilmente tediosa, linearidade. O resultado é que, com as cenas construídas tão próximas da realidade além da narrativa, parece que estamos diante de um jogo de improvisação. O final chega sem preparação, como se chegasse simplesmente porque tem que chegar, o que poderia ser positivo se estivéssemos diante de uma obra sem tanto apelo à catarse como é o caso. Dessa forma, o final, que acontece em um ambiente além da casa, tão bonito como o seu interior, acontece coroando visualmente o belo espetáculo que se viu, mantendo as grandes interpretações das atrizes Ecard e Horta, mas abdicando do ápice que emocionaria inclusive pela sutileza do texto de Brício, de cujas personagens nos despedimos, certo de que elas estão juntas.

*

Ficha técnica:
Texto: Pedro Brício
Elenco: Andréia Horta e Kelzy Ecard
Direção: Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa
Assistência de Direção: Liliane Rovaris
Cenário: Aurora dos Campos, Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa
Assistente de Cenário: Camila Cristina
Iluminação: Tomás Ribas
Assistente de Iluminação: Camilo Soudant
Operador de Luz: Vilmar Olos
Figurino: Flávio Graff
Assistente de Figurino: Junior Santana
Costureira: Odília Almeida
Trilha Sonora: Felipe Storino
Operador de Som: Telma Lemos
Contra-regra:Raoni Leher
Programação Visual: Felipe Nuno
Assessoria de Imprensa: Mina de Ideias
Direção de Produção: Laura Castro e Marta Nóbrega
Produção Executiva: Isabel Pacheco
Equipe de Produção: Nathalia Atayde e Renata Peralva
Produção: JLM Produções Artísticas e Siqueira Campos Produções
Patrocínio: Banco do Brasil
Realização: CCBB

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

As Mimosas da Praça Tiradentes (RJ)

Foto: divulgação

Orgulho de ser nacionalmente bairrista

                 “Com “As Mimosas da Praça Tiradentes”, Gustavo Gasparani dá continuidade ao trabalho, iniciado há seis anos de pesquisa e busca por uma dramaturgia genuinamente brasileira para musicais,”* essa abandonada, infelizmente, nos tempos da ditadura por conta do militarismo/tecnicismo norte-americano que, chegando às salas de espetáculos, varreu o que restava do teatro de revista, dando lugar ironicamente ao teatro ideológico. Desde então nacionalmente conhecidos são apenas os musicais de Chico Buarque, entre eles, “Ópera do Malandro” e “Gota d’água”, ambos carregados de posicionamentos políticos, mas célebres pela revitalização da boa e velha “revista” nacional. Felizmente, o cenário artístico teatral começa a mudar quando, da versão brasileira de “Company” pra cá, Cláudio Botelho e Charles Moeller, Jorge Takla e Miguel Falabella têm consolidado o terreno para a produção de comédias musicais, em especial os clássicos da Broadway, reunindo um público cada vez mais crescente e formando atores que também cantem e dancem, cantores que também interpretam e dançam e bailarinos que também cantem e interpretem. O mais importante mérito do trabalho desse grupo de realizadores é, sem dúvida, a conquista de patrocinadores que, vendo a receptividade do público, possibilitam casas de espetáculos adequadas para o gênero e alimento as suas produções: cenários, figurinos, maquinaria, produção. Aos poucos, pessoas valiosas como Gasparani começam a surgir e o gênero musical volta a se encontrar com o Brasil verdadeiramente. E cá estamos.
                Engana-se quem pensa que “As Mimosas da Praça Tiradentes” é um espetáculo sobre a Praça Tiradentes. Quem não leu nada sobre a peça, nem mesmo o programa entregue na entrada, tem ao seu dispor instrumentos necessários para desfazer essa compreensão tão logo as cortinas se abrem e os painéis deixam de ser fotografias editadas, a escadaria deixa de ser uma longa escada e as cortinas deixam de ser tecidos de veludo molhado a cobrir espaços não-revelados. Quando o primeiro ator entra em cena, os signos tornam-se signos teatrais e o real tema do espetáculo surge eficientemente tanto no que diz respeito à forma como, principalmente, ao conteúdo: o Brasil. É hora, então, de abandonar os pré-conceitos (conceitos construídos antes da peça começar) e assumir participativamente os conceitos: o teatro, afinal, se expressa através de uma linguagem que se estabelece junto com os falantes, sendo a única arte em que o artista e sua obra precisam conviver no mesmo espaço durante o tempo da apresentação para existir. Que Brasil é esse?
                Escrito por Gasparani e Eduardo Rieche, o Brasil de “As Mimosas da Praça Tiradentes” está no deboche, na ironia escrachada, na força criativa da bagunça brasileira, esses todos elementos que salgam a boca de qualquer yankee ou europeu e os fazem, ao mesmo tempo, se apaixonar por nós, aparecendo tanto na malemolência do roteiro positivamente superficial, quanto na ilógica estrutura que alterna momentos encadeados de forma clara e substituições repentinas. Para citar algumas marcas, basta recuperar três entre várias cenas memoráveis: 1) Entra a Mulher Maravilha com uma capa esvoaçante. De nada serve a capa se não há vento. Então, entram bailarinos munidos com ventiladores cor de rosas ligados, enquanto dois atores balançam com as próprias mãos a capa da super-heroína; 2) Dom Pedro I entra cantando o Hino da Independência, vestido a la alegoria de carnaval da Sapucaí. Seu figurino, então, se torna o de Tiradentes, com luzes horizontais acesas por baixo do manto; 3) Poemas clássicos da nossa literatura são rasgados e cenas de Shakespeare e de Martins Pena são deturpadas. Ou seja, 1) a criatividade brasileira é arma irredutível na resolução de problemas emergenciais, criticando a existência dos mesmos, sem perder o bom humor; 2) a consciência histórica do brasileiro, infelizmente, é assumidamente falha, essa expressa em quão pouco sabemos dos acontecimentos que marcaram a formação do nosso país e em quão afoitos somos à demonstração de patriotismo em relação a vários outros países; e 3) Aqui, com muita facilidade, tudo vira samba, tudo vira festa, tudo vira carnaval. O Brasil, a cultura brasileira, não necessariamente apenas a carioca, está, afinal de contas, na carnavalização, termo que não surgiu com as marchinhas, com as escolas de samba e com os blocos, mas vem de Nietzsche e de Bahktin, estudiosos, entre outras coisas, do teatro, das sociedades e das relações humanas no longo período da Idade Média. Carnaval aqui quer dizer se utilizar de uma máscara qualquer para se encontrar livre de qualquer culpa ou de comportamento pré-determinado, estando livre para criticar, para brincar, para avançar limites. Sobre “As Mimosas da Praça Tiradentes”, haverá quem diga inadvertidamente que o espetáculo é a visão gay de uma parte da história do Rio de Janeiro. Mas, com certeza, haverá também quem se lembre de que, em todos os carnavais do mundo, é comum homens se vestirem de mulheres e mulheres se vestirem de homens, completamente absolvidos pela energia criativa que permite, nos dias que antecedem o início da quaresma, brincar de ser quem quer que seja. Não é à toa, vale lembrar, que “gay” significa “alegre” e que está, no cerne da palavra carnaval, a palavra carne. Tampouco que o Brasil é o país do Carnaval e que o Rio de Janeiro, antes de ser uma cidade ou um estado, é o Brasil que as cinco regiões vêem pela TV diariamente. E é por tudo isso que, em termos de dramaturgia, o segundo ato é profundamente melhor do que o primeiro.
                O roteiro é uma versão adaptada de “Burlesque”, esse também uma versão adaptada de “Cabaret” e de “Moulin Rouge”, ambos, por sua vez, versões adaptadas de diversas outras fontes, e reinventar bem é tão importante quanto inventar. Eis o mote: o Cabaret das Mimosas, casa célebre por seus shows de travestis na Praça Tiradentes, está para fechar suas portas diante de tantas dívidas acumuladas fracasso após fracasso desde que partiu para a Europa a estrela da companhia, a inesquecível Divina Rúbia. Por trás dessa condenação, sabem os personagens e sabe o público que está o interesse financeiro local em demolir o edifício e construir um estacionamento, pondo fim a mais uma parte importante da história da Praça Tiradentes e do teatro carioca. O Professor Lourival (Claudio Tovar), que dá aulas de história na universidade, é o diretor do estabelecimento, interpretando “Lola, a imperatriz” nas horas de show. Para tentar uma última cartada em prol do salvamento do seu negócio, ele resolve montar um espetáculo que conta a história do endereço, trazendo à tona a importância cultural dele para a arte nacional. Tatá ou “Samantha Overbook” (César Augusto), Xuxu ou “Catula de Montecarlo” (Milton Filho), Vânia ou Vanilson ou “Vanilla Cherry (Gustavo Gasparani) e Miguelito ou Miguel (Jonas Hammar) são os artistas que ajudam o diretor na construção desse espetáculo dando opiniões diversas a respeito do seu andamento. Tanto no primeiro ato como no segundo, as cenas de ensaios dos números vão se configurando como os próprios números apresentados, de forma que há, na encenação dirigida por Gustavo Gasparani e Sérgio Modena, perfeito e claro movimento entre os acontecimentos do palco e da coxia diegética. No entanto, observa-se que, no primeiro ato, as cenas didáticas, em que são dadas constantes e desnecessárias explicações a respeito do motivo que move a produção do espetáculo fictício, são longas, pesadas, cansativas e, por vezes, monótonas. O interessante é notar que esses desvalores são justamente o que os personagens reivindicam com Lourival acerca da peça que ajudam a construir: todos querem mais movimento, mais graça, mais vivacidade no roteiro da peça. Assim, ironicamente, Tatá, Xuxu e Vânia pedem a Lourival o que nós pedimos a Gasparani e Rieche: menos blá blá blá e mais ação: em vários momentos, nos primeiros minutos especialmente, o cenário parece grandioso demais, porque o encadeamento das cenas ocorre em ritmo lento. Além disso, os personagens são apresentados e reapresentados e os conflitos internos de cada um deles ganham sequências inteiras, as quais, felizmente, não existem no segundo ato, possibilitando a essa parte uma avaliação substancialmente mais positiva. Após o intervalo, atores e público estão diante de fluídas sequências narrativas, números musicais (canto e dança) exuberantes e cenas cômicas bem brasileiras: o Brasil está definitivamente em cena, tanto na boca como nos corpos dos intérpretes. Tudo isso, claro, com uma longa escadaria iluminada, luzes caindo do teto, figurinos brilhantes e um corpo de baile composto de bailarinos semi-nus exibindo corpos sarados para o delírio visual da plateia.
                Claudio Tovar, Milton Filho e Gustavo Gasparani brilham irredutíveis nos papéis mais vivos da encenação. Seus diálogos são rápidos, suas aparições são marcantes, seus envolvimentos com os demais elementos cênicos são ágeis. Marya Bravo, filha de Zé Rodrix, dá vida para “Divina Rúbia”, aquela que vem salvar o Cabaret das Mimosas. Com uma voz potente e grande carisma, a atriz é responsável por grandes momentos de “As Mimosas”, como “I am what I am” e “Dreamgirls”. César Augusto, porque seu personagem não tem um desenho qualificado da dramaturgia no primeiro ato e está completamente esquecido no segundo, e Jonas Hammar, porque sua interpretação sustenta poucas marcas de ironia, agilidade e verossimilhança, infelizmente, não atingem os mesmos bons resultados que os demais com quem contracenam. O conjunto de bailarinos está excelente, trazendo para o palco as rígidas coreografias das extravaganzas norte-americanas, mantendo, positivamente nas expressões faciais, a brincadeira brasileira que dá caldo para o espetáculo como um todo.
                Cada nova cena é um acontecimento estético em “As Mimosas da Praça Tiradentes”, o que não poderia deixar de ser em se tratando de um grandioso musical (Ufanismos à parte, em nada o Brasil deixa a desejar ao gênero tipicamente americano aqui rebatizado e construído com os nomes de “teatro de revista”, “gênero livre” e “chanchada”, entre outros termos.). Os figurinos de Marcelo Olinto e sua equipe estão impecáveis, como também o cenário de Ronald Teixeira e a iluminação de Paulo César Medeiros. A direção musical de João Callado e de Nando Duarte e as coreografias de Renato Vieira agem tão fortemente articuladas com os demais elementos que é difícil imaginar como, na plateia, alguém não consiga ser fisgado pela estrutura construída no palco. Se cada relação significativa proposta pela obra estética é um argumento em favor da fruição, “As Mimosas da Praça Tiradentes”, ainda que demore meio ato para nos convencer, atinge com galhardia o feito.
                É comum ouvir dizer que os gaúchos são bairristas porque expressam, preferencialmente em forma de humor, a sua admiração pelo Rio Grande do Sul. Na plateia do Teatro Carlos Gomes, tem-se a certeza de que os cariocas são, sem dúvida, tão bairristas quanto os rio-grandenses. A diferença é que, no Rio de Janeiro, amar a cidade significa amar o país e, como todo gaúcho é também brasileiro, descobrir-se duplamente bairrista na audiência de “As Mimosas” é uma feliz conseqüência.


*Texto retirado do programa do espetáculo.   
               
Ficha técnica:

Elenco: Claudio Tovar, Jonas Hammar, César Augusto, Milton Filho, Gustavo Gasparani e Marya Bravo
Boys: Arthur Marques (ensaiador), Paulo Mazzoni, Pedro Arrais, Thadeu Mattos, Thiago Pach e Wallace Ramires
Músicos: Nando Duarte, Itamar Duarte, Pedro Mangia, Carlos César e Dado
Texto: Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche
Direção: Gustavo Gasparani e Sérgio Módena
Direção Musical e Arranjos: João Callado e Nando Duarte
Direção de Movimento e Coreografia: Renato Vieira
Cenário: Ronald Teixeira
Figurino: Marcelo Olinto
Iluminação: Paulo César Medeiros
Visagismo: Beto Carramanhos
“Auxílio Luxuoso”:  Leonardo Netto
Pesquisa musical: Rodrigo Faour, Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche
Preparação Vocal: Maurício Detoni
Projeto de Som: Branco Ferreira
Assistente de Direção: Juliana Medella
Segundo Assistente de Direção: Henrique Lott
Direção de Produção: Alice Cavalcante
Produção de Elenco: Marcela Altberg
Projeto Gráfico: Mary Paz Guillén
Assessoria de Imprensa: Mary Debs
Produção Executiva: Luana Cabral
Produtor Assistente: Renato Oliveira
Adminstrador: Felipe Argollo
Diretor de Palco: Marcos Lesqueves
Operador de Som: Thiago Silva
Operador de Luz: Rodrigo Emanuel
Equipe de Maquinistas e Contra-regras: Beto Almeida, Carlos Elias e Nahin Fernandes
Maquiadores/Peruqueiros: Felipe Espíndola e Raquel Oliveira
Microfonista: André Cavalcanti
Operador de Canhão: Lúcio Bragança e Willian Lima
Idealização e Realização: Gustavo Gasparani

Deus da Carnificina (RJ)

Foto: Fábio Seixo

Sucesso garantido


                Escrito pela francesa Yasmina Reza (1959) em 2006, “Deus da Carnificina” (Le Dieu Du Carnage) acumula, enquanto texto, prêmios de dramaturgia nas principais capitais do mundo (Infelizmente, o Brasil não valoriza como deveria os seus próprios dramaturgos quanto menos os estrangeiros.). As encenações mais conhecidas deste texto, da mesma forma, têm obtido o mesmo resultado positivo felizmente. Não basta, pois, um bom texto, é preciso que haja bons intérpretes e uma competente ficha técnica. O espetáculo dirigido por Emílio de Mello, brilhante ator de “In On It”, cumpre todos esses requisitos e, por isso, coleciona aplausos do público e da crítica especializada mês após mês desde sua estreia, ocorrida no final de 2010. Com Prêmios APTR e Quem de Melhor Atriz (Júlia Lemmertz) e indicações ao Shell de Melhor Direção e de Melhor Ator (Paulo Betti), ao Quem de Melhor Espetáculo de Comédia e ao APTR de Melhor Iluminação e de Melhor Espetáculo, a peça é, antes de tudo, uma homenagem ao trabalho de interpretação: quatro atores conversam no palco, cujo cenário não se modifica, cujo figurino não tem nada de extraordinário e em que a trilha sonora é extremamente secundária, o que, talvez, desde “Quem tem medo de Virgínia Wolf?", de Edward Albee, o teatro não produz com a mesma qualidade.  Vale dizer, no entanto, que, até mesmo, em todos esses últimos aspectos, é possível identificar excelentes resultados.
                Como em Albee, um casal recebe outro em sua casa. Diferente dele, as duplas regulam de idade, embora tudo leve a crer que são de classes sociais diferentes. Como ele, ao longo da conversa, os personagens se revelam, mostrando traços de si até então escondidos, tornando-se, assim, uma excelente metáfora para o homem contemporâneo, cansado manter-se em tantos discursos. Aí vêm as preciosas contribuições de Flávio Graff e de Marcelo Alonso Neves no que diz respeito ao cenário e à trilha sonora. Graff situa os personagens numa sala construída a base de pilhas de livros. Umas em cima das outras, diferentes edições formam colunas, pilares por onde as quatro figuras caminham. Livro é símbolo de erudição, conhecimento e teoria. Exige-se de um homem letrado mais formalidade, polimento, verniz. Espera-se dele que apresente “boas maneiras”, civilidade, comedimento, parcimônia. A trilha sonora inicial age na construção do mesmo universo significativo, o que, a cada passo na evolução da narrativa, vai se tornando cada vez mais uma crítica à cena. Em outras palavras, se, no início, o que se vê é coerente com a situação, no fim, os livros empilhados são, sem dúvida, uma bela risada da superficialidade de nossas crenças enquanto homens da sociedade moderna, na mesma direção, agindo o rap ouvido pelos espectadores na saída do teatro. Vendo imagens de outros cenários em montagens do mesmo texto em diversos lugares no mundo, é possível reconhecer nelas também vários livros espalhados, sorrindo dos personagens na cena final. Aqui, porém, poder-se-ia dizer que eles gargalham, expressão latina que todos conhecemos (e gostamos de). Concepções que norteiam decisões estéticas como essas, incluindo a mesa em Lego, fonte de vários possíveis significados, são exemplos de inteligência, porque são responsáveis pelo estabelecimento de níveis mais profundos de fruição da obra, o que é elogiável.
                Alan e Anette (Paulo Betti e Julia Lemmertz) são pais de Ferdinando, que é colega de Bruno, esse por sua vez filho de Michel e Verônica (Orã Figueiredo e Deborah Evelyn). Os dois garotos têm onze anos e um agrediu o outro de forma que a “vítima” perdeu dois dentes no golpe. O tema do encontro dos pais é, então, esse: resolver questões relativas ao ocorrido de forma civilizada: tratamento, punição, futuro. Como as palavras são apenas modos como os sentidos são expressos, as confusões começam quando os personagens precisam estabelecer entendimentos comuns para dar continuidade às tratativas. Alan é advogado de uma empresa farmacêutica e passa o tempo envolvido em ligações a respeito do caso da iminente retirada de um dos remédios por conta de efeitos colaterais não previstos (e graves). (O mesmo remédio é usado pela mãe de um dos personagens.) Quanto à Anette, sua esposa, pouco sabemos de início, de forma que somos levados a pensar que se trata de uma tímida dona de casa. Do outro lado, Michel é um vendedor de artigos para casa (objetos hidráulicos, maçanetas, etc...) e Verônica, fascinada por livros de arte, está perto de lançar um livro sobre o Conflito de Darfur, oeste do Sudão. Em meio a uma grande metrópole, a disputa por mostrar mais civilidade no trato com as questões pertinentes aos filhos de ambos casais envolve a construção de um discurso que se relaciona com diferentes posições acerca desde a educação dos filhos e de pensamentos sobre arte e política internacional até do relacionamento entre marido e mulher e das visões dos homens sobre as mulheres e de ambos sobre o casamento e a família. Alan e Anette são estranhos para Michel e Verônica, mas, ao longo da encenação, se reconhecem enquanto homens e mulheres, maridos e esposas, pais e mães. As diferenças culturais ora se apagam, ora se aguçam, enquanto, paulatinamente, o comedimento dá lugar, com a ajuda de cucas, cafés, conhaques e charutos, a uma certa selvageria grotesca com direito a vômitos, a corridas ao banheiro e a lírios destroçados. A comédia de Reza, em substituição ao neo-realismo de Albee, se constrói na precisão dos diálogos, eficientemente ritmados por Emílio de Mello e por seu elenco valoroso, no qual não há quem se destaque em detrimento dos outros, porque todos apresentam resultados excelentes. O tom cortante de Evelyn e a voz alta de Figueiredo são marcas visíveis dos personagens que interpretam, bem como a relutância de Lemmertz e o olhar irônico de Betti, apenas detalhes de construções visivelmente ricas, todas elas pontualmente marcadas pelos figurinos de Marília Carneiro.
                A forma como a encenação estabelece a tensão e apaga as marcas de evolução dos quadros de jeito que seja difícil saber como uma conversa simples evoluiu ao caos é o mais claro sinal de que “Deus da Carnificina” é entretenimento de altíssima qualidade. O público se envolve com a trama de forma desconfiada, mas acaba por se encontrar complemente conquistado pela obra, descobrindo-se, talvez, dentro dela. Sucesso garantido!

*

Ficha técnica:

Elenco: Deborah Evelyn, Julia Lemmertz, Orã Figueiredo e Paulo Betti
Texto: Yasmina Reza
Direção: Emílio de Mello
Tradução: Eloisa Ribeiro
Cenografia: Flavio Graff
Iluminação: Renato Machado
Figurinos: Marília Carneiro
Música original e Projeto de Som: Marcelo Alonso Neves
Relações Públicas: Liège Monteiro
Assessoria de Imprensa: Liège Monteiro e Luiz Fernando Coutinho
Projeto Gráfico: Olívia Ferreira e Pedro Garavaglia / Radiográfico
Assistente de direção: Raquel Karro e Leonardo Carvalho
Técnica de Alexander: Valéria Campos
Assistente de figurinos: Paula Carneiro
Assistente de cenografia: Markoz Vieira
Cenotécnico: Humberto Silva, Humberto Júnior e Equipe
Equipe Montagem de Luz: João Neves e Rodrigo Mello
Contra-regra: Luiz Alberto Monteiro
Camareira: Sonia Crioula
Operador de Luz e de Som: João Neves
Administração do Espetáculo: Marcell Barboza
Assistentes de produção: Lúcia Maria da Silva Ferreira e Andrea Aquino
Visagismo: Lindalva Veronês
Efeitos Especiais: Federico Farfan
Uma produção de Cinthya Graber e Nacho Laviaguerre

domingo, 22 de janeiro de 2012

Criados em Cativeiro (RJ)

Foto: divulgação

Alcemar Vieira

                Escrito em 1995, “Criados em Cativeiro” (Raised in Captivity) é considerado o segundo melhor texto do americano Nicky Silver, só perdendo para “Pterodáctilos”. No Rio de Janeiro, a produção a partir do mesmo autor de “Os Altruístas”, também em cartaz, desempenha um importante papel: mostrar que um bom texto não é garantia de um bom espetáculo cênico (e vice-versa). Dirigido por Jefferson Miranda, o espetáculo em cartaz no Teatro Oi Futuro reúne em si uma série de problemas, a maioria deles vinculados a questões referentes à direção: uma concepção cenográfica histriônica e atrapalhada, uma trilha sonora dispersante e, o mais importante, trabalhos de interpretação que, nem de longe, fazem ver os méritos do texto do grande autor do humor negro. Mas há exceções felizmente e elas têm nome: Valéria Stefani, Alcemar Vieira e Alonso Zerbinato.
                Não é só porque uma das personagens fura os próprios olhos que, nesse texto, Silver chega mais próximo do gênero trágico como poucas vezes além (Em “Fat Man in Skirts”, há outros flertes do autor nesse sentido). “Criados em cativeiro” é sobre culpa, sobre perdas, sobre arrependimentos e autopunições. Na tragédia, os personagens são vítimas de uma situação que independe de suas ações, embora elas possam trazer-lhes, conforme o destino de cada um, benesses ou terríveis castigos. Jasão foi punido porque se casou com uma bárbara, Antígona foi punida porque enterrou o seu irmão, Édipo foi punido porque nasceu, Agamenon foi punido porque matou um animal de Artemisa, etc. Aqui, no texto contemporâneo, também há punições: Frederico (Sebastian no original) e Bernadette são irmãos gêmeos e, conforme a explicação do fantasma de sua mãe, nasceram a partir de um estupro. A primeira cena acontece no enterro da mãe, que morreu no box do banheiro quando o chuveiro se desprendeu e atingiu a sua cabeça, quando Frederico e Bernadette, depois de anos sem se ver, se encontram. Ela vive assombrada pela sensação de obesidade e ele convive com a solidão que já se estende por onze anos desde que viu o seu namorado falecer vítima da AIDS. Cada novo dia na vida dos gêmeos é mais um dia de castigo e de trágica punição, temas que também estão presentes na construção das demais figuras da dramaturgia: Kip, marido de Bernadette, é um dentista (profissional que trabalha em favor de dentes brancos) que desiste da profissão para pintar quadros (e apenas usa em suas telas tinta branca); Angeli (Hillary no original), terapeuta de Frederico, é abandonada por todos os pacientes, incluindo Frederico, sentindo-se bastante sozinha; Marlon (Dylan) é um assassino que está preso na penitenciária com quem Frederico se corresponde com cada vez mais freqüência. O cativeiro desses personagens consiste, assim, nos seus destinos aprisionantes, estes traçados como que antes de nascerem e contra os quais não se revoltam, embora, talvez, tenham “liberdades condicionais” por conta de seus bons comportamentos: uma criança nasce, um casal se forma, alguém é libertado. Aqui, como em todos os textos de Silver, o ritmo rápido do diálogo bem construído é ponto de partida para a comédia. Como sempre se chama a atenção em análises de textos desse autor, ri-se a valer em suas plateias, saindo, ao final da apresentação, com um gosto amargo na boca. Mas, para o teatro conquistar força similar à literatura, é preciso que a peça seja tão bem escrita como é o texto, o que, infelizmente, não é o caso.
              Christiana Guinle (Bernadette), Márcio Vito (Kip) e Deise Manttuano (Angeli) apresentam construções constrangedoramente ruins. Bastante longe do ritmo da comédia, suas entonações são monótonas, a retórica é fraca, as intenções são frágeis. Protagonistas de cenas longas, os três atores não apresentam um trabalho corporal rígido, fazendo com que, pela ausência de partituras, seja possível pensar que estamos diante de um melodrama ou uma comédia de costumes, o que não é o caso. O cenário de Cristina Novaes, nesse contexto, só ajuda a complicar. O palco transformado em labirinto de escadas, sem propriamente alguma relação visível com Escher, e com degraus coloridos no primeiro ato, sem propriamente alguma relação visível com Mondrian, mostra-se como um difícil obstáculo para os sapatos altos das atrizes, para o jogo de bola (sem bola) de Alonso Zerbinato, para o elenco, de forma geral, que precisa subir e descer toda vez que tem que se movimentar. Com o mesmo resultado negativo, a trilha sonora de Felipe Storino oferece à obra algo que parece ser um relaxante lounge, bastante inconveniente para o tenso diálogo. De forma que, ao invés de haver uma direção, cuja elementar importância é justamente dar liga para as diversas relações sígnicas possíveis pelos diversos signos oriundos todos eles de diferentes sistemas primeiros (não existem signos teatrais, mas signos tornados teatrais), há, aqui, uma dispersão, o que seria bastante positivo se estivéssemos diante de uma obra de teatro pós-dramático (Lehmann), o que não é o caso. Para não dizer que não falei de flores, o final do primeiro ato, com “Sweet Dreams”, é uma acertada, porque rica, opção do diretor.
                Salvos estão os figurinos de Valéria Stefani, pontuais, sóbrios, ilustrativos e contributivos, e as participações de Alonso Zerbinato, que interpreta Marlon e Roger, e de Alcemar Vieira, que dá vida a Frederico. Zerbinato, o ator mais inexperiente do grupo, atinge resultados bastante relevantes nessa produção porque dá a ver marcas que permitem chegar a essa conclusão: concentrado, o ator não constrói suas aparições com movimentos exagerados, mas priva pela discrição, puxando o foco para os detalhes. Disso, é possível reconhecer traços de verossimilhança (verdade) em seu discurso tanto verbal como corporal – o modo como mexe com as mãos e os pés nas cenas do presidiário Marlon e o jeito como mobiliza sensualmente o corpo na contracena com Vieira nas cenas do michê Roger. Por se movimentar bem menos do que os demais, suas aparições não são prejudicadas pelo cenário, mas o desafio dos monólogos é vencido com êxito. Alcemar Vieira é o grande momento da produção, porque seu trabalho de interpretação apresenta-se como, sem reservas, comparável ao preciosismo de Gene Wilder. Vieira faz comédia com os olhos e com as pausas, talvez certo de que o texto é suficiente forte. Suas aparições, as melhores de toda a encenação, fazem rir e permitem que o texto, assim, chegue a sua plenitude: há ironia em seu olhar bem como no desenho de seu gestual, o texto é dito de forma impecável e sua pesada movimentação permite fazer relação com a timidez de seu personagem ou simplesmente sua apatia diante do mundo.
                Da mesma forma que a peça em relação ao texto, na análise de um espetáculo em sucessão a de outro, um mau desempenho agora não é garantia do mesmo insucesso no futuro (e vice-versa). Prova disso são as análises das participações de Alcemar Vieira em “Histórias de Amor Líquido” e “Medida por Medida”, tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão concretamente vivas como só o teatro pode oferecer, causando, quem sabe, certa inveja na literatura.

*

Ficha Técnica:

Texto: Nicky Silver
Tradução: Cláudia S. Cruz
Direção: Jefferson Miranda
Elenco: Christiana Guinle, Alcemar Vieira, Marcio Vito, Deise Manttuano e Alonso Zerbinato
Cenário: Cristina Novaes
Iluminação: Tomás Ribas
Trilha Sonora: Felipe Storino
Figurino: Valéria Stefani
Projeto Gráfico: Fábio Arruda e Rodrigo Bleque – Cubículo
Fotos: Daniela Dacorso
Direção de Produção: Faliny Barros e Francisco Accioly
Produção Executiva: Tereza Durante
Vídeo- projeções: Eduardo Morotó, Renan Brandão e Marcelo Santiago
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Preparação Vocal: Ana Frota
Preparação Corporal: Toni Rodrigues
Preparação para canto: Célio Rentroya
Assistente de direção: Júlia Lund
Direção de Cena: Marco Bay
Operação de Som: Fábio Storino
Operação de Luz: Leopoldo Victor
Projeção: Lucas Canavarro
Cenotecnia: Flávio Roza – Camuflagem Produções
Realização: Expansão 2 – Produções Artísticas

sábado, 21 de janeiro de 2012

A propósito de Senhorita Júlia (RJ)

Foto: divulgação

Sem justificativas

                Dostoiévski está para Machado de Assis assim como Strindberg está para Plínio Marcos. E nem Patrick Marber (autor de “Closer”), nem José Almino são Plínio Marcos infelizmente. “A propósito de Senhorita Júlia, versão (não apenas tradução) de Almino para “After Miss Julie”, de Marber, é apenas uma vaga, mas aproveitadora lembrança de “Senhorita Júlia”, escrita em 1888 por Auguste Strindberg (1849-1912) porque, tanto uma como a outra, se utilizam dos nomes dos personagens, de suas posições actanciais na narrativa e de boa parte dos diálogos, mas constroem um espetáculo cujos ganchos dramáticos são completamente diferentes. Expoente do Realismo Naturalismo na Europa, como Plínio Marcos é no Brasil, Strindberg, também autor de “Os Credores”, cria uma situação em que os personagens estão suscetíveis às emoções e incapacitados de utilizar a razão. É noite de São João, uma festa que “sobreviveu aos tempos pagãos”, como diz no texto. O álcool, o cansaço do dia de trabalho, a música, a comida, o calor, o sexo são os elementos que pairam sobre os corpos que conversam, se excitam, se aguçam, se provocam e se satisfazem. Julia é filha do dono da casa, Jean é o emprego e Kristin é a cozinheira, sendo esses últimos, noivos um do outro. O poder passa de mão em mão: o dinheiro, a beleza, a sensualidade e as expectativas são o que importa nessa madrugada cujos participantes não podem ser julgados como mocinhos ou vilões, culpados ou vítimas, responsáveis ou cúmplices porque são apenas animais ainda despertos pelos próprios extintos. Quando, lá pelas tantas, na plateia do espetáculo dirigido por Walter Lima Jr., ficamos com pena de Cristiane (Dani Ornellas), na cena em que ela descobre que Moacir (Armando Babaioff) e Júlia (Alessandra Negrini) estão na cama dele, confirmamos que estamos muito distantes de Strindberg e, talvez, mais próximos de Pinter, mas inevitavelmente, numa adaptação com vários problemas.
                Em cena, o jogo não acontece por um problema básico: a bola tem dono, isto é, do início ao fim, é Babaioff, felizmente o personagem dele, quem domina a situação. Embora haja alguns momentos em que, em seu trabalho de interpretação, o ator parta pra cima de Negrini com marcas de excitação (rapidez, força, respiração galopante), a situação está tão fortemente construída de forma a dar a ele o privilégio da cena, que não é possível acreditar que Moacir está mesmo se deixando levar por Júlia. Quando ele a agarra, temos a impressão de que é premeditado e a falha é da direção que não equilibrou o jogo cênico de forma inteligente. Moacir, o chofer do pai de Júlia, um deputado, não ama nem Cristiane, a cozinheira evangélica, sua noiva, nem Júlia, com quem crescera na mesma casa ainda que em alas opostas, ela na entrada social e ele na de serviço. Ele ama a si mesmo em sua ambição, em sua vontade de ser alguém. E é também nisso que está um dos grandes bons valores que Babaioff traz para essa produção.
                Armando Babaioff, que recentemente esteve na produção “Na solidão dos campos de algodão”, texto de Bernard-Marie Koltès e direção de Caco Ciocler, apesar de aqui mal dirigido, é o que consegue os melhores resultados em cena. Sua presença é forte e sua retórica tem marcas de determinação (ritmo não linear, pausas pontuais, olhares assertivos. Além disso, o ator dá a ver uma construção cuja humanidade consegue ultrapassar a ambição e (está no aspecto humano a base amoral para a selvageria strindberguiana) alcançar, assim, um terreno confortável para se estabelecer na narrativa. Em outras palavras, em alguns momentos, conseguimos entender Moacir como, sim, um homem sem escrúpulos, mas, ao mesmo tempo, o salvamos da penitência diante da vida sofrida que o personagem levou até ali. Condenação e posterior absolvição resultam na amoralidade, mais forte instrumento do drama realista naturalista. Os erros da direção se mostram na dificuldade do ator de parar quieto no palco. Faltam silêncios no trabalho de Babaioff que fala com as mãos, com os pés, com o corpo e com o discurso verbal de Strindberg/Marber/Almino, o que colabora para um ritmo frenético e pouco orgânico da encenação de Walter Lima Jr.
                Alessandra Negrini não tem um único momento interessante em “A propósito de Senhorita Júlia”. Sem nenhum carisma (olhares vazios e tom de voz quase monocorde) e quase nada de sensualidade (não se vêem diagonais no seu trabalho de movimentação, suas expressões carecem de ironia e seu discurso não viabiliza segundos sentidos que seriam valiosos para a trama). Com 41 anos, faltam marcas de verossimilhança na interpretação da personagem quase vinte anos mais nova: sua Júlia não é vítima da noite e da bebida que aguçou os sentidos e, por isso, deveria estar agora em meio a uma situação sem valores totalmente dispersa pelo prazer dos sentidos. A Júlia de Negrini quer vingar-se da própria vida – seus pais não planejaram seu nascimento, sua mãe a ensinou comportar-se como um menino, seu noivo acabou de abandoná-la e seu dinheiro faz com que os homens tenham medo dela e não se aproximem desarmados. O que deveria ser apenas grades que justificariam seu aprisionamento na situação dramática, serve negativamente, nessa concepção de interpretação, como justificativas stanislavskianas para as ações da personagem (Stanislavski atende ao Realismo Psicológico de Dostoiévski, de Ibsen e de Machado de Assis. Não há lógica em Strindberg, Plínio Marcos, Aloísio Azevedo e Zolá.)
                Dani Ornellas, que interpreta a ótima Cristiane, um dos grandes personagens da literatura dramática universal, sofre na concepção que 1) faz com que sua personagem veja que está sendo traída e saia de cena em prantos; 2) tenha nojo de Júlia, reagindo a ela após julgar (moralmente) seu comportamento; e 3) fique com o dinheiro do pai de Júlia, mesmo que seja possível pensar que ela irá devolvê-lo a seu dono. Entre outros, as novidades trazidas ao texto original, se por Marber, se por Almino, se por Walter Lima Jr., fazem diminuir as nuances de Kristin, que não tem ciúmes de Jean com Julie, mas possivelmente vê nisso uma possibilidade de lucro (novamente: condenação mais absolvição é igual amoralidade). A atriz oferece bom desempenho em cena: está comedida, discreta, mas também forte. Sua dicção é boa, seus movimentos são claros, suas intenções são acessíveis e, sem dúvida, exibe muito mais sensualidade do que Negrini.
                Nos aspectos técnicos, o cenário de José Dias está esplêndido. A cozinha em perspectiva, com o ponto de fuga renascentista na estrutura em madeira, faz aumentar a sensação de humanidade (que deveria haver na construção de todos os personagens), apesar dos copos e taças de plástico que agridem a produção realista. O fundo finito, uma liberdade poética, oferece beleza sem prejudicar. Quanto aos figurinos de Angèle Fróes, deve-se dizer que são pontuais no caso de Moacir e de Cristiane, mas problemáticos no caso de Júlia, que parece mais velha e ainda menos sensual (principalmente, a última roupa.). A trilha sonora de Walter Lima Jr. e de Paulo Mendes e a iluminação de Daniel Galván estão adequadas.
                Em arte, não há jeito certo ou jeito errado de produzir uma obra, mesmo quando essa obra é uma releitura de uma anterior a ela. O caso é que, diferente da linguagem verbal, não há gramática na arte, embora haja morfologia e sintaxe. Assim, tudo o que vemos em cena é signo, signos que fazem relação com outros signos e neles encontram justificativas para a sua existência. Quando as justificativas são escassas, o resultado tende a ser negativo. Como aqui é o caso, apesar das pontuais e bem-vindas exceções.


*

Ficha técnica:

Texto: (no programa estranhamente consta) August Strindberg
Direção: Walter Lima Jr.
Adaptação: José Almino e Walter Lima Jr.
Elenco: Alessandra Negrini, Armando Babaioff e Dani Ornellas
Direção de produção: Gustavo Nunes
Cenografia: José Dias
Figurinos: Angèle Fróes
Iluminação: Daniel Galván
Trilha Sonora: Walter Lima Jr.
Sonoplastia: Paulo Mendes
Direção de movimento: Ana Bevilaqua
Assistente de direção: Isabel Guéron
Assessoria de Imprensa: Alan Dinize Sidimir Sanchez – Uns Comunicação
Design Gráfico: Bigodes – Bárbara Emanuel e Luiz Henrique Sá
Cenotécnico: Paulo Fernandes – Serpa Fernandes Cenografia, Artes e Eventos
Assistente de Cenografia: André Sanches
Assistente de Figurino: Fernanda Theophilo
Equipe de Montagem de Luz: Cristiano Cassio, Marquinhos Braga, Luiz Sartomen e Valéria Gonçalves
Diretor de Cena: Felipe Avila
Contra-regra: Otávio Barbosa e Sandro Souza
Operador de Luz: Luiz Sartomen
Operador de Som: Gutto Dutra
Camareira: Vanessa Silva
Produção: Turbilhão de Ideias Cultura e Entretenimento

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Chagall (RJ)

Foto: divulgação

Cor e história

                Muito bem escrito por Eduardo Rieche, “Chagall - O poeta com asas de pintor” é um espetáculo musical infantil que, entre muitos méritos, está a sua proposta concretizada de homenagear o pintor Mark Chagall, contando parte de sua vida. Em termos de sua espetacularidade cênica, a mobilização dos signos visuais e o enlaçamento deles com as possibilidades cênicas produz uma obra de grande valor que encanta as crianças e diverte também o público adulto.
                O maior acerto de Rieche (também autor do elogiado “Oui, oui – A França é aqui”) está no recorte. Mark Chagall (1887-1985) viveu 97 anos. Uma vida centenária oferece a um pesquisador de sua obra muitas possibilidades e optar por umas, muitas vezes, significa abdicar de outras. A escolha aqui foi providenciar um olhar do teatro por sobre o pintor. Redonda e, por isso, adequada pela segurança que a opção propicia, a narrativa começa com personagens de pinturas de Chagall, conversando a respeito do seu criador, e também terminará com eles, agradecendo por tê-los dado vida em suas cores. Assim, o espectador tem possibilidades de saber quem está olhando para o artista que viveu além da sua representação agora teatral e encontra nessa informação campo propício para fazer as relações de que, nós, os adultos, precisamos para analisar a obra como um todo. Os personagens são leves, ágeis e sua superficialidade é bastante positiva porque permite rápidas identificações: o pai é pai, a mãe é mãe, os colegas de escola são os colegas de escola. Mark Chagall nasce Moyshe Segal numa cidade da Bielorrússia chamada Vitebsk (A Bielorrússia é um país independente do leste europeu, cuja capital é Minsk. Ao contrário do que se pensa, ela nunca pertenceu à Rússia, embora tenha sido parte da União Soviética entre 1939 e 1990.), essa dominada em parte pelo povo judeu. A família do futuro pintor era pobre e o conflito inicial é alimentar o talento artístico do menino gago versus a necessidade de trabalhar diariamente para garantir o próprio sustento numa família de gente bastante simples. A evolução da narrativa segue o rumo tradicional sem medo de errar: os obstáculos vão sendo vencidos até que, depois de ir e voltar de Paris, o jovem pintor se encontra com o teatro e com a fama enquanto artista plástico.
                Dirigidos por João Batista, o elenco está bastante coeso, de forma que não há grandes destaques nem positivos, nem negativos. Certamente que as figuras do protagonista (João Velho) e de sua mãe (Sônia Praça) chamam a atenção pelas forças de seus personagens em relação ao enredo, mas há que se fazer justiça ao dizer que, visualmente também o Bode (Sérgio Kauffmann) e Bella (Cristina Lago), sua namorada, são bastante fortes pelas relações que ambos mantém com os quadros parcialmente expostos em cena. Em todos os intérpretes, a dicção é perfeita e os movimentos são ágeis e claros de forma que, nesse quesito, nada deixa a desejar.
                Os figurinos de Mauro Leite e a pontualidade da iluminação de Renato Machado são elementos cuja beleza é impar. Além de evidenciar a importância da cor para a obra de Chagall, embelezam, enaltecem e são úteis à narrativa, propiciando momentos de deleite ao público de todas idades. As músicas, a criação musical é de Marcelo Alonso Neves, tantas vezes já elogiado por seus trabalhos (“Amor Confesso”, “Emilinha & Marlene”, “As Conchambranças de Quaderna”, ...) são vibrantes, bem interpretadas e coerentes com a proposta estética, vinculando o pintor à sua origem eslava, essa, também, tema de muitas das obras do referido artista. Nos elementos estéticos, as projeções bem postas garantem o lugar da obra original na obra simbólica, estabelecendo a ponte entre o Chagall personagem e o Chagall artista, cujos quadros existem e merecem apreciação. O único porém é o cenário de Dóris Rollemberg que, sem justificativas, posicionou um trilho circular no centro no palco que atrapalha o movimento dos atores (no público, fica a sensação de que, a qualquer momento, alguém vai tropeçar no maquinário), é pouquíssimas vezes mal usado e faz apenas distante relação com o painel também circular na rotunda, em que são feitas as projeções, de forma que não favorece a produção.
                Carece a direção de Batista de cenas mais ilustrativas que equilibrem a narrativa cênica,deixando os momentos finais tão bons como o início do espetáculo. Em teatro, ilustrar é redundar e o público infantil poderia se sentir mais agradecido por isso, uma vez que, por motivos óbvios, relações temporais (troca de séculos, primeira guerra mundial, revolução russa,...), geográficas (sai de Vitebsk e vai pra Paris e, em algum momento, para a Alemanha) e da ordem dos valores capitais (ser convidado para uma exposição em Berlim é sinônimo de sucesso profissional) lhes faltem. “Chagall” se torna um espetáculo mais difícil no final do que mostrou ser no início, prevalecendo felizmente, cenas marcantes como a pintura do quadro de Bella, o casamento (em que há uma noiva de véu branco) e a supervisão do oficial socialista (um homem de uniforme marchando). Felizmente, o final enternecedor acontece, garantindo os merecidos aplausos ao sucesso do pintor de Vitebsk, por ter vencido as dificuldades que a vida narrada lhe impôs, mas também ao grupo Ciadramáticadecomédia, pelos méritos de seu empreendimento.
                Patrocinado pelo Banco do Brasil, o espetáculo prova que teatro infantil de qualidade tem o lugar especial no Rio de Janeiro, mas a plateia lotada prova que o público sabe disso e o valoriza.

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Ficha técnica:

Patrocinador: Banco do Brasil
Realizador: Centro Cultural Banco do Brasil
Encenação: Ciadramáticadecomédia
Texto e pesquisa musical: Eduardo Rieche
Direção: João Batista
Elenco: João Velho,Cleiton Rasga, Cristina Lago, Eduardo Rieche, Sérgio Kauffmann e Sônia Praça
Cenografia: Doris Rollemberg
Figurinos: Mauro Leite
Iluminação: Renato Machado
Criação Musical: Marcelo Alonso Neves
Preparação Vocal: Paula Leal
Direção de Movimento: Márcia Rubin
Assistente de Direção e Preparação Corporal: Dani Cavanellas
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Design Gráfico: Letícia Rumjanek e Diogo Cadaval
Ilustrações: Letícia Rumjanek
Fotografia: Dalton Valério
Produção Executiva: Valério Lima
Argumento, Idealização e Coordenação de Projeto: Doris Rollemberg
Adminstração, Coordenação de Produção e Prestação de Contas: Verônica Prates
Produção: Quintal Rio Produções Artísticas e Ciadramáticadecomédia
Cenotécnica: Moisés Cupertino
Equipe de Montagem de Luz: João Gioia, Rodrigo Bastos, Felipe Medeiros e Giba Oliveira
Operador de Luz: Felipe Medeiros
Maquinista: Renato Silva
Operador de Som: Diogo Camargos
Camareira: Lia Moreira

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Disney Killer (RJ)

Foto: divulgação

Estranho, difícil e complicado

                “Disney Killer” estreia no Rio de Janeiro, colecionando pontos de vista, tanto aqui como em São Paulo, de onde a peça vem, bastante controversos. Embora haja quem elogie efusivamente (e Bárbara Heliodora é um exemplo), adjetivos como “difícil”, “complicado” ou “diferente” são os que mais facilmente se encontram em textos publicados sobre a montagem dirigida e interpretada por Darson Ribeiro, a partir de texto traduzido também por ele. O original, “The Pitchfork Disney” (pitchfork significa tridente, ancinho) foi escrito e lançado em 1991 pelo britânico Philip Ridley (1964), artista de muitas facetas: romancista, dramaturgo, roteirista e fotógrafo principalmente. No caso desse texto, o primeiro que ele escreveu e um de seus mais famosos, o preciosismo está na construção expressionista de uma situação dramática contemporânea. E, justamente por não ter trazido essa concepção da versão literária para a tradução cênica é que a montagem em cartaz no Teatro Sérgio Porto mantém escondidos e de difícil acesso os seus reais valores.

No teatro expressionista, o público vê (teatro significa “lugar de onde se vê) a partir da lente “torta” do protagonista que, antes de mais nada, vê-se a si próprio. Sua visão é distorcida porque sofre grande influência das emoções, essas um misto de frustrações e desejos, esperanças e melancolias. O personagem Presley Stray, o centro da narrativa, é o irmão gêmeo de Haley. Ambos têm 28 anos e vivem sozinhos em uma casa em Londres, dez anos após o desaparecimento dos pais (Não se sabe se morreram, se um dia existiram, como deixaram de estar junto dos filhos, assim como não se têm certeza alguma sobre datas ou demais resquícios de relação temporal). O desfoque está no fato de que tanto ele, como sua irmã, se comportam como crianças, embora tenham a visível sensualidade de adultos; a casa parece grande e solitária, embora esteja em Londres; o mundo parece destruído, embora nada disso, de fato, tenha acontecido. Os diálogos são longos e cheios de imagens (confusas) advindas de pesadelos que retornam constantemente. Há chocolates e remédios para dormir, baratas pelos cantos, medo. A situação é movediça, escorregadia, ardilosa. Ridley parte de um contexto aparentemente bastante doentio, colocando-o em choque com um outro aparentemente bastante sadio. É quando Presley, seduzido pela imagem que vê pela janela, traz para dentro um homem que estava passando mal em frente a sua casa. O homem tem um brilhante casaco vermelho e vem do show biz. Cosmo Disney ganha a vida, junto com seu sócio Pitchfork Cavalier, entre outras coisas, comendo baratas vivas. O que vemos desses dois outros personagens também está desfocado: homofobia, força, beleza são elementos deformados mais para menos ou mais para mais. Saúde e doença se confundem, bem como adultez e infância, verdade e mentira: em que mundo, afinal, podemos acreditar? Em sua montagem, Darson Ribeiro erra por não desfocar. E seu erro, na verdade, uma decisão estética, oferece menos possibilidades de relações do que poderia, dificultando os sentidos de acontecer plenamente.

Em “Disney Killer”, as interpretações são realistas (ou seja, não desfocadas), assim como cenário e figurinos, embora, numa análise desses últimos elementos, seja possível encontrar outras felizes referências. Ribeiro (Presley) e Samantha Dalsoglio (Haley) mantém uma retórica que beira ao choro infantil, chegando, em alguns momentos, ao melodrama entediante, porque não cômico. Felipe Folgosi (Cosmo), porque seu personagem dá movimento para o texto de Ridley, oferece menos tédio, usufruindo de mais possibilidades que lhe favorecem: os gestos pontuais, a dicção perfeita, a movimentação segura. Alexandre Tigano (Pitchfork), em sua minúscula participação, oferece movimentos bruscos e desajeitados que, fosse a concepção da montagem mais próxima do expressionismo, seriam bastante positivos se não estivessem sufocados por construções que, infelizmente, tanto tentam estar próximas do real além da narrativa. O resultado do trabalho de interpretação é confuso, estranho e, aí sim, difícil e complicado. O texto escrito não lhes cabe nem na boca, nem no corpo, resultando uma experiência fruitiva bastante controversa.

Claudio Hanczyc se aproxima do realismo quando constrói uma casa com geladeira, mesa e sofás, xícara com pires, armário com gavetas, tapete e poltronas confortáveis, mas acerta, rebelde à concepção equivocada, nas cortinas sem janelas. Os figurinos de Cássio Brasil são realistas quando vemos ternos bem costurados e limpos, mas fazem sentido quando encontramos pijamas muito mais longos que as estaturas de Presley e Haley. A trilha sonora de Dráuzio é explicativa, estando a última canção o seu pior momento. Assinada por Guilherme Bonfanti, a iluminação ilumina o que tem que iluminar, negativamente comportada.

O mundo absurdo porque incompreensível proposto por Ridley é apenas palavra nas bocas dirigidas por Darson Ribeiro, sem encontrar nos corpos e nas cenas correspondentes a teatralidade que ela espera. Aqui Ridley é retórica e, por isso, permanece sendo grande literatura, enquanto o teatro é “estranho, difícil e complicado”.

*

Ficha técnica:

Texto: Philip Ridley
Direção Geral e Tradução: Darson Ribeiro
Elenco: Darson Ribeiro, Samantha Dalsoglio, Alexandre Tigano e Felipe Folgosi
Cenografia: Claudio Hanczyc
Iluminação: Guilherme Bonfanti
Figurinos: Cássio Brasil
Trilha: Dráuzio
Preparação Corporal Gustavo Torres
Programação Visual: André Moia
Fotografia: Lufe Gomes
Acompanhamento Psicanalítico: Márlio Vilela Nunes
Preparação de Atores: Mirtes Mesquita

Emilinha & Marlene (RJ)

Foto: divulgação

História de parte da nossa música

                “Emilinha & Marlene – As rainhas do rádio” é uma comédia musical cuja elementar importância está no resgate da história de duas das maiores cantoras brasileiras da história: Emilinha Borba e Marlene. Em três horas de duração, a plateia tem o privilégio de acompanhar a narrativa da vida dessas duas grandes artistas enquanto conhece (ou reconhece) um olhar por sobre a história da música nacional em boa parte do século XX. Em cena, Stella Maria Rodrigues (substituindo Vanessa Gerbelli, como Emilinha) e Solange Badim (como Marlene) dão vida às cantoras e, através delas, propiciam a construção de um universo significativo que é rico porque potente: a fama, o dinheiro, a arte de cantar, começando na era de ouro do rádio e terminando nos anos contemporâneos. Com vários méritos, a produção tem Direção Geral de Antônio de Bonis e Direção Musical de Marcelo Alonso Neves, ambos trabalhos elogiáveis em vários aspectos.
                Duas irmãs, Bia (Angela Rebello) e Gegê (Andrea Dantas), guardam velhas roupas e fotografias em malas de viagem, despedindo-se da velha casa de sua mãe, recém falecida, no cenário funcional e qualificado de Sérgio Marimba, que localiza a orquestra acima, aproximando as cantoras e o elenco do público. Cada uma das irmãs é fã de uma das cantoras-título e isso é causa de uma briga que começou na época de suas adolescências e prossegue até hoje. Essas personagens, que conhecem a fundo as vidas de Emilinha e de Marlene, são o fio condutor da história que começa em 1949. As interpretações de Rebello e Dantas são delicadas, atendendo à função que executam no roteiro de forma adequada e positiva. Elas dão força ao hábito saudável de ter ídolos artísticos e são representantes de fãs que, além da narrativa, tanto Emilinha como Marlene acumularam e mantém nos diversos cantos do país ao longo das últimas sete décadas. Cristiano Gualda, Luiz Nicolau e Ettore Zuim se alternam nos muitos personagens masculinos, enquanto Cilene Guedes e Mona Vilardo,  que também assina a Preparação Vocal do elenco, nos personagens femininos, compondo o elenco de apoio. Apesar de haver um surpreendente destaque positivo para a interpretação de Bibi Ferreira por Guedes,  não há problemas na apresentação desses personagens, cujas construções são positivamente surperficiais, atendendo à ordem das ilustrações e, por isso, contribuindo por proporcionar rápidas e efetivas identificações, dando velocidade ao desenvolvimento da história. Se há um aspecto negativo nesse quesito, é o sotaque gaúcho, esse mais caricato do que realmente ilustrativo.
                Solange Badin e Stella Maria Rodrigues cantam de forma a valorizar as músicas, suas interpretações propiciam situações cômicas e dramáticas que divertem e emocionam o público dando vida não apenas à Marlene e à Emilinha, mas à Victoria Bonaiutti De Martino (1922) e à Emília Savana da Silva Borba (1921-2005), no âmbito de suas emoções, suas relações familiares e seus sonhos. O único problema da produção que elas protagonizam é o desenho da dramaturgia, essa assinada por Thereza Falcão e Júlio Fischer.
                Esquecendo Emilinha e Marlene que, de fato, existiram e existem além da narrativa, e focando nossa atenção pelas figuras representadas na produção cênica, o texto se concentra na equanimidade existente entre as duas cantoras. Para não haver desequilíbrio, as intenções, então, agem no sentido de fazer com que ambas as personagens tenham o mesmo peso, de forma que, durante todo o tempo da apresentação, uma suceda a outra e o final seja um empate cujo vencedor maior é o público do teatro e da música brasileira. Infelizmente, não é isso que acontece e, como dito no parágrafo acima, as marcas disso são facilmente encontradas na dramaturgia uma vez que Badim e Rodrigues cantam e interpretam igualmente muito bem, os figurinos de Rosa Magalhães são destacáveis positivamente como um dos maiores valores estéticos do espetáculo em seu conjunto e o repertório escolhido por Neves, tão valorosamente interpretado pelos músicos, é acertadíssimo porque é, em cada um de seus números, representante de uma época que não pode ser esquecida em nenhum dos seus diferenciais. Onde, no roteiro, está o desnível?
                Emilinha e Marlene, as personagens, só são realmente opostas no contexto da Rádio Nacional, parte que dramaturgicamente é compreendida apenas no primeiro ato do espetáculo. Emilinha era a favorita do público quando apareceu Marlene. Uma delas ganha o concurso de Rainha do Rádio em um ano e a outra virá a vencer o mesmo prêmio algum tempo depois. Antes disso, informação que consta no vídeo promocional e no programa, mas não está, infelizmente em cena, uma foi eleita como a favorita da Marinha e a outra da Aeronáutica, apimentando a disputa. Nesse contexto, há a vibrante dúvida que impulsiona a narrativa para frente (e para o ápice, movimento tão caro ao gênero comédia musical): quem é a maior? Emilinha ou Marlene? Ao invés da exploração máxima desse contexto, os roteiristas optaram por ir adiante na biografia das artistas. Mas, embora o duelo permaneça no imaginário dos fãs, além desse contexto, na prática, ele não mais acontece. Marlene segue se reinventando, vai a Paris e canta com Edith Piaf, grava Bossa Nova, é censurada pela Ditadura Militar e chega aos anos 80 como uma das maiores cantores brasileiras daquela atualidade e não só da história. Emilinha, a personagem, grava Boleros, opta por uma vida mais familiar, sofre de uma doença nas cordas vocais, permanece anos sem gravar e termina sua vida vendendo, ela própria, CDs numa banca de praça. Numa entrevista reproduzida no espetáculo, mas também que aconteceu fora da narrativa, as duas discutem de igual para igual. O tema da conversa é o passado na Rádio Nacional. Ambas sabem que, nos anos que se seguiram, a carreira de Marlene é superior à de Emilinha. Além disso, o segundo ato que, por tudo isso, parece caminhar muito mais devagar do que o primeiro, é descendente, uma vez que ditadura militar, doença, velhice e pobreza são temas que pesam, puxam os sentimentos para baixo e conduzem a um negativo anti-ápice. A frustração aumenta com a não interpretação de “Cantoras do Rádio”, não gravada pelas cantoras existentes além da narrativa, mas afirmativamente parte do seu universo icônico.
                Assim como “Sassaricando”, “Emilinha & Marlene” é um espetáculo que, pelo conjunto dos seus valores estéticos, em especial, aqueles que dizem respeito à reprodução de um olhar por sobre a história da música brasileira, merece ser assistido pelo público de todas as capitais do país. O belíssimo trabalho da orquestra, o carisma, a técnica e o talento expressos nas vozes de Solange Badim (já elogiada em “Oui Oui – a França é aqui”) e de Stella Maria Rodrigues e os figurinos já destacados de Rosa Magalhães são elementos que, porque arregimentados eficientemente por Bonis e por Neves, valorizam e fazem valorizar a fortuna artística que, enquanto povo, nós temos e as novas gerações precisam conhecer.

*

Ficha técnica:

Texto: Thereza Falcão e Júlio Fischer
Direção Geral: Antônio de Bonis
Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Direção de Movimento: Márcia Rubin
Cenografia: Sergio Marimba
Figurino: Rosa Magalhães
Iluminação: Jorginho de Carvalho
Projeto de Sonorização: Andrea Zeni
Visagismo: Uirandê Holanda
Pesquisa: Eva Joory e Rodrigo Faour
Projeto Gráfico: Guilherme Leite Ribeiro
Direção de Produção: Isabel Themudo e Estela Albani
Produção Executiva, Captação de Apoios e Administração: Tiago Morenno
Assistente de Produção: Thiago Paschoa
Gerente de Projeto: Rodrigo Gerstner
Assessoria de Imprensa: João Pontes e Stella Stephany
Assistente de Direção: Lenita Lopez
Assistente de Direção Musical e Preparação Vocal: Mona Vilardo
Assistente de Sonorização: Everton Rocha
Assistentes de Cenografia: Débora Mazloum e Glicia Gomes
Produção Cenográfica: Cláudia Torres
Cenotécnica: Hélice Produções
Assistente de Iluminação: Daniel Galvan
Assistente de Figurino: Mauro Leite
Estagiária de Figurino: Bekia Motta
Assistente Visagismo: Daniel Martins
Fotografias: Estela Albani
Técnica de Som: Joyce Santiago
Microfonista: Jamile Regina
Operador de Luz: Rodrigo Bezerra de Mello
Diretor de Palco: Paulo Bandeira
Contra-regra: João Paulo Damata
Maquinista: Ronaldo Garcia

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Os Altruístas (RJ)

 Foto: divulgação

Nicky Silver, Guilherme Weber e Kiko Mascarenhas


                “Os Altruístas” é, antes de ser uma peça teatral, um texto dramático escrito no fim dos anos 90 pelo americano Nicky Silver, o mesmo de “Pterodáctilos” e de “Criados em Cativeiro”, cuja excelência está nos diálogos sarcásticos do seu autor, conhecido como grande e, talvez, maior expoente do humor negro. Uma vez que o texto é literatura e, por isso, paira independente da produção teatral que o atualizar (atual, aqui, não é sinônimo de contemporâneo, mas o oposto de virtual), o espectador não precisa saber nada a respeito de Guilherme Weber, de Mariana Ximenes ou de Kiko Mascarenhas para saber que, por ser de Nicky Silver, vai rir a valer durante a apresentação e sair, ao final, com um gosto amargo na boca. Já disposto no texto, Guilherme Weber, diferente do que fez Felipe Hirsch (ou Marco Nanini?), manteve a estrutura narrativa primeira: Sidney, a personagem interpretada por Mariana Ximenes, continua no palco como é nas páginas: a protagonista. Apesar de Kiko Mascarenhas, que interpreta um personagem coadjuvante, brilhar mais em cena do que Ximenes, é em torno de problema do personagem dela que toda a história “anda”. O resultado final é extremamente positivo a todos. Ao optar por manter uma estrutura confortável, Weber poderia ser acusado por sua obediência ao dramaturgo. Mas, até lá, certamente, já terá tido sucesso suficiente para gozar dos louros que lhes são de direito pelo belíssimo trabalho de direção que se vê aqui.
                Sidney (Mariana Ximenes) assassinou alguém. Desesperada, a personagem, também uma famosa atriz de novelas, procura o seu irmão, o assistente social e homossexual Ronald (Kiko Mascarenhas). Ele acabara de acordar em sua cama ao lado de Lance (Jonathan Haagensen), um michê que parece dar a ele motivos para acreditar no amor verdadeiro (mais um vez). Ao lado dessa trama principal, existe uma outra, que acontece em separado até a metade da apresentação: Vivian (Cybil, no texto de Nicky Silver) (Stella Rabello) acorda ao lado de Tony (Swallow, em Silver) (Miguel Thiré). Ela é uma lésbica politicamente ativa, enquanto ele é namorado de Sidney. Vivian e Ronald estão se preparando para, à tarde, participar de um manifesto por vários direitos sociais, ao qual, até então, Sidney se negara a ir. Lá, eles encontrarão Audrey, namorada de Vivian. Com os já costumeiros monólogos/solilóquios de Silver, os personagens “vomitam” seus sonhos e seus desencantos com a vida, habitando espaços que já tinham sido criados quando eles nasceram e, por isso, se configuram, talvez, como condenação injusta por pecados que eles mentem não ter cometido. Altruísta é o exato oposto de egoísta. Enquanto o segundo denomina aquele que só pensa em si, o primeiro nomeia aquele que só pensa no outro. A maestria de Silver está em não ficar nem em uma definição, nem em outra, promovendo situações em que personagens e seus espectadores bailem na dúvida: pensar no outro também não é pensar em si? Fazer o bem para si, muitas vezes, também não é fazer o bem para o outro? A maestria de Weber, como se já não bastasse a de Silver, está em oferecer um terceiro conceito: o hedonismo, uma busca incessante pelo prazer.
                As construções de Weber agem em sentido à própria satisfação. Os personagens repetem palavras, frases ou expressões até o orgasmo verbal pelo qual buscaram, repetem gestos e ações até esse mesmo lugar, se movimentam por entre três camas e três espelhos (disformes) numa inteligente concepção cenográfica assinada por Daniela Thomas. Estão vestidos em roupas que também sugerem visualmente o prazer: espartilhos (o prazer de estar magro), camisolas e cuecas (o prazer de estar à vontade), roupas em couro (o prazer da dor), vestido de noiva (o prazer de amar e ser amado), terno e gravata (o prazer de ser adequado), sobretudo de pele com palava pichada em rosa atrás (o prazer de chamar a atenção e ser visto), numa também inteligente concepção de figurino de Emília Duncan e Antônio Frajado. A peça é contada também através de uma trilha sonora, assinada por Guilherme Weber, baseada em Brecht: a Balada da Dependência Sexual, Youkali e Alma boa de lugar nenhum, inteligentemente propondo referências ao universo dual (e farsesco) e político do dramaturgo alemão. Ou seja, não há nada a ser desperdiçado na fruição desse espetáculo que se faz importante, ao mesmo tempo e em igual intensidade, em termos de sua forma e de seu conteúdo.
                Mariana Ximenes e Kiko Mascarenhas tem, em quase todos os aspectos, o mesmo excelente desempenho na viabilização de seus personagens irmãos: Sidney e Ronald. Seus corpos estão absolutamente entregues ao ritmo vertiginoso que Weber dá a cena: não linear (cenas absolutamente rápidas, a ponto de não entendermos exatamente o que está sendo dito, o que não é ruim, dá lugares para momentos lentos e cálidos), surpreendente (pausas surgem em meio a avalanches verbais, gestos bruscos aparecem em situações quase contemplativas) e heróico (os momentos finais prenunciam o sacrifício de um “cordeiro”, alguém pagará pelo mal que não fez, livrando-nos-do-pecado-amém). Os gestos de ambos são pontuais, as partituras são bem marcadas e bastante visíveis, as intenções são bem distribuídas. Mas falta em Ximenes o que sobra em Mascarenhas: o excelente uso da voz como recurso imprescindível da retórica macabra de Silver-Weber. Ao olharmos para a interpretação de Ronald de Kiko Mascarenhas, destaca-se a riqueza de seu trabalho na exploração de muitos dos recursos que ele tem disponível: agudos superam os graves, pausas superam a velocidade atroz, a excelente dicção apenas contribui, o verbo se faz carne em termos da força bem medida com que é proferido.
                Jonathan Haagensen surpreende positivamente em cena ao interpretar Lance. O musculoso ator afro-descendente dá vida a um personagem cuja feminilidade é mais infantil do que propriamente feminina. Além disso, há nele a boa dosagem, também encontrada em Ximenes, Mascarenhas e Thiré, que aqui fica como ora criança a brincar, ora homem dono de seus próprios pés. Miguel Thiré, por sua vez, recebeu menos oportunidades para mostrar a virtual exploração de seus recursos artísticos. Duro, o personagem viril da trama aparece como másculo, dosando suas aparições como mais ou menos másculo, sem alterações infelizmente. Junto dele, está Vivian, cuja interpretação de Stella Rabello sofre da mesma falta de oportunidades (ou pobre aproveitamento das mesmas). Tony e Vivian, há que se ser justo, são personagens cuja dificuldade está na fruição uma vez que, só da metade para o fim da apresentação, é que sabemos, de fato, quem são eles e o que fazem ali. Nesse sentido, na efemeridade ontológica do teatro, as cenas iniciais dão lugar às cenas finais, de forma que suas imprecisões lhes marcam não tão positivamente, embora tragam elementos essenciais à trama e ao seu apresentar.
                “Os Altruístas” figura entre os espetáculos imperdíveis não porque é feito a partir de um texto de Nicky Silver ou porque marca a volta aos palcos de Mariana Ximenes, depois de nove anos afastada deles. Seus valores, enquanto obra estética, estão nas dobras, nos cantinhos, nos milímetros aprofundados da interpretação de seus atores, na concretização inteligente das fundamentais concepções, na evolução da trilha sonora e na discreta e, por isso, positiva iluminação de Domingos Quintiliano. Monalisa, afinal, não está no sorriso, mas no rosto e nos cabelos, na paisagem ao fundo e na posição das mãos que apontam para a boca e, aí sim, fazem ver Leonardo Da Vinci. O prazer é tema, é forma e também é resultado.

*

Ficha técnica:

Texto: Nicky Silver
Direção e adaptação: Guilherme Weber
Tradução: Erica de Almeida Rego Migon e Ursula de Almeida Rego Migon
Elenco: Mariana Ximenes, Kiko Mascarenhas, Jonathan Haagensen, Miguel Thiré e Stella Rabello
Cenografia: Daniela Thomas
Figurino: Emília Duncan e Antônio Frajado
Iluminação: Domingos Quintiliano
Trilha Sonora: Guilherme Weber
Produção de Objetos e Adereços: Rafael Faustini
Direção de Movimento: Márcia Rubin
Preparação Vocal: Rose Gonçalves
Visagismo: Marcos Padilha
Design de Som: Raul Teixeira
Edição de Áudio e Intervenção musical: Rodrigo Ramalho
Projeto Gráfico: Fábio Arruda e Rodrigo Bleque (Cubículo)
Fotografia: Marcelo Krasilcic
Assessoria de Imprensa: Vanessa Cardoso (Factoria Comunicação)
Diretor de Palco: André Boneco
Cenotécnico: Lázaro Ferreira e Gerson Rodrigues
Operador de Som: Doutor Ailton
Operador de Luz: Osvaldo Gazotti
Contra-regra: André Crespo
Confecção da boneca: Miniarte
Efeitos especiais: Martão
Operação de Efeitos Especiais: Michele Caraça
Assistente de Direção: Verônica Prates
Assistente de Cenografia: Mari Alves e Stella Tennembaum
Assistente de Figurino: Bruna Libman
Ilustrações do Cenário: Henrique Martins
Pintura de arte: Vicent Guilmoto
Assistente de Pintura de Arte: Vermelho
Direção de Produção: Francisco Accioly e Roberto Vitorino
Produção Executiva: Tereza Durante
Produzido por: Mariana Ximenes, Francisco Accioly e Roberto Vitorino
Realização: Maxi Produções Artísticas 

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Isto aqui é Rock'n'Roll (RJ)

Foto: divulgação


O que é teatro nisto aqui

Embora “Isto aqui é Rock’n’Roll” seja um show musical, as marcas de teatralidade são facilmente encontradas em seu uso bastante positivo. Carlos Loffler (neto dos atores Oscarito e Margot Louro) interpreta C. Q. Lee, uma verdadeira fictícia lenda do rock brasileiro, em um show que marca a sua volta ao mundo da música. Dessa forma, quando Loffler empresta seu corpo franzino e sarado para dar forma a uma grande estrela da música, quando um vidro transparente de água também transparente emprestam sua transparência para fazer ver um vidro de vodka, quando as caixas de som viradas para a plateia emprestam sua força para transformar um teatro com palco italiano e poltronas de veludo em uma casa de shows, é de teatro que estamos falando. Quanto à organização dos sentidos, deve-se observar que há três grandes tipos textuais (aprendidos desde a escola): narração, dissertação e descrição. A obra em questão é melhor vista a partir do último tipo, o que em nada é depreciativo, uma vez que há menos história e menos argumentação, ambas existentes, e muito mais a construção de um universo (ficcional) de show de rock como nos tempos de Raul Seixas, Cazuza, Cássia Eller, Sergei entre muitos outros não menos importantes na nossa história. Estabelecido, assim, o ponto de vista, pode-se partir para a observação do comportamento desses recursos de linguagem no espetáculo cuja direção geral é assinada por Aloisio de Abreu e a direção musical por Andrea Zeni.

Narrações em OFF anunciam o retorno de C. Q. Lee (Carlinhos Quase Lee, numa homenagem à Rita Lee), cantor conhecido em vários sotaques brasileiros e em vários idiomas mundiais. Eis que ele entra vestido em um casaco peludo e blusa apertada, calça que parece de couro, maquiagem pálida com sombras carregadas, cabelos compridos numa perfeita alusão a Mick Jagger (The Rolling Stones), cantor da primeira música da noite: “(I can’t get no) Satisfaction”. A partir daí, em várias oportunidades, a produção explora de forma rica o universo a que se propõe.

Carlos Loffler se movimenta no palco em um misto de agressão e sensualidade. Seus movimentos são fortes, floreados femininamente, mas masculinamente pontuais, marcas de uma androginia necessária à estética apresentada e felizmente presente. A voz grave como um trovão paira sobre a audiência, dominando a cena e emocionando quem viveu os anos agora simbolicamente reconstruídos e encantando quem é jovem demais para tê-los vivido. C. Q. Lee conta histórias de sua vida através das décadas e por vários lugares em que esteve, incluindo o Bar Ocidente e o saudoso Fim de Século em Porto Alegre. Faz poesia, diverte e se diverte. Anda pela plateia, convoca suas palmas, faz reinar o Rock’n’Roll que dá título ao espetáculo. Ao seu lado, outros símbolos são trazidos à cena, peças que se encaixam na construção do quadro: solos de guitarra emocionados, músicos balançando a cabeça e o corpo deixados levar pelo som que fazem ouvir, pouca luz e correntes na rotunda, bateria um degrau acima, cadeira barroca à direita, backing vocal à esquerda sob um foco só pra ela. Abreu não desperdiça signos e mostra bom uso de todas as letras que são possíveis para viabilizar a linguagem teatral escolhida em sua concepção.

Há que se fazer um destaque: Kalli Ane é, sem exageros, a Jennifer Holliday brasileira. A princípio, apenas mais uma marca bem colocada em referência ao universo dos shows musicais (cantora afro-descendente, vestido dourado apertado (que obriga a intérprete a puxá-lo para baixo em vários momentos, o que é negativo), expressões neutras e pequenos altos agudos de fundo), Ane ganha espaço à medida que o espetáculo se desenvolve. Em “Blues da Piedade”, um dos ápices encontráveis na produção, sua participação é tão positiva que o público se levanta e aplaude em pé o que vê. O mesmo se repete em “Mercedes Benz”, exibindo uma feliz negação da linearidade esperada em um espetáculo descritivo.

Isto aqui é Rock’n’Roll” faz homenagem a várias estrelas do rock e seus públicos enquanto se utiliza desses símbolos como meio de homenagear. Talvez esteja nisso o seu maior mérito uma vez que não torna o tema um mero simulacro, vazio de conteúdo, mas rico em forma. O excepcional repertório escolhido e a interpretação das canções (que, se agradam ou não os especialistas em música, nenhum mal causam no espectador de teatro) acontecem como um argumento vendido e plenamente hábil de ser comprado pela plateia: viva o rock nacional. Nas duas horas em que se dispõe sua apresentação, o único vilão real são as confortáveis poltronas da Sala Fernanda Montenegro no Teatro Leblon. Vilãs, elas impedem que a audiência dance, um problema.

(Melodia: “Dream a little dream of me”)

Sonhei com o Cazuza, com a Rita e com a Cássia sem blusa.
No sonho, eles cantavam para mim.
Quem não quer um sonho assim?
Boa noite, Cinderelas!
O sonho é só a vida mais bela.
Tão bom você aqui dentro de mim.
Quem não quer um sonho assim?
As dores de amores se calam
Se eu beijo você... 


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Ficha técnica:

Com: Carlos Loffler e Banda
Roteiro e Direção Geral: Aloisio de Abreu
Direção Musical: Andrea Zeni

Guitarra: Lula Washington
Guitarra: Danilo Bareiro
Baixo: Rubey Catarcione
Bateria: Cassio Acioli
Backing Vocal: Kalli Ane
Ator convidado: Alisson Sant

Figurinos: Leo Muqui e Leo Neves
Cenário: José Camarano e Marcelo Argento
Cenotécnico: Set Design
Iluminação: Aurelio de Simon
Operador de Luz: Helio Malvino
Operador de Canhão: Felipe Pereira
Técnico de Áudio: Anderson Chames
Contra-regra: J. Bruno
Maquiagem: Romulo Flores
Camareira: Tania Haribol de Sosa
Foto: Fernando Schubach
Assessoria de Imprensa: Smart Mídia - Comunicação e Assessoria 
Marketing: Connected Thinking - Marrieti, Rossoni & Associados
Design Gráfico: 48/Coral Michelin
Assistente de Direção: Virgínia de Goméz
Produção Executiva: Antonio Libonati